Argelda Maria Cortes Guimarães1; Marina Borges Teixeira2
1 Faculdades Santa Marcelina, Brasil; 2 Universidade Guarulhos, Brasil.
Abstract. Concerned as I was, I started to observe when the nursing staff members were closest to discomfort-generating situations while dealing with death; that is when I noticed that those moments initiated while preparing the body after death. A body that Merleau-Ponty links to being in the world; one’s own body, a lived body and from which one can exist in the world and relate to others and to things. This is a qualitative phenomenological study with assumptions based on existential phenomenology as a reference point. It was conducted in a public hospital in the city of São Paulo, in a medical and surgical clinic with nurses and nurses’ aides, from May to July 2008. The study presented three ontological unifications: the reflection of one’s self, the sense of continuity and the search for a new situation. This paper may foster other studies which will analyze this discomfort more in-depth, namely, “what it means for the nursing staff to prepare the body after death”.
Keywords: Death; Human Body; Qualitative Research; Nursing.
Resumen. Bastante preocupada, empecé a observar en que momentos miembros del equipo de enfermería estaban más cercanos de situaciones generadoras del incomodidad al versar con la muerte y me he dado cuenta que esas situaciones comienzan durante el preparo del cuerpo tras la muerte.Cuerpo que Maurice-Ponty establece una relación con el ser en el mundo , el cuerpo propio, el cuerpo que tenía vida, a partir del cual pueda estar en el mundo con los demás y con las otras cosas.Investigación calitativa-fenomenológica teniéndose en cuenta los presupuestos de la fenomenología existencial su referencia.Relizado en un hospital público , en el municipio de São Paulo , en una clínica médica-quirúrgica con ayudantes de enfermería y enfermeros , durante los meses de mayo hacia julio de 2008 . El estudio presentó tres unificaciones ontológicas: El reflejo de simismo, El sentido de la continuidad y búsqueda de una situación nueva que podrá significar algo que empiece otros estudios en la profundización de esta inquietud que es“ como es para el equipo de enfermeros cuidar el cuerpo tras la muerte”
Descriptors: muerte;cuerpo humano; investigación cualitativa;enfermería
Resumo. Preocupada comecei a observar em que momentos os membros da equipe de enfermagem estavam mais próximos de situações geradoras do desconforto ao lidar com a morte e percebi que essas situações iniciavam-se no preparo do corpo após a morte. Corpo que Merleau-Ponty estabelece uma relação com o ser no mundo, o corpo próprio, o corpo vivido, a partir do qual possa estar no mundo em relação com os outros e com as coisas. Pesquisa qualitativa-fenomenologica tendo os pressupostos da fenomenologia existencial seu marco de referência. Realizado em um, hospital público do município de São Paulo, numa clínica médica-cirúrgica com auxiliares de enfermagem e enfermeiros, nos meses de maio a julho de 2008. O estudo apresentou três unificações ontológicas: O reflexo de si mesmo, O sentido da continuidade e Busca de uma nova situação. Que poderá significar um início para outros estudos no aprofundamento dessa inquietação que é “ como é para a equipe de enfermagem preparar o corpo após a morte”.
Descritores: morte, corpo humano, pesquisa qualitativa, enfermagem
Introdução
Trabalhei em vários hospitais e a presença da morte sempre me acompanhou, mas percebia que não estava sozinha nesse desconforto; a equipe de auxiliares e várias colegas de trabalho também sentiam isto. Quando comecei a trabalhar na escola, julguei que tinha me afastado dessas situações, mas continuo me deparando com ela freqüentemente no ensino teórico- prático.
Preocupada comecei a observar em que momentos os membros da equipe de enfermagem estavam mais próximos de situações geradoras do desconforto ao lidar com a morte e percebi que essas situações iniciavam-se no preparo do corpo.
O corpo, reconhecido no cuidar, corresponde a todo um investimento feito pela equipe de enfermagem; quando o resultado não é o esperado, extinguem-se as funções vitais, o corpo morre, a equipe tem um sentimento de perda, tristeza, angústia, impotência e frieza (1).
Preparar esse corpo para entregar à família e à sociedade faz parte das atribuições dessa equipe. Um dos métodos adotados para esse preparo é o tamponamento das cavidades com algodão; outro método, inicialmente discutido, trata-se de uma pesquisa feita por mim anteriormente, em 2001, que consiste em aspirar a boca, nariz e pingar três gotas de vela na cicatriz umbilical, sendo um método menos traumático e violento para o corpo(2).
Retomando agora as minhas inquietações iniciais, percebo que elas tornaram-se mais claras e visíveis. Minha preocupação não é com a morte em si, mas sim compreender como é cuidar do corpo do paciente após a morte. Como é para os membros da equipe de enfermagem essa ação?
O método qualitativo, segundo Minayo(3), é o que se aplica ao estudo da história, das relações, das representações, das crenças, das percepções e das opiniões, produto das interpretações que os humanos fazem a respeito de como vivem, constroem seus artefatos e a si mesmo, sentem e pensam.
Existem várias abordagens qualitativas e de sua leitura, escolhemos a fenomenológica, pois “a fenomenologia propõe-se a compreender o homem a partir de uma realidade vivenciada por ele, intencionalmente, de forma envolvente e compartilhada com seu mundo vida”(3).
A Fenomenologia pensada por Husserl é uma volta ao mundo vivido, ao mundo da experiência, que, para ele, é o ponto de partida de todas as ciências. A Fenomenologia propõe descrever o fenômeno, e não explicá-lo ou buscar relações causais, volta-se para as coisas mesmas como elas se manifestam(4,5).
O método fenomenológico começa com uma descrição, uma situação vivida no cotidiano. Parte de uma posição anterior à do pensamento reflexivo, chamado de pré-reflexivo, que consiste na “volta às coisas mesmas”. O pesquisador obtém depoimentos sobre aquilo que está diante dos seus olhos, tal como aparece. O pesquisador para que possa des-velar o fenômeno investigado, inicia interrogando-o. Pode-se dizer que os depoimentos descrevem “a presença do dado”, não a sua existência.(6) A descrição se dá, então, na experiência do sujeito que experiência determinada situação. É dessa maneira, situando-se, que o fenômeno se ilumina e se des-vela para o pesquisador(7,8).
Nesse momento, é importante a atitude fenomenológica adotada pelo pesquisador. Ele procura deixar de lado todo e qualquer pensamento predicativo, concepções, julgamentos que possa ter. Ao fazer esse movimento, o pesquisador está colocando o fenômeno em epoché. , trabalhando com a descrição do fenômeno, buscar a sua essência, a parte mais invariável da experiência, tal como situada num contexto(9,10).
A fenomenologia tem como ponto essencial a intencionalidade da consciência, entendida como a direção para compreender o mundo(4,5,11).
No entender de Husserl, “consciência é sempre consciência de alguma coisa”, sendo primordial uma abertura para o mundo, para a apreensão do objeto. A consciência só é consciência se estiver dirigida para o objeto, do mesmo modo que um objeto só é objeto se estiver dirigido para uma consciência. Portanto, há uma existência intencional do objeto na consciência, ou seja, um ato de ligação entre o sujeito e o objeto(12).
Nesse sentido, a tarefa do pesquisador será analisar as vivências intencionais da consciência para perceber como produz o sentido do fenômeno e chegar à sua essência. A redução fenomenológica é o recurso fundamental para garantir a descrição fiel do fenômeno, selecionando as partes da descrição que são consideradas essenciais. O objetivo é isolar o objeto da consciência, como os sentimentos, as coisas, aspectos significativos que constituem a experiência vivida do sujeito. A redução põe em evidência a intencionalidade da consciência voltada para o mundo, ao colocar entre parênteses a realidade como a concebe o senso comum, e purificar o fenômeno de tudo o que comporta de “inessencial” e acidental, para fazer aparecer o que é essencial. Husserl concebeu uma técnica que dá ao pensamento a certeza de reter só o essencial do fenômeno em estudo. Esse processo chama-se variação eidética, e consiste em imaginar todas as variações possíveis do objeto em estudo, a fim de se identificarem os componentes do objeto que não variam, os invariantes, que definem a essência do objeto (6,13).
Neste trabalho de pesquisa, que busca compreender os comportamentos da equipe de enfermagem ao se relacionar com o corpo morto, proponho-me a seguir o percurso fenomenológico fundamentado em Merleau Ponty.
Merleau-Ponty, um dos mais fiéis discípulos da fenomenologia de Husserl, não mantém com ele, contudo, filiação cega e dogmática, fundamentando sua própria teoria no comportamento corporal e na percepção
A percepção é o ponto central das obras de Merleau-Ponty, ele procura superar o dualismo entre o sentir e o entender, defendendo a interação entre ambos. Numa relação de conhecimento, é necessário um mergulho no sensível, unindo o sujeito que conhece o objeto, ao objeto que é conhecido(14).
Merleau-Ponty mergulha no sensível, tem uma atenção especial na forma de conceber os sentidos, não podendo ser estudado por meio de um juízo intelectual, mas conjugada a um corpo, cuja ação cotidiana, os atos inconscientes predominam sobre o consciente e toda atividade, reflexiva ou não, tem como fundamento a percepção do mundo. Ela denuncia a presença de um mundo anterior ao pensamento reflexivo, revelando que a reflexão, sempre posterior à experiência vivida, deve voltar-se para si mesma e refletir sobre o pré-reflexivo, anterior a ela. O pré-reflexivo é assim uma espécie de inconsciente, jamais manifesto em sua totalidade por um ato de vontade da consciência e da reflexão(14). Esses dois momentos se interagem pelos órgãos do sentido mostrando graus de clarificação do mesmo fenômeno. Nossa percepção é a expressão de um situação dada, consciente de alguma coisa, cujo objeto é sempre objeto para uma consciência.
Na “Fenomenologia da Percepção”, Merleau-Ponty trata do corpo, o corpo próprio, o corpo vivido, a partir do qual posso estar no mundo em relação com os outros e com as coisas. Para ele, o corpo é “nosso ancoradouro no mundo” ou “o nosso meio geral de deter um mundo”.
O corpo encontra-se engajado em um mundo, com um projeto que desenvolve a medida que o executa, tendo a capacidade de improvisação, criatividade, adaptação e transformação de objetos, aberto a situações reais e situações imaginárias, sendo ao mesmo tempo sujeito e objeto, demonstrando a sua ambiguidade perante situações vividas, expressando-se pela linguagem.
Linguagem que para Merleau-Ponty é uma modalidade do corpo, sendo considerada extensão do corpo. O desenrolar das idéias anima as palavras, assim como o mundo anima nosso corpo(14). Ao mencionar a linguagem com essa importância, observamos que ela manifesta o mundo, a vida, o gesto e aparece como uma convivência espontânea que expressamos, como os movimentos do nosso corpo.
A dialética proposta por Merleau-Ponty, denominada dialética sem síntese, esclarece a concepção de ambiguidade, no sentido de que nunca chega a uma superação absoluta. O homem, nesta visão, é um eterno vir-a-ser, sempre em movimento, por isso numa dialética sem síntese. Daí ser Merleau-Ponty denominado o filósofo da ambiguidade, esse termo compreendido como busca e transformação contínuas, o que leva o homem sempre adiante, num vir-a-ser de possibilidades.
Na visão de Merleau-Ponty(12), o espaço não deve ser entendido como ambiente físico, exterior, onde as coisas o os objetos se alinham, e sim como um espaço existencial, que reflete como o homem vive sua existência e como ele estabelece essa relação, uma vez que “ser corpo é estar atado no mundo, e o nosso corpo não está no espaço, ele é no espaço”.
Abertura, conforme Merleau-Ponty(12) significa estar no tempo, estar aberto para cada momento, contemplar a experiência de um modo consciente. Isso torna cada instante do tempo significativo, importante e preciso.
Esses conceitos relativos à estrutura espaço-temporal da percepção dizem respeito quando solicito as descrições de vários sujeitos sobre determinado fenômeno que investigo, compreendo que cada um dos sujeitos a faz segundo a sua perspectiva de perceber o fenômeno, e as percepções em tempo e locais diversos, por pessoas diferentes(4).
No momento seguinte, quando faço a interpretação fenomenológica dos dados, a visão da estrutura do fenômeno é compreendida dentro da minha perspectiva de pesquisador, que é uma outra perspectiva, outro campo, outro horizonte, agora o do conhecimento científico. Esses dados interpretados permitem-me atingir um campo específico de generalidades, que posso afirmar pertencerem à estrutura geral do fenômeno.
Na perspectiva, ao refletir sobre a questão que me inquieta neste trabalho (como a equipe de enfermagem vivencia a sua experiência de preparar um corpo após a morte), busco a compreensão do vivido pela equipe na relação com um mundo já dado, que está aí, que seus membros necessariamente terão de enfrentar. Nas suas descrições, focalizo a sua percepção da morte, as vivências atribuídas pela sua consciência nesta experiência de preparo do corpo e especialmente os significados da relação com o corpo, ao qual deram cuidados.
A fenomenologia existencial de Merleau-Ponty, que trata basicamente do ser no mundo, na sua facticidade e liberdade de escolha, que tem a percepção como um ponto central, como um processo de integração entre o mundo exterior e o mundo interior; mundo este localizado em um corpo vivo, em que o sentido, a estrutura, o arranjo espontâneo das partes se faz presente de forma intensa e em toda a experiência vivida, assim como procura um equilíbrio entre o sentir e o entender pode, no meu entender, oferecer contribuições importantes para o estudo que proponho.
Metodologia
Região de inquérito é a região de perplexidade, o local transparente das preocupações do pesquisador, em que é possível determinar aquilo que deve ou que vai ser feito. Neste estudo foi uma clínica médica-cirúrgica, com 36 leitos de um Hospital Público do Município de São Paulo, com 110 leitos no total, classificado como de pequeno porte, localizado na zona leste, que atende crianças, adultos e idosos. Local onde foi percebida a dificuldade dos funcionários em falar do tema.
O período de coleta de dados ocorreu entre março a julho de 2008. O instrumento de coleta foi à entrevista, realizada individualmente, desenvolvidas em uma sala da clínica médico-cirúrgica, para propiciar maior privacidade, no horário mais adequado às necessidades da clínica e do funcionário.
Participaram desta pesquisa 06 enfermeiros e 56 auxiliares de enfermagem, dos períodos diurno e noturno, de ambos os sexos, que preencheram os seguintes critérios de inclusão: terem desenvolvido a ação do preparo do corpo após a morte pelo menos uma vez na vida profissional, concordarem em participar, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e que se propuseram a responder a questão norteadora espontaneamente:”Como é para você preparar o corpo após a morte”.
Durante o encontro, houve uma relação empática entre a pesquisadora e todos os participantes que estavam sendo entrevistados.
Ver e observar em uma entrevista de metodologia fenomenológica é portanto captar a maneira de o participante vivenciar o mundo. A entrevista exprime-se no movimento do corpo do participante, expressão do olhar, nas modulações de sua existência(15). Os discursos foram identificados com nomes de pedras preciosas, por causa de sua dureza, significam um símbolo de poderes eternos e divinos. Representam também a terra, a solidez e tudo o que é concreto(16), assim é com a morte, no meu entendimento.
O projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo (Parecer nº.040/2008-CEP/SMS).
A análise dos discursos deve refletir a compreensão da pesquisadora entre aquilo que visamos e aquilo que é dado, entre a intenção e a efetuação, tendo o seu corpo como ancoradouro em um mundo.
Mundo este que segundo Merleau-Ponty está já constituído, mas também não está nunca completamente constituído. O mundo percebido não é apenas meu mundo, é nele que vejo desenharem-se às condutas de outrem, elas também o visam e ele é o correlativo, não somente de minha consciência, mas ainda de toda consciência que eu possa encontrar.
Para que a análise se aproximasse dos pressupostos filosóficos de Merleau-Ponty, segui os passos preconizados por Josgrilberg(17). Trata-se de detectar as Unidades de Sentido (palavras ou frases resgatadas dos discursos, que dão sentido ou respondem ao meu objetivo), agrupá-las, categorizá-las e proceder a uma releitura a partir de categorias existenciais contidas no referencial filosófico adotado, enquanto fio condutor da análise dos dados.
As categorias existenciais de Merleau-Ponty abrangem os temas: corpo, mundo, espaço, tempo e liberdade, para entendimento da percepção. Partindo desses temas, iniciei a leitura e releitura dos discursos dos membros da equipe de enfermagem, procurando identificar unidades de sentido; isto é, aspectos dos depoimentos que tinham significado para mim e que respondiam ao meu objetivo.
Após a seleção dos trechos dos discursos, eles foram agrupados conforme as convergências (aspectos semelhantes). Posteriormente, cada agrupamento revelou um núcleo de pensamento, uma idéia central de todos os trechos ali contidos que possibilitou a identificação de três diferentes categorias temáticas, aqui denominadas de Unificações ontológicas, que desvelaram o que a equipe de enfermagem vivencia ao preparar o corpo após a morte: O reflexo de si mesmo, o sentido de continuidade e buscando uma nova situação.
Após a organização de todos os agrupamentos, procedeu-se à análise de cada uma das Unificações ontológicas, o que basicamente compõe a descrição dos resultados obtidos.
Discussão
Os doze colaboradores em sua maioria com idade entre 31 a 37 anos são casados, com mais de quatro anos de formados, sendo 03 enfermeiros e 09 auxiliares, categorias existentes no hospital pesquisado. Quatro tinham freqüentado curso sobre o tema morte e morrer, durante a vida profissional.
O reflexo de si mesmo
Corpo, para Merleau-Ponty, é o veículo do ser no mundo, e ter um corpo é, para um ser vivo, juntar-se a um meio definido, confundir-se com certos projetos e empenhar-se continuamente neles . Corpo que é a razão de ser da profissão de enfermagem com quem interagimos o tempo todo, corpo que, para Foucault, é uma peça dentro de um jogo de dominações e submissões presentes em toda a rede social, que o torna depositário de marcas e de sinais que nele se inscrevem, de acordo com a efetividade desses embates, que, por sua vez, têm na corporeidade seu “campo de prova”(18).
Corpo é meu ponto de vista sobre o mundo, como um dos objetos desse mundo, corpo objeto, que é abandonado e reportando-me ao corpo do qual tenho a experiência atual (corpo vivido). Só posso compreender a função do corpo vivo realizando-a eu mesmo e na medida em que sou um corpo que se levanta em direção ao mundo.
Essa direção ao mundo necessita de estímulos dando “consciência” e movimentos nascentes em nosso corpo, levando a reflexo e uma atenção à vida. Na realidade, os próprios reflexos nunca são processos cegos: eles se ajustam a um “sentido” da atuação, exprimem a nossa orientação para um “meio de comportamento”. É essa presença global da situação que dá sentido aos estímulos parciais e que faz contar, valer ou existir para o organismo.
Na medida em que o corpo é definido pela existência em si, ele funciona uniformemente como um mecanismo, para poder afirmar uma verdade, o sujeito efetivo precisa primeiramente ter um mundo ou ser no mundo, quer dizer, manter em torno de si um sistema de significações cujas correspondências, relações e participações não precisam ser explicitadas para ser utilizadas. O sujeito normal penetra no objeto pela percepção, assimila sua estrutura e através de seu corpo, o objeto regula diretamente seus movimentos. Observo os objetos exteriores com meu corpo, eu os manejo, inspeciono-os, dou a volta em torno deles.
Entre os vários momentos de entrar em contato com o corpo cuidado, está o processo de morrer e na morte, trazendo a vida da consciência – vida cognoscente, vida do desejo ou vida perceptiva – que é sustentada por um “arco intencional” que projeta em torno de nós nosso passado, nosso futuro, nosso meio humano, nossa situação física, nossa situação ideológica, nossa situação moral, ou antes, que faz com que estejamos situados, em todos esses aspectos.(20)
Como nos relata Ágata : “hoje, se tem que fazer, sou a primeira a me prontificar, é só perguntar, eu sou a primeira. No hospital anterior, que eu estava trabalhando, todo mundo já falava é Ágata, pode chamar a Ágata. Hoje não, já gosto de fazer, gosto mesmo”.
Isso significa que o preparo do corpo pós-morte não é apenas uma experiência para o corpo cuidador(19), mas sim, uma experiência deste no mundo, o que dá um sentido motor às ordens verbais.
Trata-se de um saber que está nas mãos, que só se entrega ao esforço corporal e que não se pode traduzir por uma designação objetiva.
Constatamos isso em alguns discursos:
“juntamente com a equipe” – Quartzo
“pegou o material e nós fomos fazer” – Ágata
O hábito é apenas um modo desse poder fundamental, diz-se que o corpo compreendeu e o hábito está adquirido, quando ele deixou de ser novo, quando assimilou a si um novo núcleo significativo, o que se encontra descrito nas seguintes falas:
“fase normal” – Opala
“um processo natural” – Rubi
“um processo natural da vida” – Água marinha
Nosso corpo é um conjunto de significações vividas que caminha para o seu equilíbrio, assim a visão, a audição, a sexualidade e o corpo não são apenas os pontos de passagem, os instrumentos ou as manifestações de existência pessoal: esta retoma e recolhe em si aquela existência dada e anônima.
Ao preparar o corpo cuidado morto, deparamos com um corpo sem vida, sem fala, sem expressão, sem presença no mundo, ou com muita presença no mundo e vemos nosso reflexo, que é relatado nos discurso:
“mexia com o morto, como se sentisse dor” – Esmeralda
“é a gente no lugar” – Esmeralda
“você está fazendo em você mesma” – Diamante
O fenômeno apresenta-se àquele mesmo que o percebe como fenômeno em si, e o coloca como um verdadeiro em-si-para-nós. Nossa percepção no contexto de nossas ocupações se põe sobre as coisas apenas o suficiente para reencontrar sua presença familiar. Nós a veremos, se colocarmos em suspenso nossas ocupações e dirigirmos a ela uma atenção metafísica e desinteressada.
O gesto fonético realiza, para o sujeito falante e para aquele que o escuta, uma certa estrutura da experiência, uma certa modulação da existência, exatamente como um comportamento de meu corpo investe os objetos que me circundam, para mim e para o outro, de uma certa significação.
O Sentido da Continuidade
A percepção não pode separar-se de um fundo que, enfim, é o mundo que percebe tudo aquilo que faz parte do meu ambiente, compreende “tudo aquilo cuja existência ou inexistência, cuja natureza ou alteração contam para mim praticamente.
Esse ser que percebe esse mundo recheado de estímulos, que já está constituído, interage com os outros corpos, com o seu corpo.
A vida humana “compreende” não apenas tal ambiente definido, mas uma infinidade de ambientes possíveis, e ela se compreende a si mesma porque está lançada em um mundo natural.
Essa constatação é percebida nas falas dos sujeitos:
“uma hora está vivo, de repente está morto” – ônix
“vê aquela pessoa viva, naquele momento, depois você tem que tá pondo algodão” – Diamante
“preservar a vida o dia inteiro e no final do dia vou tamponar” – Opala
A coisa e o mundo só existem vividas por mim ou por sujeitos tais como eu, já que eles são o encadeamento de nossas perspectivas, mas transcendem todas as perspectivas, porque esse encadeamento é temporal e inacabado.
O que é registrado nas falas:
“preparar o corpo até entregar ao familiar” – Opala
“porque eu fico me colocando no lugar da família , da mãe” – Rubi
Essas preocupações levam à busca de uma nova forma de ver, entender essa situação.
Busca de uma nova situação
É sempre no presente que estamos centrados e é dele que partem nossas decisões, portanto, elas sempre podem ser postas em relação com o nosso passado, nunca são sem motivos e, se abrem em nossa vida um ciclo que pode ser inteiramente novo, devem ser retomados na sequência, elas só nos salvam da dispersão por certo tempo.
Fazemos isso porque é pelo tempo que pensamos o ser, porque é pelas relações entre o tempo sujeito e o tempo objeto que podemos compreender as relações entre o sujeito e o mundo.
Se a liberdade é a liberdade de fazer, é preciso que aquilo que ela faz não seja desfeito em seguida por uma liberdade nova, tendo uma escolha verdadeira, a escolha de nosso caráter inteiro e de nossa maneira de ser no mundo.
Para algumas pessoas pesquisadas, a morte é como uma liberdade para aquele que sofre:
“depende do caso, tem pacientes, que eu vejo até como alívio” – Ônix
“eu acredito que a morte dela foi um alivio” – Ametista
“Tem pacientes que está sofrendo muito, então a gente, ah! meu Deus tomara que vá” – Topázio O corpo é eminentemente um espaço expressivo mesmo sem vida; não precisamos temer que nossas escolhas ou nossas ações restrinjam nossa liberdade, já que apenas a escolha e a ação nos libertam de nossas âncoras.
Conclusões :Vislumbrando Caminhos
Nossa percepção chega ao objeto, uma vez constituído, como a razão de todas as experiências que dele tivemos ou que dele poderíamos ter. Essa percepção constitui um momento na constituição do objeto que revelará o sujeito que percebe, assim como o mundo percebido.
Mundo percebido e vivido que dá a percepção à razão de entender a existência por meio dos significados, expressos nos discursos:
“...eu acredito que a morte para ela foi um alívio pelo sofrimento que ela passava,me senti triste ao mesmo tempo de perder uma pessoa, mas no estado dela, acho que a morte foi um consolo, foi um descanso” – Ametista
“... particularmente não aceito, não gosto, não gosto assim de preparar o corpo, não aceito a morte, é uma coisa deprimente para mim” – Quartzo
Como enfermeira de um setor de Educação Continuada que está no mundo, tendo consciência dos fatos, percebendo o sensível dentro de um corpo que interage com outros corpos, o desvelar dessa pesquisa trouxe a essência do que é para uma equipe de enfermagem preparar o corpo após a morte, dentro de uma instituição hospitalar, e de sua possível exteriorização para outros setores.
A presença do corpo vivo que trata do corpo morto traz para quem prepara o reflexo de si mesma, ele se vê naquele que está morto. Ao mesmo tempo, busca o sentido da continuidade, seja na repetição do ato, seja na companhia de alguém. Pretendendo mudar essa situação, vendo a morte como liberdade para quem passa esse momento com sofrimento, ou que já tem uma idade avançada para os padrões sociais da época e dessa cultura.
Acredito que essas incursões iniciais na filosofia existencial de Merleau-Ponty tenham introjetado em mim a necessidade de ver o homem inserido num mundo nunca completamente acabado e que as suas reações podem mudar de momento a momento, evidenciando essa ambiguidade do ser no universo.
Referências
1. Alencar SCS, Lacerda MR, Centa ML. Finitude humana e enfermagem: reflexões sobre o (dês)cuidado integral e humanizado ao paciente e seus familiares durante o processo de morrer. Rev. Família Saúde desenvolvimento. 2005;7(2):171-180.
2. Guimarães AMC. Resgate do conhecimento do cuidado do corpo após a morte pelo método da vela. [dissertação]. Guarulhos (SP): Universidade Guarulhos; 2001.
3. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 10ª ed. São Paulo (SP):Hucitec; 2007.
4. Sadala MLA. Estar com o paciente: a possibilidade de uma maneira autêntica de cuidar. [tese]. São Paulo ( SP):Escola de enfermagem da USP; 1995.
5. Martins J. Um enfoque fenomenológico do currículo: educação como poesis. São Paulo (SP):Cortes; 1992.
6. Dartigues A. O que é fenomenologia. 9ªed. São Paulo (SP):Centauro; 2005.
7. Boemer MR. A condução de estudos segundo a metodologia de investigação fenomenológica. Rev Latino-am Enf. 1994; 2(1):83-94.
8. Carvalho MDB, Valle ERM. A pesquisa fenomenológica e a enfermagem. Rev Acta Scientiarum. 2002; 24(3):843-47.
9. Muramatsu CH. Convivendo com a síndrome da tensão pré-menstrual: um enfoque na fenomenologia existencial. [tese]. São Paulo (SP): Escola de Enfermagem da USP; 2001.
10. Freitas GF, Merighi MAB, Fernandes MFP. La interface entre La fenomenologia y El cuidado de enfermería. Index de enfermería. 2007; 16(58):55-58.
11. Lopes RLM, Rodrigues BMRD, Damasceno MMC. Fenomenologia e a pesquisa em enfermagem. Rev Enfermagem UERJ. 1995; 3(1):49-52.
12. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 2ªed. São Paulo (SP):Martins Fontes; 1999.
13. Capalbo C. Fenomenologia e ciências humanas. Londrina (PR):UEL; 1996.
14. Carmo PS. Merleau-Ponty uma introdução. São Paulo (SP):EDUC; 2000.
15. Carvalho AS. Metodologia da entrevista: uma abordagem fenomenológica. Rio de Janeiro (RJ):Agir; 1987.
16. Girafas em pedra. [homepage na internet] 2007 [citado 08 março 2009]. Disponível em: <http://www.girafamania.com.br/tudo/pedra.html>.
17. Josbrilber RS. O método fenomenológica e as ciências humanas. In Castro DSP, Azar FP, Piccino JD, Josgrilberg RS. Fenomenologia e análise do existir. São Paulo (SP): Universidade Metodista de São Paulo(SP):Sobraphe; 2000.parte II:75-93.
18. Silveira FA. Corpos sonhados-vividos: a questão do corpo em Foucalt e Merelau-Ponty. [tese]. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto; 2005.
19. Labronici LM, Polak YNS. Corporeidade no cenário da clínica ortopédica. Rev Gaúcha Enferm. 2002; 21(2):55-69.
20. Carvalho LS et al .Perception of death and dyning of the nursing students. Online Brasilian Journal of Nursing[Online]. 2006;5(3). Disponível em: < http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/507/116 >
Endereço para correspondência:
UnG- CEPPE – Centro de Pós-Graduação e Pesquisa – Programa de Mestrado Acadêmico em Enfermagem –Praça Tereza Cristina, nº 229 Centro – Guarulhos-SP, CEP: 07023-070.
Nota: Este estudo resulta da dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Enfermagem da Universidade Guarulhos - UnG em 2009