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The art of therapeutic letters in caring for grieving families

A arte das cartas terapêuticas no cuidado de famílias enlutadas 

Regina Szylit Bousso1, Lucía Silva1, Ana Márcia Chiaradia Mendes-Castillo1

1 Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EE-USP), SP, Brasil.

 

Abstract. The purpose of this article is to introduce the reader to the use of narrative and therapeutic letters as strategies in a holistic approach to Tanatology. This paper is based on free lecture thesis and presents congruence with fundamental patterns of knowing and key elements of the therapeutic letters. It offers a selected piece of qualitative research extracted from the context of a larger research study described the therapeutic letters as an instrument for summarized the interview. The article incorporated the textual description of two therapeutic letters that had been sent to a family that the child died. Emphasis is on the possibilities and influences of narratives and therapeutic letters on nursing practice with family bereavement. The paper is presented as an inspiration and evocation to write therapeutic letters.

Keywords: family, nursing, tanatology, death.  

Resumo. O objetivo deste artigo é introduzir ao leitor o uso das narrativas de doença para a confecção de cartas terapêuticas, particularmente o seu uso como estratégia para o cuidado de famílias enlutadas. O trabalho é baseado em tese de livre-docência e apresenta a relação entre os padrões de conhecimento que compõem o cuidado e os pontos chaves para a elaboração de cartas terapêuticas. Relatamos a experiência na elaboração e envio dessas cartas às famílias enlutadas que concordaram em participar de uma pesquisa qualitativa, cujo objetivo foi compreender o processo de decisão familiar sobre a doação de órgãos do filho. Apresentamos duas cartas para ilustrar como as narrativas podem ser utilizadas na delineação e construção das cartas possibilitando seu uso na prática de enfermagem e especialmente no cuidado de famílias enlutadas. O artigo é apresentado como uma inspiração e evocação para o uso de cartas terapêuticas.

Palavras- chave: enfermagem, família, tanatologia, morte.

Introdução

A Tanatologia é uma ciência que estuda a relação do homem com a morte, cujo foco direciona-se para a maneira como as pessoas reagem emocional e psicologicamente às perdas e quais mecanismos utilizam para se readaptarem à nova situação. Nos últimos anos, a Tanatologia vem adquirindo corpo teórico com definição de conceitos, desenvolvimento de modelos teóricos e de intervenção em relação às perdas, ao luto e à separação.

Um estudo sobre o enfrentamento de enfermeiros quanto ao atendimento de pacientes e familiares durante o processo de morrer em hospitais, recomenda a necessidade de um novo modelo de cuidar que reconheça a parceria entre enfermeiros, médicos e família nas situações de cuidados no final da vida.1

Assim, o objetivo deste artigo é introduzir ao leitor o uso das narrativas de doença para a confecção de cartas terapêuticas, particularmente o seu uso como estratégia para o cuidado de famílias enlutadas.

Para tal, inicialmente consideramos relevantes algumas reflexões acerca da compreensão de como tem ocorrido a construção do conhecimento no contexto da doença e morte e de como este conhecimento se compõe. 

Padrões de conhecimento que compõem o cuidado

Até pouco tempo, o desenvolvimento empírico do conhecimento era a abordagem que prevalecia e, assim, não havia um desenvolvimento formal de outros elementos que poderiam compor o corpo de conhecimentos da área da enfermagem e, a nosso ver, também da Tanatologia.

O conhecimento pertinente à criação, ao desenvolvimento, à expressão e à transmissão do conhecimento da enfermagem, pode ser dividido em quatro elementos2: Empírico ou a ciência da enfermagem; Ético ou o componente moral do conhecimento; Conhecimento pessoal e Estético ou a arte da enfermagem.

1.     Empírico ou a ciência da enfermagem: É o conhecimento geral sistematicamente organizado em torno de teorias e afirmações com o propósito de descrever, explicar ou predizer fenômenos que interessam à ciência da Enfermagem. Esta definição pode ser ampliada quando se considera que este conhecimento é expresso também por meio de fatos, modelos e descrições, pois dessa forma, inclui também o conhecimento gerado a partir do paradigma interpretativo, englobando a noção de múltiplas realidades.3 O componente empírico na área da morte e morrer já está fundamentado em várias teorias. 4-5

No entanto, o conhecimento empírico reflete apenas parte do conhecimento desta área. Outros padrões de conhecimento tornaram-se necessários ao se buscar uma visão holística do cuidado quais sejam2: conhecimento pessoal, conhecimentos éticos e conhecimento estético.

2.     Ético ou o componente moral do conhecimento

O componente ético tem sido bastante explorado nos últimos anos. Com este elemento, é reconhecida a importância do conhecimento das normas e código de ética, tendo como foco a obrigação ou o que deve ser feito.3

As discussões relacionadas aos processos de decisão no final da vida compõem grande parte da literatura atual que diz respeito ao conhecimento moral. O componente moral não diz respeito apenas ao que é certo, mas deve incorporar o que é bom para o paciente e para a família.3 Neste sentido, este conhecimento não está presente só nos livros ou outras formas de publicação, mas também nos processos de reflexão, discussão e narrativas de histórias de vida. Em relação a este aspecto, destacamos que há mais de duas décadas, narrativas ou histórias de doença têm se mostrado como um recurso indispensável no trabalho com indivíduos e famílias que experienciam doenças e processos de final de vida.

Vários autores têm explorado este tema e trazem contribuições dentro deste contexto.6-10 Estes autores afirmam que é preciso dar voz à experiência humana de sofrimento e sintomas, assim como às experiências de coragem, amor e esperança.

Nesse sentido, o modelo de narrativas permite acessar as necessidades da pessoa que está doente ou fragilizada, possibilitando o reconhecimento de suas emoções e condição existencial.

3.     Conhecimento Pessoal

O conhecimento pessoal diz respeito ao “encontro verdadeiro com o próprio self”, sendo o self a interação social do indivíduo consigo mesmo.2 O desenvolvimento pessoal é conquistado “quando o enfermeiro aborda o paciente não como um objeto ou uma categoria de doença, mas sim com o esforço de gerar um verdadeiro relacionamento entre duas pessoas”. Neste processo, o profissional se abre para o encontro para tornar-se uma pessoa inteira, atenta, ciente, verdadeira na sua relação com o outro. Autores apontam este como sendo o componente mais difícil de ensinar e de se aplicar, mas ao mesmo tempo, é o componente essencial para a compreensão dos significados de saúde, de vida, de morte e sua relação com o cuidado.2

Desenvolver o auto-conhecimento do próprio self permite à pessoa uma maior aproximação ao self outro. É o que torna possível compartilhar a experiência humana. Conhecimento pessoal se torna mais profundo por meio dos encontros de cuidado com os outros. O conhecimento pessoal pode se dar ao ouvirmos e refletirmos sobre as histórias das famílias e dos pacientes. As famílias constroem suas realidades e atribuem significados às suas experiências, ao compartilharem suas histórias. Ouvir as narrativas da família gera reflexões e auxilia o profissional a conectar-se em uma relação com ela.3,11

4.     Estético ou a arte da Enfermagem

O conhecimento estético ou a arte do cuidado envolve uma apreciação profunda do significado de uma situação e aponta para o avanço inerente a recursos criativos que transformam a experiência no que ainda não é real, trazendo para a realidade coisas que não poderiam ser possíveis de outra forma.2 O conhecimento estético torna possível mover-se da superfície da experiência para a compreensão do significado daquele momento para o paciente e sua família e que são  únicas para cada pessoa.

Assim como o conhecimento pessoal, o conhecimento estético, na prática, é expresso por meio de ações, atitudes, narrativas e interações do profissional com os outros que vivenciam a experiência.

Este conhecimento conduz a ação do profissional agregada a um elemento artístico e criativo, mudando profundamente as interações com os outros. Ele é essencial no processo de comunicação a partir de estratégias como: simpatia, piedade, compaixão, amizade, humor.3 Oferecer livros, cartas, desenhos, fotografias e músicas são exemplos de ações pautadas num elemento estético do conhecimento. 11-12

Estes quatro elementos essenciais que compõem o conhecimento oferecem direções para uma prática humanística. Na busca por oferecer um cuidado às famílias que vivenciaram o processo de decisão quanto à doação de órgãos do filho, desenvolvemos o uso do envio de cartas terapêuticas para ajudar a família no processo de elaboração do luto.

 O uso de cartas terapêuticas como proposta de inovação tecnológica

As cartas terapêuticas – uma forma de comunicação escrita – transformam as palavras da família em registros permanentes. Estudos têm ressaltado os benefícios do uso da linguagem escrita, agregado à linguagem verbal para registro dos avanços emocionais alcançados pelo paciente ou família. Estes estudos mostram que essas cartas podem exercer um papel ativo no processo terapêutico. O aumento da utilização de cartas terapêuticas e suas formas de criação em atendimentos a famílias têm forte influência dos terapeutas pós-modernistas, os quais têm suas raízes baseadas no movimento do uso de narrativas como instrumento terapêutico.11-14

As cartas terapêuticas devem trazer resumidamente o que foi conversado no encontro e ressaltar valores atribuídos pela família. Elas oferecem à família uma privacidade de leitura de palavras e ideias que podem ser difíceis de serem ouvidas nos encontros formais. Também contribuem na formação de vínculo, pois trazem um senso de transparência entre o profissional e a família. As pesquisas também identificam benefícios das cartas terapêuticas para o profissional, pelo efeito reflexivo que nele provoca durante sua elaboração.11,15

A elaboração de cartas terapêuticas tem sido caracterizada de diferentes formas, mas geralmente elas destacam os seguintes aspectos: são elaboradas e escritas pelo profissional de saúde em uma linguagem compreensível à família; descrevem sucintamente sobre o que foi conversado durante o encontro; são mais literárias do que diagnósticas e podem sutilmente relatar uma história alternativa e indagar o que pode vir a acontecer e, por fim, enviadas pelo correio para a pessoa ou para a família.16-18 O uso de cartas terapêuticas é indicado como estratégia para oferecermos à família: validação de forças, elogios, palavras, frases, ou ideias que se sobressaem em nossas conversas, oferecer novos olhares para a situação que está sendo vivenciada ou realçar o que aprendemos com a família. Neste sentido, seu uso também é recomendado para intervenções com famílias.19-21

 Apresentando a experiência

O que vamos relatar aqui diz respeito ao envio de cartas terapêuticas às famílias que participaram de um estudo que teve como objetivo compreender o processo de decisão familiar sobre a doação de órgãos do filho considerado doador potencial.22 No referido trabalho, utilizamos a estratégia do envio de cartas terapêuticas de “finalização” de forma a oferecer um resumo do que havíamos conversado e aprendido com a família, bem como para ajudar na elaboração do luto após a morte do filho e agradecer sua participação na pesquisa. Raramente vemos este aspecto ser contemplado, ou ao menos, mencionado, nos relatórios de pesquisa, mas o consideramos de suma importância. Cabe ressaltar que o projeto foi encaminhado ao Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP), obtendo aprovação (Processo Nº 360/2004/CEP-EEUSP).

As entrevistas para a coleta dos dados da pesquisa que gerou as cartas terapêuticas foram realizadas nas casas das famílias. As entrevistas foram gravadas e tiveram uma duração entre 50 e 180 minutos. Participaram do estudo trinta e oito familiares de treze famílias. As idades dos participantes variaram de 16 a 53 anos.

Conforme é apresentado na literatura, o período de sofrimento das famílias que convivem com a morte de um filho é variável. Todavia, a fase aguda ocorre entre os dois primeiros meses após o falecimento.23 Assim, como critério, as famílias foram entrevistadas no mínimo três meses e, no máximo, dois anos após a morte da criança.

A elaboração de cada carta consumiu cerca de três semanas. Este procedimento exigiu envolvimento total, honestidade e, principalmente, integridade.

A carta que será apresentada foi enviada à família de Luis (nome fictício), dois anos de idade e portador de Amiotrofia Espinhal Progressiva. Luis estava internado há cinco dias quando apresentou piora súbita do quadro e foi transferido para Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Na UTI, Luis apresentava-se em morte encefálica e os pais foram abordados para tomarem a decisão em relação à doação de órgãos. Na época da internação, tanto a mãe como o pai da criança estavam com 17 anos de idade e não puderam assinar o termo de doação de órgãos. Assim, os avós foram chamados para tomar a decisão. Os pais expressaram seus desejos em doar os órgãos do filho. Os avós assinaram o termo em respeito aos pais, mas não desejavam a doação.

A entrevista foi realizada oito meses após a morte de Luis, na casa da mãe, com os quatro avós também presentes. A mãe continuava morando na casa de seus pais e mantinha apenas um relacionamento de amizade com o pai de Luis. Ele não quis participar da reunião para a entrevista. Durante a entrevista, a avó paterna apresentou sua crença de que Luis ainda poderia estar vivo, caso a doação não tivesse sido autorizada. A família também tinha a crença de que poderia ter havido algum erro médico que contribuiu para a piora da criança e pensou inclusive em processar o hospital, mas a mãe não viu sentido em dar andamento ao processo. Ao final da entrevista, a mãe doou o carrinho de passeio que a criança usava e solicitou que levássemos ao hospital, o que foi feito. Decidimos mandar cartas separadas: uma para a mãe e outra para os avós – esta com cópia para a mãe - pois acreditamos que diferentes aspectos deveriam ser tratados em cada carta.

Em seguida apresentamos a carta que foi enviada à mãe de Luis: 

Querida T,

Estou escrevendo para agradecer imensamente a sua participação na nossa reunião.

Você é uma pessoa encantadora pela sua força e sua lucidez diante de tudo que você já passou tão precocemente na sua vida. Você, ainda muito jovem, teve que lidar com desafios e golpes, que a maioria das pessoas, mesmo mais velhas, não vivencia. Você soube enfrentá-los tão bem. Perder um filho é uma das experiências mais trágicas que alguém pode vivenciar.

Vejo você como uma verdadeira guerreira e fiquei impressionada com a sua capacidade e maturidade para decidir sobre uma questão tão difícil como a doação dos órgãos do próprio filho. É difícil imaginar o quanto deve ser duro a falta que ele lhe faz e como ele ainda é parte da sua vida e de seu coração.

No meu trabalho com famílias em situações de sofrimento tenho procurado conhecer as forças da família e o que as ajuda a superar tal sofrimento. Acredito que assim, posso ajudar outras famílias a enxergaram possibilidades de levar a vida adiante. Você me ensinou muito sobre isto com a sua decisão de transformar a busca do laudo em uma “página virada” na sua história, acreditando que isto não levaria a nada.

Quero te dizer também, que o carrinho do Luis foi entregue a uma família que tem um filho com problemas neurológicos. Mais uma vez, o seu espírito de generosidade mostrou-se presente: você deu vida a outras pessoas doando os órgãos do Luis e também ofereceu alegria e conforto à família que recebeu o carrinho.

Foi muito bom ter tido a oportunidade de compartilhar da sua experiência. Desejo do fundo do meu coração, que você continue seguindo o seu caminho e possa realizar seus sonhos!

Um grande abraço, Regina. 

Podemos observar que a carta se inicia com o reconhecimento do difícil evento vivenciado pela mãe como algo carregado de significado para alguém que trabalhou, por tanto tempo, em busca de objetivos precisos – o melhor para o filho. Depois, recontamos alguns eventos apresentados pela família e ressaltamos as forças da jovem mãe para superar estas situações impostas pela experiência. Talvez a parte mais importante da carta seja o reconhecimento da capacidade da mãe em tomar decisões, mesmo diante de tantas mudanças e sofrimento decorrentes da morte do filho. Finalmente, apresentamos uma visão de futuro, que pode ser conquistado levando na lembrança este evento inesperado e indesejável na vida de qualquer um.

A seguir, apresentamos a carta enviada aos avós: 

Queridas M e S (avós), Caros J e R (avôs)

Estou escrevendo para expressar meu profundo agradecimento por vocês terem concordado em compartilhar comigo suas experiências no processo de morte e doação de órgãos do Luis.

Gostaria de dizer a vocês que fiquei impressionada com a capacidade que têm em levarem a vida para frente juntos, unidos, mesmo depois de enfrentarem tanto sofrimento não só com a morte do Luis, mas também, em ter que conviver com a incerteza da decisão que vocês tomaram em relação à doação.

Vocês demonstraram muita força quando respeitaram e aceitaram a decisão da T e do O pela doação de órgãos, mesmo não sendo este o desejo de vocês. Algumas vezes, a coisa mais amorosa que os pais podem fazer é apoiar a decisão dos filhos mesmo quando esta decisão não está de acordo com suas próprias crenças.

M, sua capacidade de expressar abertamente seus pensamentos e sentimentos com total respeito às diferenças da outra pessoa é algo impressionante. Também admirei o seu movimento de reunir todos para participarem da entrevista, nos recebendo de uma forma tão delicada, com muito carinho e cuidado, transformando uma conversa permeada por muito sofrimento em um encontro tão agradável que eu jamais irei esquecer.

S, Você foi e tem sido muito forte. Fico pensando que seu sofrimento foi duplo, não só pelo sofrimento da perda do Luis, mas também por viver de perto o sofrimento da T, sua filha, sem poder fazer muita coisa por eles. Posso estimar o quanto deve ter sido duro para você.

J e R, Vocês parecem ser grandes companheiros. No meu trabalho com famílias em situações de sofrimento tenho procurado conhecer as forças da família e o que as ajuda a superar tal sofrimento. Vocês me pareceram ser pessoas que dão força, suporte para as suas famílias, estando presentes, expressando suas idéias e ajudando a todos a pensarem no futuro e seguirem para frente.

Vejo todos vocês procurando um sentido para tudo isto, quando vocês se perguntam pelo laudo. Vocês deixaram clara a crença de vocês a respeito do erro na administração da medicação e a causa da morte do Luis. Fico pensando, o que seria diferente se vocês tivessem o laudo nas mãos? Como seria para vocês se o laudo não trouxesse nenhuma resposta a esta dúvida? Creio que ter conhecimento destas informações em relação à morte de Luís seja importante porque talvez vocês pudessem usar isto para aliviar o sofrimento que vocês vivem em relação à incerteza da doação.  

Acho importante vocês saberem e se lembrarem que a retirada dos órgãos de qualquer pessoa, só é realizada quando essa encontra-se em morte encefálica. A morte encefálica é comprovada com exames neurológicos específicos. O diagnóstico de morte encefálica significa que o cérebro da pessoa não funciona mais e isto é irreversível, ou seja, não volta a funcionar e aos poucos os outros órgãos também param. Nestas situações o coração costuma parar de bater em um período de três dias.

 Por fim, gostaria de agradecer do fundo do meu coração e dizer que aprendi muito com cada um de vocês. Obrigado a todos!

Que vocês sejam sempre iluminados!

Uma cópia desta carta segue para a T.

Um grande abraço, Regina. 

Esta carta direcionada aos avós possibilitou-nos oferecer informações, reflexões, ressaltar crenças e fazer elogios aos membros da família. Foi uma oportunidade para esclarecermos sobre o prognóstico da criança caso a doação não tivesse sido autorizada. A capacidade dos avós em oferecer apoio uns aos outros e conversar abertamente sobre o acontecimento foi destacada. Finalmente, a carta permitiu transmitir respeito e compreensão e ofereceu reflexões para maneiras alternativas de olhar para a experiência vivenciada. 

Refletindo sobre o uso das cartas terapêuticas

Em nossos encontros com famílias que vivenciam a morte do filho, por meio de suas narrativas aprendemos que a morte do filho não é só um processo biológico, mas também um processo cognitivo e emocional. A construção de uma nova realidade para a família que vivencia o luto do filho significa a transformação de ter uma criança que viverá uma longa vida, para ter uma criança que está morrendo, ou que já está morta. Há uma dormência para esta nova realidade e devemos respeitar este tempo da família com base nos dados empíricos da pesquisa.22

Mas só isto não é suficiente para o cuidado de famílias enlutadas. Dentre os ensinamentos mais significativos do sofrimento da família causado pela doença, destacamos sua necessidade em narrar suas histórias de doença. A voz da família precisa ser cultivada e não cortada.7 Contando suas histórias, a família pode interpretar seu próprio sofrimento.8

No entanto, conviver com o sofrimento e envolvimento dos familiares diante da experiência de doença, obriga-nos a refletir a respeito das nossas próprias crenças sobre doença. Coloca-nos o desafio do conhecimento pessoal. Além disso, ao prestar atenção na linguagem, estamos atentos para a prevalência social de metáforas negativas que cercam e devoram a pessoa doente e sua família.9

O encorajamento e a reflexão de histórias de experiências pessoais de doença, bem como as evidências de que estas experiências podem servir de recursos para o trabalho com famílias constitui-se em uma tecnologia que merece ser desenvolvida e utilizada no treinamento para os profissionais. A capacidade do profissional de saúde ser consciente das histórias de sofrimento de seus pacientes e familiares é essencial para promover o cuidado; com frequência, é o caminho para a recuperação, se não for a própria cura.6

Na nossa experiência, temos sistematicamente observado que uma das mais difíceis tarefas como ser humano é ouvir as vozes daqueles que sofrem. A voz do doente é fácil de ser ignorada, pois estas vozes são frequentemente em tom de hesitação e com mensagens confusas. As pessoas contam histórias para dar sentido ao seu sofrimento; quando elas transformam suas doenças em histórias, elas encontram a recuperação.8

Nessa perspectiva, é fundamental valorizar e reconhecer que, aspectos culturais como as crenças familiares, constituem-se a base para a construção de histórias de vida e de significados atribuídos à saúde e à doença.24

Com estas narrativas, aprendemos as diferentes formas por meio das quais os membros da família compartilham a doença. Encontrar significado para os eventos que surgem nas vidas das famílias que vivenciam a morte e o luto parece fazer parte de suas necessidades prioritárias. Para isto, compartilham crenças, expõem temores e exploram nossas crenças, na busca pela esperança e sentido para a vida.

Nesse sentido, o livro Beliefs – The heart of healing in families and illness19 tem servido de instrumento para o trabalho com famílias que experienciam a doença. A essência do modelo proposto por suas autoras é o pressuposto filosófico de que não é a doença ou as dificuldades dela decorrentes que são problemas, mas sim, as crenças das pessoas a respeito desses aspectos que são problemas.19 A maneira como a família maneja a experiência de doença é fortemente influenciada por suas crenças sobre ela. Acreditamos que a forma como os enfermeiros recebem estas narrativas reflete-se diretamente no cuidado que oferecem à família e às suas próprias vidas.

Negligenciar os aspectos éticos, pessoais e estéticos do conhecimento, refletia uma hipervalorização do modelo empírico do conhecimento, mas no momento atual, torna-se essencial para o avanço de perspectivas humanísticas e subsidiam as habilidades para o desenvolvimento da comunicação e do relacionamento interpessoal.3 No entanto, é importante ressaltar que métodos para o desenvolvimento do conhecimento baseado nos padrões, especialmente, pessoal e estético, são ainda incipientes na literatura.3 

Considerações finais

As narrativas familiares constituem verdadeiros presentes para o enfermeiro. As histórias familiares revelam crenças da família sobre a morte, a doença e o corpo. Estas crenças têm implicações nas decisões do paciente e da família. As crenças podem diferir entre seus membros, bem como entre a família e a equipe. As habilidades da família para uma comunicação interna e a forma como a equipe trabalha com estas diferenças pode, ou não, gerar conflitos e devem ser discutidas abertamente com a família. O profissional, quando necessário, deve mediar esta conversa aberta na família, apontar este recurso ou mesmo elogiar a capacidade da família quando esta está presente.

Para ousar o envio de cartas terapêuticas é preciso reconhecer que a própria realidade não tem valor maior do que a realidade da família. Na verdade, se queremos nos abrir para a experiência da família, é essencial não termos medo de caminhar nesta trajetória. O desafio do trabalho com pacientes e famílias que vivenciam o processo de morte e luto é desenvolver e manter-se atento aos aspectos emocionais que guiam e desafiam sua própria vida; é manter-se conectado com a experiência do outro sem impor seus próprios medos, sobrecarregando-os.

Acreditamos que, da mesma forma que o leitor pode entender melhor sobre as nuances, complexidade, sentimentos e ambiguidade durante o processo de decisão no período de luto familiar, lendo os pequenos trechos que utilizamos para clarificar nossas ideias, o profissional também pode se beneficiar das narrativas das famílias para a elaboração de cartas terapêuticas. Porém, tal procedimento exige a honestidade, a maturidade e a integridade da pessoa que deverá estar internamente disponível para comprometer-se, arriscando-se a abrir em si mesma dores e dúvidas que podem levá-la a uma transformação pessoal.

 Referências

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22 Bousso RS. O processo de decisão familiar na doação de órgãos do filho: uma teoria substantiva. Texto Contexto Enferm. 2008 Jan-Mar; 17(1): 45-54.

23 Nadeau JW. Families making sense of death. Thousand Oaks (Califórnia): Sage Publications, 1998.

24 Silva L, Bousso RS, Galera SAF. Living with a dependent elderly from the family’s perspective: a qualitative study Online Brazilian Journal of Nursing [serial on the Internet]. 2010 June 21; [Cited 2010 August 26]; 9(1):[about 12 p.]. Available from: http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/2887

 

Nota: este artigo trata-se de parte da Tese de Livre-Docência: “Um tempo para chorar: a família dando sentido à morte prematura do filho”.

Data do Concurso de Livre-Docência: 05, 06 e 07/06/2006.

Instituição: Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EE/USP).

Banca Examinadora: Profª Drª Margareth Angelo; Profª Drª Cyntia Andersen Sarti
Profª Drª Naria Cristina Komatsu Braga Massarollo; Profª Drª Regina Aparecida Garcia de Lima; Profª Drª Maria Lucia Araujo Sadala.
 

Contribuição dos autores: Concepção e desenho: Regina Szylit Bousso. Análise e interpretação:Regina Szylit Bousso. Escrita do artigo: Regina Szylit Bousso, Lucía Silva e Ana Márcia Chiaradia Mendes-Castilho. Revisão crítica do artigo: Regina Szylit Bousso, Lucía Silva e Ana Márcia Chiaradia Mendes-Castilho. Aprovação final do artigo: Regina Szylit Bousso, Lucía Silva e Ana Márcia Chiaradia Mendes-Castilho. Pesquisa bibliográfica: Regina Szylit Bousso.  

Endereço para correspondência:

Regina Szylit Bousso – Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EE/USP)/Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Psiquiátrica (ENP). Av Dr Enéas de Carvalho Aguiar, 419 – Cerqueira César. CEP 05403-000. São Paulo/SP. E-mail: szylit@usp.br