O VIVIDO PELO CLIENTE EM PRÉ-OPERATÓRIO DE CIRURGIA CARDÍACA

Rosa Helena Silva Souza, Maria de Fátima Mantovani, Liliana Maria Labronici

RESUMO. Trata-se de uma pesquisa qualitativa de abordagem fenomenológica, com o objetivo de apreender os sentimentos e as percepções do cliente em pré-operatório de cirurgia cardíaca. Foi realizada no Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná, com 11 sujeitos em pré-operatório de cirurgia cardíaca, em março e abril de 2004. Da análise dos discursos emergiram duas unidades temáticas: Corpos amedrontados – uma realidade a ser transcendida e A esperança de vir-a-ser um novo corpo. A primeira se refere ao medo que atinge quem vivencia o pré-operatório. A segunda categoria versa sobre a possibilidade de obtenção de uma vida melhor, mediante o novo corpo conquistado com a cirurgia. Foi possível desvelar o fenômeno estudado e mostrar a necessidade de interação entre a enfermeira e o corpo enfermo na situação perioperatória, tendo em vista a promoção do seu bem-estar. 

Palavras-chave: Cirurgia Cardíaca; Enfermagem; Cuidados pré-operatórios.

           INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, a cirurgia cardíaca tornou-se um procedimento muito utilizado no tratamento de doenças cardiovasculares, porém, percebe-se que essa intervenção ainda provoca um forte impacto nos clientes que dela precisam, por relacionar-se com o coração, órgão considerado o centro do corpo, da vida, das emoções. A necessidade da cirurgia cardíaca traz sentimentos de angústia e de medo da morte, sendo percebida por muitos como um acontecimento ambíguo, que tanto pode trazer esperança de uma nova vida, como pode apontar para a finitude da existência. Esse procedimento pode ser percebido como um momento difícil para o cliente, motivo pelo qual deve ser acompanhado pelo enfermeiro juntamente com a equipe multidisciplinar, que poderá apoiar, orientar e avaliar suas necessidades, proporcionando-lhe suporte emocional e segurança. Para isso, é preciso não somente competência e habilidade técnica do enfermeiro, como também sua percepção, pois permite conhecer e orientar o cliente no processo de cuidar, “ver o invisível no visível, correlacionar o olhar que escuta, o olhar atentivo ao olhar que fala...”(1) Enfim, ela possibilita conhecer a subjetividade do outro e compreendê-lo na sua multidimensionalidade.

“O paciente é constituído de um todo que engloba a sua cultura, os seus princípios e valores, a sua religião ou filosofia de vida, a sua situação socioeconômica, o seu estado emocional e biológico, entre outros.”(2:18) Isto significa que ao percebermos o ser humano na sua totalidade, poderemos propor ações expressivas do cuidado, ou seja, aquelas que estão relacionadas com a subjetividade(3). Assim sendo, é essencial que o enfermeiro se coloque naquilo que percebe e se deixe envolver intencionalmente; pois a observação da doença no corpo não pode ser sentida somente do ponto de vista biológico, que reduz o corpo a mero objeto (1). Essa visão obtida mediante a percepção do enfermeiro deve permear a sua relação com o cliente no cenário da saúde e da formação acadêmica. Para tanto, o relacionamento interpessoal é indispensável, conduzindo à identificação dos significados que o cliente dá à doença, ao internamento e ao tratamento cirúrgico (4).

Por acreditar que a compreensão destes significados auxilia o enfermeiro na assistência ao cliente, principalmente no período pré-operatório, esta pesquisa, tema de dissertação do Mestrado em Enfermagem da Universidade Federal do Paraná, tem como objetivo apreender os sentimentos e as percepções presentes no discurso do cliente no pré-operatório de cirurgia cardíaca.  

            TRAJETÓRIA METODOLÓGICA

Trata-se de uma pesquisa de abordagem fenomenológica à luz do pensamento de Maurice Merleau-Ponty. Esta escolha se justifica uma vez que a fenomenologia estuda situações que emergem da existência humana e este filósofo apresenta a possibilidade de uma reflexão sobre o vivido, uma análise da essência da existência, na qual o corpo é percebido em sua totalidade.

A pesquisa foi realizada em um hospital de ensino da Curitiba, considerado referência para outras instituições de saúde do Estado, no período de março a abril de 2004. Foram obedecidos os preceitos éticos de consentimento informado e esclarecido conforme a Resolução 196/96 (5) e o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da instituição. Participaram da pesquisa 11 sujeitos adultos, conscientes, capazes de se expressar por meio da linguagem verbal, e que estavam internados na Clínica de Cirurgia Cardiovascular ou na Clínica de Cardiologia, aguardando o procedimento cirúrgico.

Os discursos foram obtidos por meio de entrevista semi-estruturada, gravada. É importante destacar que a entrevista é um instrumento essencial na investigação qualitativa, porquanto as informações são fornecidas pelos próprios sujeitos que vivenciam o fenômeno (6).

A análise dos discursos foi realizada de acordo com a trajetória fenomenológica proposta por Martins, que consiste em três momentos relacionados entre si: a descrição, a redução e a compreensão fenomenológica (7). Este momento foi de reflexões sobre as unidades de significado extraídas das experiências vividas pelos clientes em pré-operatório de cirurgia cardíaca. Surgiram então duas categorias ou temas: Corpos amedrontados – uma realidade a ser transcendida e a esperança de vir-a-ser um novo corpo.  

ANÁLISE DOS DISCURSOS

Corpos amedrontados – uma realidade a ser transcendida

Percebemos que no cliente à espera da cirurgia cardíaca afloram medos como da cirurgia, de ser cortado, de violação interior, de ficar marcado pela cicatriz e o da possibilidade da morte. Este último pareceu muito significativo, pois ao deparar-se com essa possibilidade, ele experimenta sentimentos de angústia e aflição que o acompanham durante todo o período perioperatório, conforme constatamos já no primeiro discurso obtido:

            [...] Então, aqueles outros dias em que eu soube que tinha que fazer a cirurgia foram dias só de angústia, medo, apavoração! Aqui eu fiz aquele comentário, eu disse: “Ai, meu Deus, parece que eu estou indo pro corredor da morte”. Cada vez que vai se aproximando, é aquele apavoramento! (S1)

O medo da morte é inerente ao desenvolvimento humano, é um medo do desconhecido, somado ao da extinção, das perdas afetivas, da solidão e do sofrimento (8,9). A morte, apesar de parecer remota em nosso cotidiano, aqui se mostra possível e ameaçadora, causa temor insuportável, é encarada como um acontecimento terrível, pavoroso, do qual não se tem domínio. A certeza da morte e a incerteza da sua hora expõem o corpo a muitas angústias e anseios, que aliados a sentimentos de fragilidade e de impotência fazem com que o ser humano procure amparo na fé, na espiritualidade e na religiosidade, na tentativa de amenizar seus medos:

            [...] ou, sendo um pouco mais drástico, nem ir pra UTI, né? Ficar na sala. Lógico, na graça de Deus, eu faço oração, mas o que se reserva para amanhã? Ninguém sabe. (S6)

Eu estou com fé que vou sair daqui vivo. Também, se Ele não quiser, fazer o que, né? (S7)

          A fé, a espiritualidade e a religiosidade auxiliam no enfrentamento das situações de crise, fortalecendo, dando esperanças e diminuindo as angústias dos seres humanos. Por isso, muitos buscam suporte emocional no que consideram divino, vinculado ou não a uma religião específica, para tornarem-se menos frágeis.

          No que se refere à experiência religiosa, ela protege o homem contra o medo da natureza; oferece esperança de vida após a morte; consola os aflitos, explica sobre a dor física ou psíquica; serve de acesso à verdade do mundo, fornece explicações para a origem, a vida e a morte de todos os seres (10). A religião representa um esforço do ser humano na busca de sentido para seu sofrimento, sua morte e sua existência (11).

É importante lembrar que a morte é considerada por alguns povos e culturas um fracasso, uma interrupção de projetos de vida, sendo expressa mediante o medo e a negação dela mesma. A maioria das pessoas acredita que chegará à velhice, concluindo um grande ciclo vital. A expectativa em relação à vida é de que se possa crescer, trabalhar, casar, ter filhos, vê-los criados, casados e desfrutar da aposentadoria na companhia dos netos. No entanto, os cardiopatas, que têm uma doença progressiva do coração e precisam de cirurgia, começam a aceitar o fato de que, se não se operarem, morrerão num futuro previsível, sofrendo de uma ansiedade pré-operatória, que ao mesmo tempo traz esperança de que algo está sendo feito (12). Essas considerações evidenciam-se no discurso de um cliente que aguarda por transplante cardíaco:

Ah, eu fiquei assustado. Que barbaridade! Será que vai ter condição de transplantar o coração? Mas fui indo e conversando com os médicos, eu fui colocando na cabeça que é possível. [...] Aí eu digo: “Não”. Então não tenho mais medo da cirurgia, o importante é que quero sair bem [...] O que mais sinto é não ter transplante [...] mas uma hora aparece. (S2)

Observa-se que as expectativas referentes à cirurgia diferem entre os clientes, de acordo com o problema que os levou a precisar dela. O medo de quem espera um órgão para transplante é diferente do medo daquele que aguarda uma nova troca de válvula, por exemplo.

A ansiedade do cliente que aguarda o transplante decorre da possibilidade de morrer antes de conseguir um órgão para a cirurgia, enquanto a de outros vem da necessidade de submeter-se a uma cirurgia de risco, da possibilidade de sua vida interromper-se pelo evento da morte. Nesse sentido, a ameaça de interrupção da vida antes do tempo, quando se acredita que há muito por realizar, conduz a uma sensação de tarefa inacabada.

Existem muitas razões para não se encarar a morte calmamente. Ao estudar culturas e povos antigos, percebe-se que o homem sempre abominou a morte, talvez porque em seu inconsciente não haja espaço para imaginar um fim real de sua própria vida(13). Alguns sujeitos da pesquisa têm percepção da aproximação da finitude, mas relutam em explicitar em seus discursos o evento da morte claramente, como em alguns trechos citados:   

[...] lá no nosso lugar lá eles falam: “Ih, aquela lá foi pra Curitiba operar o coração. Vai voltar num pijama de madeira”. (S9)

Evidencia-se que falar explicitamente da morte é muito difícil, o que faz com que o cliente utilize metáforas para expressar essa possibilidade. A aversão à morte é um sentimento tão intenso que não permite falar nela naturalmente, como se não fosse um evento que faz parte da vida. O uso de frases que têm sentido figurativo para representá-la é muito comum, motivo pelo qual os enfermeiros, como profissionais envolvidos diretamente no cuidado, têm de aprender a perceber o medo da morte nas entrelinhas, nas lacunas deixadas pelas palavras, nas expressões de seu corpo, pois este é expressão, fala e linguagem(14). Por outro lado, sabe-se que a equipe de saúde nem sempre está preparada para aceitar a finitude dos corpos cuidados que ali se encontram. Geralmente os profissionais que lidam com o processo de morte e morrer no seu dia-a-dia, mesmo depois de esgotar todos os recursos disponíveis para promover-lhe uma morte digna, sentem o peso dessa perda e percebe-se impotente (15).

A maioria dos clientes em pré-operatório tem medo da morte, da cirurgia, da anestesia, da UTI e de sentir dor no pós-operatório (16-19).Todavia, outros medos afligem o cliente no período pré-operatório, como o medo da violação interior, não somente pela percepção da gravidade e morbidade que envolve o evento, mas também pela agressão que a cirurgia representa à sua integridade física.

Vale destacar que faz parte do protocolo médico orientar o cliente e sua família sobre os procedimentos que serão realizados, os riscos decorrentes da cirurgia e a recuperação pós-operatória na UTI. Essa conduta ética garante-lhes o direito de informação e segue o que preconiza a literatura, trazendo benefícios no pós-operatório, momento em que o preparo e a orientação prévios podem ajudar a diminuir o estresse e a prevenir complicações (18). Contudo, essas orientações são interpretadas de acordo com seu contexto de vida, deixando-o muitas vezes perplexo com a realidade a ser enfrentada. Às vezes esses clientes fragilizados e amedrontados tentam imaginar o que os espera com o desenrolar dos procedimentos e visualizam cenas que os agridem e atemorizam:

Então a gente fica apreensivo com o que vai fazer. Eles falam: “Não, tem que cortar, tem que fazer isso, tem que fazer aquilo”, né? “Tem que entubar e tal”, né? [...] Ah, é um negócio muito delicado mexer com o ser humano. (S5)

Preocupado? De ser cortado. Dizem que tem que cortar osso, depois fica, não pode abrir os braços, fazer força. [...] eu sei que vou ser cortado, agora, aonde, como eles vão fazer, o que eles vão me enfiar, não quero saber nada. (S7)

Em busca da cura, ou mesmo da mínima possibilidade de vida, qualquer intervenção torna-se pertinente, toda fragmentação do corpo aceitável (20). Porém, imaginar que para a realização da cirurgia cardíaca será necessário abrir um tórax é difícil e atemorizante e pode significar invasão do seu corpo, do seu mundo. O medo desta invasão justifica-se pela dificuldade que se tem de aceitar qualquer intervenção nesse espaço que é considerado único e, ao mesmo tempo, um todo, porque o corpo é o concreto da nossa existência, veículo do ser no mundo, além de ser o meio de acesso ao mundo e às coisas (14), também reproduz uma imagem, expressando conquistas, derrotas, anseios e alegrias. O corpo percebido é o corpo próprio, imaginado e vivido por inteiro, que reflete sua condição de estar no mundo; e é possuidor de universo de saber muito rico (21).

Algumas pessoas não gostam de seu corpo e outras são obcecadas pela imagem que ele reproduz. Para essas, aceitar as marcas impressas por cicatrizes cirúrgicas extensas causa sofrimento, como é observado no discurso:

Essa cicatriz pra mim, vai me marcar muito. Eu gosto de andar de minissaia, eu gosto de andar de bermuda, saber que eu vou ficar marcada! Acho que não estou com medo da cirurgia, eu estou triste pela cicatriz. (S8)

Na sociedade brasileira, a exposição do corpo tornou-se um hábito natural, influenciado pelo clima tropical e pela cultura. Esse contexto traz preocupação com a imagem e a beleza corporal, pois confere status àqueles que se mantém nos padrões impostos por essa cultura. Assim sendo, a alteração no corpo deixada pela cicatriz cirúrgica poderá ser vista como depreciação ou valorização da imagem corpórea, dependendo da estrutura psicológica de cada um e da influência exercida pelo seu meio sociocultural. Certamente, as cicatrizes deixadas pela cirurgia cardíaca serão lembranças de uma etapa significativa da vida para este cliente, porém, a maior transformação que ele sofrerá será fruto de seus momentos de reflexão, introjeção e conhecimento de si, ocasionados pelo processo perioperatório cardíaco.

 

            A esperança de vir-a-ser um novo corpo

A esperança não é produto da vontade do ser humano, mas de uma espontaneidade, cujas raízes escapam a ele, pois é genuinamente uma manifestação do homem, não se encontra uma razão que a explique nem na estrutura da vida biológica, nem na vida intelectual (22).

Ao transitar entre o medo de morrer na cirurgia e o desejo de tornar-se novamente uma pessoa sem dor, capaz de trabalhar, passear, sentir-se útil e com melhor qualidade de vida, o cliente deixa de lado os sentimentos de impotência gerados pela doença e vai à procura da solução de seu problema. Outro fator que o leva a enfrentar a situação é acreditar que a partir da cirurgia, será possível experimentar um futuro diferente, propiciado pela esperança de um novo corpo.

A esperança contribui não somente para a recuperação da saúde, mas para afastar as lembranças do período de maior sofrimento, que, ao ser incorporado, inscreve suas marcas no corpo já combalido (23).

Por mais que o avanço tecnológico venha contribuindo para a cura das doenças e aumentando a possibilidade de sobrevivência do homem, as fantasias com relação ao coração fazem com que a cirurgia cardíaca seja vista não somente como sinônimo de medo ou morte, mas sob uma dimensão de renascimento, de ressuscitação. Esse “renascer tem um sentido mais amplo do que voltar da morte – é começar uma vida nova, livre dos defeitos anteriores, uma nova chance, com novos valores e propósitos de vida.”(24:257)

O ser doente não é anormal, ele vivencia uma situação atípica, a doença e quer ser saudável, deseja voltar a ser o que era e ter saúde, ser sadio no futuro. Muitas vezes, ele perde o autocontrole e a liberdade, tendo de se entregar a outros que o conduzam à cura ou melhora de sua doença, fim tão desejado (25). Isso pode ser constatado abaixo:

A única coisa que eu sinto é que eu quero ter uma vida melhor do que a que eu estou vivendo, porque viver com dor, pra mim, não é vida. (S4)

Nesse sentido, a esperança é um sentimento que o faz prosseguir, é uma necessidade que se faz presente, ajudando-o a acreditar, a querer cumprir metas num futuro próximo.

[...] se Deus me ajudar, que eu passe por essa, então, vou ficar melhor, vou ficar uma pessoa sem problema [...]. (S4)

A pessoa acometida por uma doença crônica enfrenta mudanças em seu estilo de vida devido à enfermidade, a necessidade de tratamento, o controle clínico e possíveis internações hospitalares recorrentes (26). Desse modo, pode-se considerar que a doença cardiovascular provavelmente interfere na vida social dessa pessoa, já que a situação referida pode limitá-la em relação ao trabalho ou outra atividade que demande esforço físico e disponibilidade, constituindo-se num problema para ela. A perspectiva de encontrar soluções para sua condição de vida faz com que decida operar-se.

Em alguns discursos, evidencia-se o desejo do cliente vir-a-ser um trabalhador, aqui como condição essencial no seu processo de viver. Os sentimentos de inutilidade e incapacidade são constrangedores, principalmente, se essas pessoas tinham uma vida atribulada, cheia de afazeres e obrigações, e se eram responsáveis pelo sustento da família.

Quanta gente já fez, né? e continua fazendo... e volta a trabalhar normal, a viver normal, então... (S5)

A incapacidade na execução de várias atividades atribui aos corpos doentes sentimentos de inferioridade, inadequação, piedade e baixa auto-estima (27). Apesar da cirurgia cardíaca constituir-se num marco essencial ao tratamento do cardiopata, sabe-se que poderão persistir restrições físicas, alimentares, ao fumo, que precisará adaptar-se a medicamentos e exercícios, não adquirindo a qualidade de vida que esperava. No entanto, isso passa despercebido por ele nesse momento em que imagina voltar a ser saudável.

Nessa luta pela sobrevivência, o cliente enfrenta múltiplos desafios, sofre com a ausência dos parentes e de sua rotina que ficou lá fora, tem de se adaptar às normas e rotinas institucionalizadas e submeter-se a inúmeros procedimentos técnicos que fazem parte do protocolo cirúrgico. Os medos continuam presentes, mas, ao serem confrontados com a possibilidade de um amanhã diferente, tornam-se irrelevantes. A necessidade de cirurgia cardíaca faz com que o corpo enfermo faça um balanço existencial e reflita sobre os acontecimentos, enfrente seus medos e dificuldades, e torne-se esperançoso por melhores dias.  

            REFLEXÕES

O centro cirúrgico é visto pelo cliente como a reta final de seu tratamento, local onde ele não tem domínio sobre si e provavelmente, permaneça cercado dos medos descritos anteriormente. A análise dos discursos evidenciou a percepção do cliente em relação à proximidade da morte, o medo da violação e cicatrizes, a visão de que essa era a única opção de tratamento e a possibilidade de obter uma vida melhor, mediante o novo corpo conquistado após a cirurgia. Permitiu entender que para o cliente o contato com a doença cardíaca, a necessidade de comprometimento com o tratamento e as restrições que podem advir da cirurgia tornam-se ameaças constantes à sua integridade. Isso nos leva a acreditar cada vez mais que não adianta ter o domínio técnico-científico para o cuidado, se não se é sensível, se não se é capaz de perceber o corpo enfermo em seu contexto de vida.

É preciso que o discurso sobre a humanização dos serviços de saúde seja posto em prática o mais rápido possível, conscientizando a equipe de enfermagem sobre a importância de valorizar a subjetividade do outro, pois é ela que permite conhecê-lo em sua totalidade (28). A visita pré-operatória de enfermagem pode ser de grande utilidade para diminuir a ansiedade do cliente, se o enfermeiro não utilizá-la somente para fornecer-lhe orientações relacionadas ao procedimento cirúrgico, mas se considerar esse momento uma oportunidade de interação com o cliente. Essa visita pode ser feita pelo enfermeiro da unidade de internação ou do centro cirúrgico, visto que ambos têm competência e habilidade técnico-científica para tal.

             REFERÊNCIAS

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 Nota: extraído da dissertação “Sentimentos e percepções do cliente no pré-operatório de cirurgia cardíaca”, apresentada ao Curso de Mestrado em Enfermagem da UFPR em novembro de 2004.