Os padrões de conhecimento de enfermagem na produção textual de acadêmicas

 Resumo:na literatura internacional encontra-se uma importante discussão sobre as formas de conhecer que são próprias da enfermagem. O trabalho que obteve maior repercussão nesta área  foi o de Carper que propõe quatro padrões de conhecimento: empírico,ético, estético e pessoal. Com o objetivo de identificar a expressão destes padrões de conhecimento na produção textual de alunas de graduação, foi realizado um estudo exploratório utilizando a análise documental de diários nos quais as alunas descrevem e discutem suas atividades durante uma disciplina prática. A análise destes documentos mostrou que a forma de escrita mais utilizada é a transacional. Os quatro padrões de conhecimento mostraram-se presentes em todos os diários de estágio com predominância do padrão empírico. O estudo aponta a necessidade de aprofundar a pesquisa sobre as formas de conhecimento presentes na prática e no ensino da enfermagem.

Palavras-chave: Conhecimento, Educação, Enfermagem, 

             1. APRESENTANDO O TEMA

            Na área da educação em enfermagem é possível observar uma preocupação com o desenvolvimento de metodologias que privilegiem a formação de um profissional crítico, reflexivo, compromissado com transformações na área da saúde. Estas propostas referem-se particularmente a como ensinar-aprender, permanecendo a questão sobre o que se ensina.  Mesmo aceitando que o que e como, neste processo, não podem ser completamente separados, nos tem preocupado a questão sobre que conhecimento deve ser construído e transmitido durante o curso de graduação.

            Existe um conhecimento próprio da enfermagem? Ou seja, a enfermagem possui formas de conhecer que lhe são características? Se estas formas existem, ela tem sido ensinadas-aprendidas durante a  formação acadêmica? Seria possível identificar formas de conhecer nos trabalhos e atividades desenvolvidos pelos acadêmicos?

De acordo com Parker1 a base de conhecimento da enfermagem parece ser um  fenômeno que tem desafiado enfermeiras praticantes, docentes e pesquisadoras por décadas. No entanto, pesquisar as formas de saber de uma disciplina é tarefa fundamental  para que esta se torne cada vez mais capaz de produzir conhecimento, colocando-o à disposição da comunidade, e para que seja possível justificar a importância  da disciplina frente a esta mesma comunidade.

Certamente não é possível desenvolver a formação de profissionais sem referência a estrutura da disciplina, seus conceitos representativos e métodos de questionamento. Na verdade, se uma disciplina possui formas específicas de conhecer, é evidente que as instituições responsáveis pela formação profissional  devem privilegiar estas formas2.

            Carper2 publicou um trabalho, em 1978, no qual defendia a existência de quatro padrões de conhecimento na enfermagem: o ético, o estético, o pessoal e o empírico. Este trabalho obteve repercussão internacional sendo amplamente discutido pela comunidade de enfermagem e, talvez, sua importância fundamental deva-se justamente à defesa da necessidade de utilização, pela enfermagem, de outros padrões de conhecimento além do empírico científico. Segundo Sorrell3, a discussão sobre estes padrões de conhecimento deu forma a conceitualização da enfermagem de hoje.

O padrão empírico, ou a ciência da enfermagem, é facilmente identificável tanto na bibliografia da área como no ensino. Seu objetivo é desenvolver um conhecimento abstrato e explicações teóricas. De acordo com Almeida e Rocha4, foi em busca da cientificidade que as enfermeiras começaram a desenvolver as teorias de enfermagem.

O padrão estético corresponde à arte da enfermagem e, portanto, é expressivo e subjetivo, tornando-se visível no cuidar. Para ter um caráter estético é necessário que exista uma unidade entre meios e fins2, portanto nem toda ação tem este caráter. Freqüentemente a arte da enfermagem tem sido reduzida à execução de técnicas o que, de certa forma, levou a desvalorização desta forma de conhecimento. Peplau relaciona a arte à prática profissional, ou seja, a arte é expressa no processo de interação entre enfermeira e cliente e desperta a capacidade do cliente de enfrentar desafios5.

O padrão ético envolve o questionamento das razões que justificam as escolhas realizadas pelas enfermeiras, envolvendo mais do que o respeito ao  código de ética profissional. As profissionais de enfermagem estabelecem objetivos e realizam intervenções o que implica numa escolha entre diferentes possibilidades envolvendo uma dimensão ética2.

O padrão pessoal é subjetivo, concreto, existencial e tem relação com o conhecimento, o encontro e o entendimento do self individual, concreto. Este tipo de conhecimento é que promove a totalidade e integridade no relacionamento pessoal, negando uma orientação manipuladora, impessoal2.

O padrão de conhecimento pessoal é apresentado de forma diferente por outros autores da enfermagem6. Também foram propostos outros padrões de conhecimento da enfermagem6,7 e diferentes formas de ensinar-aprender e desenvolver o conhecimento pessoal, ético e estético1,3.

No Brasil o trabalho de Carper2 teve pequena repercussão, embora exista uma aceitação tácita de que as enfermeiras utilizam, na sua prática cotidiana, outros conhecimentos além do científico. Diferentes autoras brasileiras reconhecem explicitamente a importância de diferentes formas de conhecer tanto ao discutir a complexidade de identificar diagnósticos de enfermagem8 quanto ao propor o cuidado como a essência da enfermagem9.

Com o objetivo de iniciar uma discussão sobre os padrões de conhecimento presentes na formação das profissionais de enfermagem no Brasil, realizamos um estudo exploratório buscando identificar os padrões de conhecimento propostos por Carper2 nos diários de estágio de alunas do um curso de graduação da Fundação Universidade Federal do Rio Grande.

Assim o objetivo geral deste trabalho foi identificar a expressão de padrões de conhecimento ético, estético, empírico e pessoal em textos elaborados por alunas de graduação em enfermagem.

                2. METODOLOGIA

            Este é um estudo exploratório que utiliza a análise documental, considerando como documento qualquer material escrito que possa ser usado como fonte de informação10. Foram utilizados como fonte de dados os diários de estágio (O diário de estágio é uma atividade proposta com o objetivo auxiliar as alunas a desenvolverem o pensamento crítico e uma prática reflexiva11,12,13. Devido aos objetivos propostos, as alunas são estimuladas a escreverem textos expressivos, sem necessidade de seguir um formato ou padrão pré-estabelecido, descrevendo suas atividades, expondo seus sentimentos e reflexões.) de dezessete alunas do 5o semestre de um curso de graduação em Enfermagem. Estes diários compreendem os registros das atividades desenvolvidas em uma disciplina prática durante o período de um semestre.

O material foi lido repetidamente buscando identificar, inicialmente, sua estrutura formal. A seguir foi realizada uma interpretação crítica dos textos identificando semelhanças e diferenças com os padrões de conhecimento propostos por Carper2.

            As acadêmicas autorizaram a utilização de seus textos para pesquisa com a garantia de manutenção do  anonimato. No presente trabalho as alunas são designadas pela letra A seguida de um número (A1 ...A17), as professoras pela letra P seguida de um número (P1, ...,P5).Os pacientes são designados por nomes fictícios.

Os registros efetuados pela alunas constituem uma importante fonte documental para a pesquisa e, no momento, está sendo criado um banco de dados com este material o que permitirá, no futuro novas pesquisas.    

EXPRESSÃO DOS PADRÕES DE CONHECIMENTO

Predominam nos documentos uma estrutura e uma terminologia  semelhantes às utilizadas nos escritos técnicos científicos e nos prontuários dos pacientes. Os textos têm um caráter informativo, apresentando-se, via de regra, divididos em tópicos: atividade desenvolvida, orientações dadas, evolução do paciente e reflexão. Embora estes itens sejam sugeridos pela disciplina não é solicitada nenhuma estrutura específica, ou o ordenamento rigoroso dos diários. Um exemplo deste tipo de escrita é:

Aos trinta dias do mês de março eu, A9, comecei meu estágio na Unidade de Clínica Cirúrgica, sob a supervisão da professora enfermeira P4. Eu e minha colega A17 prestamos assistência ao paciente José Silva, 64 anos, do quarto xxx, leito B, com o diagnóstico de ... (A9).

Sorrel3 apresenta uma classificação de textos escritos conceituando a escrita transacional como aquela que se apresenta de forma convencional, concisa, clara, sendo utilizada  para informar, persuadir ou instruir. Já a escrita expressiva revela um autor e é mais utilizada em diários e cartas pessoais. Os diários de estágio analisados apresentavam a predominância de uma forma de escrita transacional que é especialmente adequada para a comunicação de conhecimento empírico. Por outro lado esta escrita dificulta a expressão de padrões de conhecimento ético, estético e pessoal.

Segundo Orlandi14 "o sujeito dirá de um modo ou de outro, segundo o efeito que pensa produzir em seu ouvinte". Desta forma, considerando que as alunas estavam elaborando um texto que seria lido por suas professoras, e que o conhecimento empírico é bastante valorizado no meio acadêmico, podemos imaginar que estes fatos condicionaram os seus escritos. 

            Todos os diários de estágio apresentavam o padrão de conhecimento empírico quando, por exemplo, descreviam o estado dos pacientes e os procedimentos executados.

"Apesar de serem novos casos, percebi que os fundamentos para a realização dos procedimentos eram os mesmos, como na realização do curativo, quando fiquei em dúvida sobre como começar, a resposta estava em um dos princípios da técnica que diz que o curativo deve ser realizado no sentido gravitacional" (A3).

 

Os diários de estágio examinados cobrem o período de um semestre letivo, sendo possível observar que, com o desenvolvimento do estágio, a escrita torna-se mais expressiva dando margem ao aparecimento de outros padrões de conhecimento. O padrão de conhecimento pessoal também apareceu em todos os diários pesquisados, sendo um exemplo:

"A paciente encontra-se consciente de todo procedimento (amputação de MS) mas me senti estranha ao conversar com a mesma, me senti vazia pois me coloquei no lugar dela e vi que por mais que alguém falasse algo não sei se me conformaria, embora soubesse que o que iria ser feito fosse o melhor no momento" (A4).

As alunas conseguem identificar as próprias emoções, ou seja, desenvolvem um conhecimento de si mesmas, de seus limites e possibilidades. O reconhecimento de si permite reconhecer o outro como diferente. É este tipo de conhecimento pessoal que, segundo Carper2, permite à enfermeira estabelecer um relacionamento autêntico com o outro.

O padrão de conhecimento estético se torna visível na ação da enfermeira, mas também pode ser observado na forma como as alunas narram determinadas situações:

"Evito fazer anotações enquanto o paciente fala pois acredito que, para manter bom relacionamento enfermeira-paciente, se faz necessário ouvir o que o paciente tem a nos dizer, demonstrando interesse pelas suas colocações" (A5).

"O paciente apresentava-se bem disposto, mas tentando disfarçar a preocupação com sua situação, cooperativo, comunicativo e andando de cadeira de rodas pela unidade" (A3)

            Na primeira  situação a aluna está estabelecendo uma unidade entre meios e fins, a forma de realizar uma atividade está relacionada a objetivos amplos, estabelecer um bom relacionamento, o que é próprio do padrão de conhecimento estético. No segundo caso a aluna demonstra a apreensão de um todo que lhe permite determinar que o paciente está "tentando disfarçar a preocupação", embora os outros dados que aponta não pareçam indicar isto.

O conhecimento estético está associado à percepção que vai além do reconhecimento e implica em reunir detalhes e particularidades numa totalidade sintética. A experiência percebida é específica e singular ao invés de  exemplar3,2.

O padrão de conhecimento ético também aparece em todos os diários estudados, no entanto as questões mais vinculadas são as relacionadas às condutas assumidas pela equipe de saúde, particularmente a de enfermagem, e às falhas da instituição que comprometem o atendimento dos pacientes. O questionamento dos objetivos estabelecidos para sua própria ação e às decisões tomadas aparecem de forma ainda discreta. Um exemplo de questionamento ético surge quando uma aluna descreve a forma como dividiu suas atividades com duas colegas o que dificultou a comunicação e se mostrou "muito trabalhoso".

"Particularmente o dia hoje não foi bom (...) não fiz nada errado, mas também não fiz nada certo" (A7).

Neste caso a aluna começa a questionar as decisões que tomou, suas opções e o resultado obtido. Quando mostra estar descontente, mesmo não tendo feito nada errado, demonstra a consciência de que o seu papel não é apenas o de "não fazer nada errado" mas também de fazer coisas certas. Esta reflexão pode ser identificada às características do conhecimento ético que, frente às condições atuais dos serviços de saúde, parecem ser cada dia mais importantes.

É importante notar que os padrões de conhecimento propostos por Carper2 não são independentes, mas profundamente inter-relacionados. Portanto, em algumas situações, a classificação de um determinado conhecimento como ético, estético ou pessoal é problemática. O conhecimento empírico é o que mais facilmente pode ser distinguido dos outros, embora não seja possível afirmar que, na base de um conhecimento empírico, não exista, por exemplo, um conhecimento ético.

Foi possível observar que, à medida que as alunas começaram a desenvolver uma escrita mais expressiva, os padrões de conhecimento ético, estético e pessoal tornam-se mais facilmente percebidos.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisando os diários de estágio de dezessete alunas foi possível identificar manifestações dos quatro padrões de conhecimento propostos por Carper: o empírico, o ético, o estético e o pessoal.

O conhecimento empírico  manifesta-se já na escrita, que é basicamente transacional, e tem como objetivo informar, transmitindo dados objetivos, concretos, verificáveis. Na seqüência cronológica dos textos identifica-se uma paulatina transformação da escrita, que se torna expressiva, permitindo identificar os padrões de conhecimento estético e pessoal. As questões éticas, inicialmente, dirigem-se à atuação da equipe de saúde e só depois se voltam para a ação das próprias alunas.

Pode-se especular que, à medida que aumentam seu conhecimento pessoal, estético e empírico, as alunas tornam-se mais capazes de questionar as próprias ações do ponto de vista ético. Este aspecto reforça a concepção de que as diferentes formas de conhecer estão inter-relacionadas e que, portanto, o desenvolvimento de uma implica e necessita do desenvolvimento das outras.

Se aceitarmos que a enfermagem utiliza diferentes padrões de conhecimento, então se torna clara a necessidade de estudar como estes são utilizados na prática das enfermeiras e como são ensinados durante a formação acadêmica. Este estudo aponta justamente para a necessidade de maior investigação sobre a utilização de diferentes padrões de conhecimento na realidade brasileira.

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1Parker D. Nursing art and science literature and debate. In: Marks-Maran, D, Rose, P. Reconstructing nursing: beyond art and science. London : Balliére tindall; 1997. p. 3-24.

2Carper B. Fundamental patterns of knowing in nursing. Adv Nurs Sci; 1978; 1(1): 13-23. 

3Sorrell JM. Remembrance of things past througt writing: esthetic patterns of knowing in nursing. Adv Nurs Sci; 1994; 17(1): 60-70.

4Almeida MCP, Rocha JYR. O saber da enfermagem e sua dimensão prática. 2aed. São Paulo: Cortez; 1989.

5Peplau H. The art and science of nursing: similarities, differences and relations. Nurs Sci Q; 1988; 1 (1): 8-15.

6Schultz PR, Meleis A. Nursing Epistemology: traditions, insights, questions. Image J Nurs Sch; 1988; 20 (4): 217-221.

7Munhall PL. Unknowing: toward another pattern of knowing in nursig. Nurs Outlook; 1993; 41(3):125-128.

8Garcia TR,  Nóbrega MML, Carvalho EC. Nursing process: application to the professional practice. Online Braz J. Nurs, 3 (2) 2004. Available from: www.uff.br/nepae/objn302garciaetal.htm

9Waldow V. Cuidado humano: o resgate necessário. Porto Alegre: Sagra-Luzzatto; 1998.

10Lüdke M, André M. Pesquisa em educação: abordagens  qualitativas. São Paulo: EPU; 1986.

11Cestari ME. Vivenciando um processo educativo: um caminho para ensinar-aprender pesquisar [dissertação de mestrado] Florianópolis (SC): Universidade Federal de Santa Catarina; 1999.

12Waldow V. Desenvolvimento do pensamento crítico na enfermagem. In: Waldow V, Lopes MJM, Meyer DE. Maneiras de cuidar maneiras de ensinar. Porto Alegre: Artes Médicas; 1995. p.109-134

13Fonteyn M, Cahill M. The use of clinical logs to improve nursing students’metacognition: a pilot study. J Adv Nurs; 1998; 28 (1):149-154.

14Orlandi EP. Análise de discurso: princípios&procedimentos. 3ed. Campinas: Pontes; 2001.

 Nota: Trabalho apresentado em forma de pôster no XII Encontro de Enfermagem da Região Sul, 2002, Porto Alegre.