Casal
Infértil em busca do filho desejado - estudo de caso clínico
Mônica OB Oriá, Lorena Barbosa Ximenes
Resumo. No Nordeste do Brasil a gravidez está culturalmente relacionada à prova da feminilidade (mulher) e da virilidade (homem), pelo que, saber-se infértil pode abalar as bases estruturais da união conjugal. Descrever a experiência de um casal infértil inserido no ambiente cultural do Nordeste que se submete à fertilização in vitro (FIV). Para tanto, realizamos um estudo de caso clínico utilizando abordagem qualitativa utilizando o Interacionismo Simbólico (Blumer, 1969) e a Análise Temática (Bardin, 1977) como referencial teórico e metodológico, respectivamente. O estudo nos revelou que se submeter à FIV é uma experiência repleta de conflitos e incertezas para o casal nordestino exigindo não apenas uma assistência especializada relacionada à reprodução humana, mas um cuidado holístico e especializado por parte da Enfermagem, considerando, de forma particular, os aspectos culturais e sociais.
Palavras-chaves: Infertilidade. Fertilização in vitro. Enfermagem. Cultura.
INTRODUÇÃO
A reprodução humana é um processo complexo que sofre influência de aspectos morfológico, funcional, emocional e comportamental, necessitando de uma harmonia entre estes, para que venha a acontecer sem riscos para a saúde da mulher e do bebê. Uma interferência na harmonia desses fatores faz com que uma parcela da população em idade fértil vivencie a experiência da infertilidade, o quê pode representar um violento golpe não só sobre os indivíduos, mas sobre os sonhos do casal, de seus familiares e amigos. Um casal é dito infértil quando mantém relações sexuais regulares (3 a 4 vezes por semana) durante um ano sem utilizar qualquer método contraceptivo e não alcança o objetivo da gravidez(1-2) .
Com a inserção e ascensão da mulher no mercado de trabalho ocorreram diversas mudanças no panorama sociocultural e político-econômico no Brasil e no mundo, e mesmo com a mulher se mantendo cada vez mais atuante nestes setores da sociedade, ela continua desejando a gravidez. Para a mulher, o ciclo gravídico-puerperal constitui o encerramento de um ciclo biológico, representando o ápice da realização feminina(3). Contudo, alguns casais se deparam com a infertilidade necessitando submeter-se a uma propedêutica especializada para identificar as causas do problema e receber a indicação correta para o tratamento.
Sendo a mulher responsável por acolher um filho em seu ventre, na maioria das vezes é ela quem inicia essa trajetória através de consulta ao seu ginecologista. A partir deste referencial busca profissionais especializados em reprodução humana para que possa ser feita uma avaliação detalhada e a indicação adequada para o tratamento, iniciando então, sua peregrinação por diversos consultórios médicos. Durante esse processo o casal vivencia momentos de crises e incertezas, podendo gerar sentimentos de culpa, depressão, angústia, impotência, isolamento, dentre outros(4-5) .
Para os casais com dificuldade de alcançar a gravidez restam alternativas de tratamento que incluem: tratamento clínico, cirurgias e técnicas de reprodução assistida. Para atender à demanda de casais inférteis do Ceará e estados vizinhos, nos últimos seis anos foram implantadas duas clínicas de reprodução humana em Fortaleza, as quais vêm auxiliando casais inférteis a realizar o sonho de maternidade e paternidade.
Contudo, dentre o total de gravidezes ocorridas no estado, não se tem dados estatísticos daquelas que foram oriundas de técnicas de reprodução assistida. Considera-se como técnicas de reprodução assistida os procedimentos que facilitam o encontro entre os gametas masculino e feminino, como a inseminação artificial e a fertilização in vitro.
A inseminação artificial está indicada nos casos de oligoastenozoospermia, endometriose leve, defeitos ejaculatórios e infertilidade de causa desconhecida. Já a fertilização in vitro (especialmente aquela que usa a Injeção Intra-Citoplasmática de Espermatozóide) deve ser realizada nos casos de dano tubário irreversível ou ausência de tubas uterinas, infertilidade masculina ou inexplicada, endometriose severa e nos casos em que a inseminação artificial não obteve sucesso(6).
As experiências da maternidade e paternidade podem ter diferentes significados para as pessoas de acordo com sua formação humana, espiritual e intelectual. Os significados da maternidade/paternidade também são influenciados pelas experiências de cada ser humano ao longo do seu processo de viver inserido em um contexto empírico particular.
As correlações entre gravidez e virilidade (homens) e gravidez e feminilidade (mulheres) estão, de alguma maneira, presentes no imaginário brasileiro resultante de uma educação castradora e higienista. De forma particular, alguns estudos (7) ratificam a importância da paternidade para a reafirmação da masculinidade. Especialmente na região Nordeste, a gravidez é culturalmente relacionada à prova da potência sexual masculina e capacidade da mulher em conceder um filho não só ao parceiro, mas à família. Ao se descobrir infértil e ao receber a indicação médica para submeter-se à uma fertilização in vitro os casais podem vivenciar momentos de crises e instabilidade.
Diante dessa possibilidade suscitou-nos o seguinte questionamento: como um casal inserido no contexto do Ceará vivencia o ciclo de tratamento da fertilização in vitro? Portanto, realizamos este estudo com o objetivo de descrever a experiência de um casal inserido no ambiente cultural do Ceará que se submete à fertilização in vitro.
Esta investigação trata-se de um estudo de caso clínico(8) utilizando abordagem qualitativa em que optamos por utilizar o Interacionismo Simbólico(9) como referencial teórico. O Interacionismo Simbólico está fundamentado em três premissas básicas: 1. o ser humano age com relação às coisas de acordo com os significados que elas têm para ele; 2. o sentido dessas coisas é derivado, ou surge, da interação social, que alguém estabelece com os seus companheiros; 3. os significados são manipulados e modificados mediante um processo interpretativo desenvolvido pela pessoa ao enfrentar as coisas que encontra no seu caminho.
Logo, o uso do interacionismo simbólico como referencial teórico se justifica pelo fato de viabilizar uma maior compreensão dos sentimentos, comportamentos e atitudes vivenciados pelo casal neste momento de sua vida.
Por sua vez, o estudo de caso é um importante método de pesquisa a ser implementado especialmente quando o pesquisador tem pouco controle sobre os fatos, quando o objeto de estudo se refere a fenômenos contemporâneos inseridos em algum contexto da vida real estudados, bem como quando se colocam questionamentos do tipo “como” e “por quê”(10).
O estudo foi realizado entre março e dezembro de 2002. Para a coleta de dados realizamos a observação participante de um casal que estava se submetendo à fertilização in vitro em um centro de reprodução humana de Fortaleza e uma entrevista. A observação participante ocorreu de forma sistemática sendo registrada em um diário de campo que foi utilizado como fonte para a análise dos dados. Além disso, durante toda a observação do casal a autora atuou na assistência de enfermagem como forma de intensificar o contato com o casal. A entrevista, de forma particular, foi realizada apenas com a mulher em decorrência da recusa do parceiro. No entanto este colaborou durante todas as etapas do tratamento aceitando o acompanhamento da pesquisadora e mantendo uma relação cordial com a mesma, contribuindo de alguma maneira para a construção dos significados aqui discutidos. Quanto a entrevista, utilizamos as seguintes perguntas norteadoras: Como foi para você saber que só poderia gestar por fertilização in vitro? O quê levou você a decidir por este tratamento? Como foi para você vivenciar o processo de fertilização in vitro?
Tendo sido a mulher nossa principal informante e considerando que na perspectiva do Interacionismo Simbólico(9) os objetos poderão ter significados diferentes para aqueles que estarão envolvidos no processo, de forma que cada pessoa reage a uma situação de acordo com a percepção que tem da natureza do objeto, consideramos que os significados aqui relatados foram construídos pela mulher enquanto protagonista do cenário social a qual estava vivenciando. O contexto empírico vai se compondo e recompondo à medida que a mulher interage consigo mesma, com o parceiro, com as demais pessoas que lhe são significativas, como a família, os amigos, a equipe de reprodução humana e a pesquisadora.
Para sistematizar nossa análise, optamos pela Análise Temática(11) o que nos possibilitou organizar os dados em temáticas e categorias. Assim, os dados foram empiricamente organizados nos seguintes temas: 1. Contextualizando o casal; 2. Descobrindo e convivendo com a infertilidade; 3. Vivenciando a fertilização in vitro. Esta última temática foi organizada em quatro categorias: a. O estímulo à fertilidade; b. A expectativa dos embriões; c. Abrigando o filho desejado; d. O sonho tornou-se real.
Como forma de respeitar os aspectos ético-legais da pesquisa em seres humanos, vigentes na Resolução Nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde(12), a qual define normas para garantir a privacidade, a segurança e a livre participação dos envolvidos em um estudo, obtivemos a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Ceará (Parecer nº 130/02) e o consentimento livre e esclarecido dos participantes, advertimos sobre a liberdade que os mesmos teriam em abandonar o estudo se assim acreditassem ser oportuno, bem como, concedemos, para resguardar a identidade dos informantes, um nome fictício ao casal (Raquel e Jacó - nome de um casal que experienciou a infertilidade na era pré-cristã).
APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS DADOS
Contextualizando o Casal
Raquel (28 anos) está casada com Jacó (34 anos) há oito anos. Ambos são católicos, mas não participam de nenhum movimento pastoral de sua paróquia. Jacó concluiu o ensino básico (1º grau) e Raquel o ensino médio (2º grau). Ambos são comerciantes e trabalham, em média, 40 horas semanais. O casal demonstrou uma forte relação com a família, especialmente com a mãe de Raquel, sendo esta a única pessoa que acompanhou o casal durante o processo de busca do filho.
Após o estabelecimento da união conjugal Raquel e Jacó evitaram filhos por seis meses e, depois disso, queriam ter filhos. Sendo assim, o casal vem há aproximadamente sete anos tentando a gravidez. Raquel e Jacó precisaram deslocar-se constantemente à Fortaleza a fim de realizar consultas e exames durante o processo de investigação da etiologia da infertilidade, pois residia, em casa própria, em uma cidade no interior do Estado, distante 60Km da capital.
Foram realizados todos os exames disponíveis e nada foi detectado em ambos os parceiros como fator etiológico para a infertilidade. Sendo desconhecida a etiologia da infertilidade, o casal se enquadra estatisticamente na estimativa de 10% das causas idiopáticas(13). O casal submeteu-se, inicialmente, a estimulação hormonal com coito programado, e, em seguida, a três inseminações artificiais, não obtendo o sucesso desejado. Em nenhum momento, durante a investigação diagnóstica, foi indicada cirurgia para Raquel ou Jacó.
Descobrindo e Convivendo com a Infertilidade
De acordo com o que observamos, e a partir dos relatos de Raquel, percebemos o quão difícil é para um casal saber-se infértil. Especialmente em se tratando de um casal que reside no interior do Ceará, onde ter um filho ainda é considerado um símbolo da masculidade e feminilidade. Aceitar a condição de ser infértil perpassa por um processo delicado. Algumas vezes os conflitos podem ser tão intensos que podem culminar no fim da união conjugal. Portanto, saber-se infértil é um momento doloroso para ambos os parceiros, bem como a expectativa do casal e a pressão social por um filho vêm desgastar ainda mais o enfrentamento do casal infértil, como podemos evidenciar pelo relato a seguir.
Eu fiquei chocada. Fiquei chocada porque justamente eu. Ter que passar por tudo isso. Eu sofro, ele sofre bastante também porque era a coisa que ele mais queria na vida era um filho. Você preste atenção que nós somos muito cobradas na sociedade por filhos, pelo menos eu... Não é que dependa, eu quero ser mãe. Quanto a isso não resta a menor dúvida mas nós somos muito cobradas pela sociedade.
Assim, o casal passa a viver uma crise psicológica que pode ameaçar a estabilidade conjugal e as relações sociais e profissionais(4; 14-17) .
Então no início foi muito turbulento porque ele dizia que a culpa era minha e eu dizia que a culpa era dele e a gente nunca chegava a um denominador comum, jamais. Realmente foi muito difícil. Chegou uma época que eu achei que o casamento ia acabar não existia mais como levar o casamento pra frente de jeito nenhum.
Portanto, vivenciar tal processo exige dos casais uma certa maturidade para refletir sobre todos os aspectos que estão envolvidos de forma a buscar soluções viáveis. Inicialmente é necessário que ambos os parceiros superem tabus e preconceitos, reflitam sobre seus valores e demais aspectos relacionados ao desejo de ter um filho. Logo, o significado de ter um filho e a busca do filho desejado é uma construção social que envolve sentimentos, comportamentos e atitudes(18).
Quando o casal concorda em buscar o auxílio na tecnologia biomédica ele deverá expor sua problemática mais íntima à uma equipe de profissionais habilitados para realizar uma investigação que consiste em realizar uma série de exames e, algumas vezes, cirurgias. Tal fato corrobora com a primeira premissa do Interacionismo Simbólico a qual afirma que o ser humano orienta as suas ações em relação aos objetos de acordo com o significado que elas tem para ele(9). Portanto, se o filho é algo significativo para o casal este não medirá esforços para conseguir realizá-lo. Se, para tanto, é necessário submeter-se a tratamentos cada vez mais sofisticados o casal decide por fazê-los.
A partir dessa decisão o casal, e especialmente a mulher, estabelece uma série de novas interações com vários objetos envolvidos em seu ambiente, como: objetos físicos (medicação, exames, aparelho de ultra-sonografia transvaginal), sociais (família, amigos, a equipe da reprodução assistida) e abstratos (medo, ansiedade, fé).
Ao conviver com a infertilidade o casal procurou resolver seus conflitos e divergências e começou a buscar estratégias para conseguir o filho tão desejado. Tendo o casal se submetido a diversos tratamentos sem obter o sucesso desejado, surgiu a oportunidade de fazer a fertilização in vitro, o quê exigiu diversas reflexões quanto ao risco do procedimento, custos, opinião da família, dos amigos e da igreja entre outros fatores durante o processo de decidir submeter-se a um tratamento dessa natureza.
Destarte, o casal resolveu realizá-la como última alternativa para ter um filho. Todo o tratamento foi mantido em sigilo, tanto dos amigos como dos familiares, porque Raquel e Jacó não conseguiam se desvencilhar do constrangimento de assumir para seu grupo social a sua condição de ser infértil. Apenas a mãe de Raquel acompanhou o casal ao longo dos sete anos de busca, exames e tratamentos, apoiando-o na decisão de realizar a fertilização in vitro.
Vivenciando a Fertilização in vitro
A. O Estímulo à Fertilidade
Nesta primeira etapa do ciclo de fertilização in vitro a mulher se submete a um tratamento clínico que possibilita o bloqueio do eixo hipotalâmico-hipofisário (realizado com acetato de neoprolide – análogo da GnRH) visando obter um maior domínio sobre o pico de hormônio luteinizante. Diversos estudos constataram que o estímulo hormonal antecedido pelo bloqueio hipotalâmico-hipofisário proporciona uma melhor captura de folículos e por conseguinte maiores chances de pré-embriões(6).
Assim, feito o bloqueio, inicia-se o estímulo folicular medicamentoso. Para tanto, Raquel se submeteu a aplicações diárias de medicações subcutâneas e intramusculares e avaliação plasmática de hormônio luteinizante e de Estradiol e ultra-sonografia transvaginal em dias alternados para avaliar o número e a maturidade dos folículos de forma a certificar-se da eficácia do esquema adotado, bem como evitar a síndrome do hiperestímulo, decorrente do excesso de estímulo hormonal que pode provocar náuseas, êmese, cefaléia, dores na região pélvica dentre outros sinais e sintomas(19). O uso da medicação teve diversas repercussões para Raquel.
O medicamento deixa a gente nervosa. Tinha dias que eu estava tão emotiva que eu começava a chorar (...) Tinha dias que eu estava desesperada (...) Então não foi uma coisa tão fácil que eu possa sair dessa sem futuramente me queixar de um trauma.
A cada ultra-sonografia Raquel chegava tensa pela expectativa do resultado. Ao ser informada da boa evolução dos folículos sua face relaxava e surgia um sorriso de vitória evidenciando uma interação simbólica, enfocando, agora, um objeto físico (aparelho de ultra-sonografia transvaginal) no processo interativo. A ultra-sonografia revelava que seu corpo permitiria ir em frente, que seu corpo não era de todo infértil e que a cada dia seu sonho se tornava mais real. Para Raquel essa primeira etapa foi bastante desconfortável pela “violência corporal” à qual precisou submeter-se diante de tantas medicações e exames constantes afirmando que:
Ao longo do tratamento eu já estava toda roxa (...) Também as ultra-sonografias transvaginais que realmente são incômodas, os exames de sangue. Então isso para a mulher é muito doloroso.
Ao iniciar o ciclo de fertilização in vitro com o seu “corpo violentado” pela medicação e os exames, a mulher tem a ansiedade aflorada. Mas é capaz de superar a dor física e o desgaste emocional porque para ela o que mais importa é que tudo seja feito em prol de um filho, da realização de um sonho que simbolicamente representa a plenitude e complementaridade do casal.
Ciente das taxas de sucesso alcançadas por uma fertilização in vitro em diversos países, bem como na clínica em que o casal se submeteu à fertilização in vitro (em média 35%)(6), Raquel se sentiu insegura durante todo o processo e afirmava: “Estou dedicando 35% das chances à ciência e 65% à fé”. O relato de Raquel revela não só uma interação com um objeto abstrato (a fé), mas também a polissemia da relação risco-benefício em que a taxa de sucesso fica para a ciência (algo mais palpável e real mediante os recursos tecnológicos disponíveis), enquanto a taxa de risco (65%) é dedicada à fé, à divindade que pode providenciar a transposição da barreira do risco e conceder o aumento das chances de gravidez. Além disso, a interação com a equipe de reprodução humana e a pesquisadora foi importante para que o casal confiasse plenamente nos profissionais que o acompanhava.
B. A Expectativa dos Embriões
Chegada às condições ideais dos folículos ovarianos Raquel utilizou uma nova medicação com HCG (human chorionic gonadotrophine) para estimular a ovulação. Sendo assim, 35 a 37 horas depois, foi realizada a folículo-aspiração ou punção folicular (a captação dos óvulos para serem levados ao laboratório). Esse procedimento foi realizado por via transvaginal através de uma agulha acoplada ao guia do transdutor do ultra-som, sob efeito anestésico, sendo, dessa forma, necessário o suporte de um procedimento cirúrgico de baixa complexidade, e exigindo do profissional que o realiza um excelente conhecimento da anatomia pélvica pela ultra-sonografia para evitar complicações.
Raquel declarou sentir-se bastante ansiosa. Por ser uma experiência nova para ela e seu parceiro, sensações de vazio e insegurança se instalaram em seu ser. De acordo com Raquel, seu parceiro também estava muito nervoso e sentia-se constrangido em ter que coletar os espermatozóides através da masturbação.
Hoje é o dia da punção. Estou ansiosa. Está marcada para às 4:30 mas temos que chegar uma hora antes. O meu marido também está nervoso, ele acha muito constrangedora a coleta de sêmen.
Depois do procedimento, ao se recuperar do efeito anestésico, Raquel ficou mais tranqüila e segura. As chances de gravidez se aproximavam. Contudo, surgiu a expectativa de quantos óvulos poderiam vir a ser embriões, como esses embriões se desenvolveriam e quantos seriam transferidos para o útero de Raquel. Nesse momento, o casal se torna impotente e passa a esperar a atuação competente de um biólogo, que estando em um ambiente gélido e tecnicista pode auxiliar na realização do sonho do casal. No caso de Raquel, o número de folículos produzidos pelos ovários, direito e esquerdo, totalizaram 13 folículos, dos quais seis foram de ótima qualidade, com boas chances de se obter pré-embriões, segundo a avaliação do biólogo geneticista.
A equipe médica, bem como a pesquisadora, procurou manter o casal informado sobre a evolução da manipulação laboratorial para minimizar sua expectativa. Durante o tempo em que o casal esperava pelo resultado do número de embriões, este sempre se referia a fé. Tendo em vista que Raquel e Jacó não podiam interferir no processo laboratorial, nada lhes restava a não ser rezar para que tudo desse certo, de forma que ambos os parceiros intensificaram sua interação com sua religiosidade. A formação desse casal está fundamentada no cristianismo a partir dos preceitos da Igreja Católica Apóstolica Romana, a qual não aceita qualquer intervenção tecnológica no processo da concepção(20). Assim, o casal necessitou ir contra seus próprios princípios religiosos para buscar seu sonho de ter um filho, ao mesmo tempo em que a fé subsidiou indubitavelmente o processo interativo com um Deus onipotente que poderia conceder-lhe o filho desejado.
Após alguns dias o casal foi comunicado de que dos seis folículos iniciais desenvolveram-se cinco embriões viáveis para a transferência embrionária.
Para o casal o dia da transferência embrionária é muito importante. Neste dia, ‘seu filho estará pronto no útero da mulher’, as possibilidades tornam-se mais reais, quase palpáveis. A ansiedade foi notória nas faces de ambos. Raquel nos revelou que nem dormiu bem, e sua maior preocupação era decidir quantos embriões transferir e o que fazer com os demais, afirmando que:
Só quem passa por esse problema consegue compreender as dúvidas e inseguranças que fazem parte da vida das mulheres durante essa busca.
O Conselho Federal de Medicina(21) ainda permite que sejam transferidos no máximo quatro embriões para evitar complicações maternas em decorrência de gravidez múltipla. Contudo, há uma discussão a nível internacional(22) quanto à possibilidade de reduzir esse número para apenas dois embriões considerando o aumento do número de gravidezes múltiplas ao longo dos anos em que se realiza a fertilização in vitro em diversas regiões do mundo.
Dessa forma, Raquel teve como indicação médica receber três embriões e realizar a criopreservação dos demais (2 embriões) para uma segunda tentativa de gravidez. Receber os pré-embriões não só resultou em alegria e euforia, mas que tudo chegou ao fim. Tudo foi consumado. Agora só depende da natureza. Fora feito o quê se podia. A espera pelo resultado gerou uma grande expectativa e, enquanto a gravidez não se confirmava através dos exames, Raquel permanecia em repouso com o intuito de não fazer qualquer esforço físico que pudesse colocar todo o processo a perder.
D. O Sonho Tornou-se Real
A espera pelo dia de fazer o teste de gravidez é desgastante em decorrência da ansiedade e da expectativa do resultado, surgindo uma sensação de impotência no casal, que nada mais poderia fazer a não ser esperar. Todos fizeram a sua parte. O que a ciência tem de mais moderno para tentar solucionar o problema de casais inférteis, Raquel e Jacó tiveram acesso. Agora era a natureza quem iria decidir. Quinze dias depois o resultado: POSITIVO. A gravidez era uma realidade. O sonho tornou-se real, a euforia, a alegria transbordam do coração. Mais algumas semanas e a ultra-sonografia revelou que não era apenas um, mas dois filhos estavam para chegar. Raquel realizou o pré-natal com o mesmo médico que a acompanhou durante o diagnóstico e tratamento da infertilidade, a gravidez transcorreu sem complicações, e ao final de todo processo de concepção e nascimento Raquel relata:
Os meninos nasceram com 36 semanas. Apesar de terem vindo antes do dia marcado apresentaram ótimo peso e saúde excelente. São lindos e representam hoje a maior bênção de nossas vidas. Tenho certeza que todo o sacrifício valeu a pena e os momentos difíceis que antes representavam desilusão e angústia, hoje tem sabor de vitória.
Saber da chegada dos filhos tão queridos e de toda a alegria vivenciada não só pelo casal, mas pela família e amigos de ambos, proporcionou uma grande alegria também para a equipe de reprodução humana e à pesquisadora que se regojiza junto com a nova família que se inicia.
Nesse emaranhado de situações, a Enfermagem foi considerada relevante, pois o casal interagiu com a pesquisadora repercutindo favoravelmente no modo de vivenciar os sentimentos, comportamentos e atitudes durante as fases da fertilização in vitro, como podemos verificar pelo depoimento abaixo:
Foi muito bom conversar com você. Seria muito interessante que os hospitais investissem em enfermeiros que interagissem com os pacientes, com certeza os tratamentos teriam melhores resultados e o fardo seria mais leve.
A partir das premissas do interacionismo simbólico evidencia-se que o casal age em relação à gravidez de acordo com o significado desta para o casal. Além disso o significado da gravidez é derivado da interação que o casal estabelece com a rede social de seu ambiente, recebendo, inclusive, influências culturais. Dessa forma, pudemos perceber quão significativo é ter um filho para um casal cearense. Tal significado foi construído a partir da experiência individual de cada um dos parceiros e do casal em conjunto ao longo de seu processo de viver imersos em um contexto social e cultural que valoriza e cobra o exercício da maternidade/paternidade.
Diante das dificuldades de concepção o casal não mede esforços e busca no conhecimento médico uma solução para o problema e se submete às diferentes terapêuticas que podem conceder-lhe a esperança de ter um filho, iniciando por técnicas menos complexas e onerosas até chegar à fertilização in vitro. Esse filho é tão significativo para o casal que mesmo realizando diversos tratamentos e omitindo sua problemática de pessoas significativas que a priori poderiam ser fonte de apoio, o casal se reserva e segue o seu caminhar em busca do filho querido.
IMPLICAÇÕES PARA OS SERVIÇOS DE SAÚDE E ENFERMAGEM
Além da compreensão da importância da maternidade e paternidade no Nordeste do Brasil, enfocando de forma particular a realidade de um casal cearense, a realização deste estudo veio ampliar a nossa visão diante da questão da saúde reprodutiva nos serviços de saúde pública.
No Brasil, o sistema de saúde atual preconiza o direito à concepção e à contracepção. No entanto, diante das condições socioeconômicas desfavoráveis de um grande percentual da população, os serviços de saúde pública estão focalizados no planejamento familiar, com uma certa ênfase na contracepção, o que nos fez refletir sobre a importância de se reestruturar os serviços de saúde existentes, de forma a contemplar as necessidades de seus usuários, pois independente de classe social, existem casais que almejam ter um filho.
Vale ressaltar que em países em desenvolvimento, como o Brasil, existem altas taxas de infertilidade secundária (mulheres que vivenciaram em algum momento de suas vidas a experiência da gravidez e não conseguem mais gestar) possivelmente em decorrência de infecções pós-aborto ou pós-parto e doenças sexualmente transmissíveis(23). A partir destes problemas de saúde pública existentes nos municípios brasileiros pode-se estar construindo um contingente populacional que necessitará de assistência médica especializada para no futuro conseguir o filho desejado.
No entanto, um ciclo de fertilização in vitro é caro o suficiente para tornar seletiva a sua clientela, restando para muitos casais a opção de esperar anos em longas filas nos hospitais de ensino que oferecem o tratamento gratuitamente.
Em 12 de fevereiro de 2003 um telejornal da rede brasileira de televisão veicula a informação de que um laboratório que custou R$ 1 milhão vinculado ao Hospital das Clínicas de São Paulo foi inaugurado e considerado o maior centro latino-americano de medicina reprodutiva. O referido centro realizará o atendimento aos casais inférteis gratuitamente. Segundo a mesma fonte o centro está preparado para diagnosticar e tratar mais de 50 causas diferentes para a infertilidade, de tal forma que os médicos acreditam que a maioria dos casais resolva seu problema com tratamentos simples e baratos, sem a necessidade de submeter-se à técnicas mais onerosas para o sistema público de saúde. O laboratório também funcionará como escola para formação médica.
Contudo, como a investigação e o tratamento da infertilidade demandam um certo tempo, casais de outros estados podem não ter acesso a este serviço. Vale ressaltar que casais que moram em estados mais distantes precisariam assumir altos custos de transporte, hospedagem e alimentação inviabilizando mais uma vez o acesso a este serviço.
Tal problemática além de despertar-nos para uma nova dimensão do cuidado aos usuários dos serviços públicos de saúde, permite-nos abrir um painel de discussão sobre a democratização ao acesso dos serviços de reprodução humana no Brasil.
Recentemente o Ministério da Saúde tem despertado para essa problemática. Em março de 2005 o Ministério da Saúde lançou a Política Nacional de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos que utiliza como base o documento intitulado “Direitos Sexuais e Direitos reprodutivos: uma prioridade de governo”. Tal política aborda o planejamento familiar, a esterilização cirúrgica voluntária, saúde e prevenção nas escolas e a introdução da reprodução humana assistida no SUS(24).
Contudo, somente a sensibilização do Ministério da Saúde não é suficiente; e além de políticas e tecnologias são necessários recursos humanos capacitados e sensibilizados para atender às reais necessidades dessa clientela no serviço público.
Outro aspecto relevante é que a maioria dos centros de reprodução, em especial àquele em que realizamos o estudo, funciona basicamente com uma equipe constituída por médicos e biólogos. Tal fato nos fez perceber que estes profissionais não conseguem proporcionar a seus clientes uma assistência que viabilize um cuidado que vá além do biológico, abrangendo os conflitos vivenciados pelos casais e a educação em saúde, sendo necessário não só a inserção do enfermeiro mas de outros profissionais neste campo de atuação como forma de proporcionar uma compreensão e assistência mais humana e holística, pois o enfermeiro também pode ser um profissional relevante durante todo o processo de fertilização in vitro, promovendo um cuidar que atenda às reais necessidades não só do casal infértil mas das famílias de ambos os parceiros que vivenciam esse dinâmico contexto(25).
Ressaltamos que por se tratar de um estudo de caso realizado em um contexto particular os achados não permitem generalizações irrestritas. O contexto e as necessidades dos casais inférteis de outras regiões do país podem exigir uma assistência diferenciada, portanto outros estudos são necessários para que possamos consolidar um conhecimento e estratégias de cuidado para esta população.
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