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Interface between gender and mental health in the voice of alcoholics: qualitative study

Interface entre gênero e saúde mental no discurso de alcoolistas: estudo qualitativo

Helder de Pádua Lima1, Violante Augusta Batista Braga2, Fabiane do Amaral Gubert2.

1 Centro de Atenção Psicossocial do município de Caucaia, CE, Brasil; 2Universidade Federal do Ceará, CE, Brasil;

 

Abstract: Given the impact caused by alcoholism to individual and collective health, the study aims to understand the interfaces between gender and mental health in the speech of alcoholics and reflect on the possibilities of nursing work in this context. Qualitative descriptive study conducted with 20 participants in an Alcoholics Anonymous group in Fortaleza. Information was collected through semi-structured interview in the period of May-June 2008. For the interviewees, family and females related to the provision of care to alcoholics and offer support at the same time could predispose to passivity, dependence and violence imposed by the male. Social processes involving gender should be incorporated in the practices of nurses because they represent key players in mental health. It is necessary to community mobilization and awareness authorities and professionals from various sectors in order to change the current reality and the development of equitable policies.

keywords: Nursing; Alcoholism; Gender Identity; Mental Health. 

Resumo: Diante do impacto causado pelo alcoolismo à saúde individual e coletiva, o estudo tem o objetivo de apreender do discurso de alcoolistas as interfaces entre gênero e saúde mental e refletir sobre as possibilidades de atuação do enfermeiro nesse contexto. Estudo descritivo de abordagem qualitativa, realizado junto a 20 participantes de um grupo Alcoólicos Anônimos de Fortaleza, Ceará. As informações foram coletadas por meio de entrevista semi-estruturada no período de maio a junho de 2008. Para os entrevistados, família e gênero feminino relacionavam-se à provisão de cuidados ao alcoolista e oferta de apoio que, ao mesmo tempo, poderia predispor à passividade, sujeição e violência impostas pelo masculino. Os processos sociais envolvendo gênero devem ser incorporados nas práticas do enfermeiro por representarem agentes determinantes na saúde mental. Faz-se necessário a mobilização comunitária e sensibilização autoridades e profissionais de vários setores visando mudanças na realidade atual e o desenvolvimento de políticas equitativas.

Palavras-chave: Enfermagem; Alcoolismo; Identidade de Gênero; Saúde Mental.

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Estudos recentes têm evidenciado o uso de drogas psicoativas e as consequências em âmbito nacional. O II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil, realizado em 2005 nas 107 maiores cidades do país, incluindo aponta que 12,3% das pessoas, com idade entre 12 e 65 anos, são dependentes de álcool, taxa superior à de 11,2% encontrada no I Levantamento, realizado em 20001.

O alcoolismo é uma doença crônica, que tem fatores genéticos, psicossociais e ambientais influenciando seu desenvolvimento e suas manifestações. A doença é geralmente progressiva, fatal, e caracterizada pela falta de controle sobre a bebida alcoólica, pré-ocupação com a droga e uso desta apesar das implicações adversas; além de distorções no pensamento e negação notável. Cada um dos sintomas pode ser contínuo ou periódico2. 

Os transtornos relacionados ao uso de álcool afetam cinco vezes mais homens do que mulheres. Homens são acometidos em idade mais precoce, mas, uma vez portadoras do transtorno, as mulheres têm uma progressão mais rápida da doença. Ao longo dos últimos anos, as pessoas têm iniciado o consumo de álcool cada vez mais cedo, o risco de dependência tem aumentado e o padrão de uso de álcool e dependência entre as mulheres têm se tornado semelhante aos dos homens3.

O sentido do termo ‘gênero’ adotado nesse estudo diferencia-se da palavra ’sexo’. A perspectiva de gênero denota que os papéis de homem e mulher são construções sociais, culturais e históricas sujeitas a mudança4.

A categoria gênero permite entender como os sujeitos sociais estão sendo constituídos cotidianamente por um conjunto de significados impregnados de símbolos culturais, conceitos normativos, institucionalidades e subjetividades sexuadas que atribuem a homens e mulheres um lugar diferenciado no mundo, sendo essa diferença atravessada por relações de poder que conferem ao homem, historicamente, uma posição dominante.

Porém, para discutir sobre relações de gênero teve-se o cuidado para não cair na armadilha das fórmulas simplificadoras que convertem o masculino e o feminino em campos estanques e homogêneos, como se homens e mulheres não apresentassem convergências nas suas experiências e representações ou como se entre homens e mulheres não existissem, também, divergências. Assim, refletir sobre gênero implica entender como ele se constitui dentro de um universo conceitual relacional que está para além da relação homem-mulher, incluindo também a relação mulher-mulher e homem-homem.

Pensar as múltiplas formas de opressão que aproximam e separam os sujeitos sociais permite o entendimento da existência de um conjunto de semelhanças e diferenças que se articulam gerando uma combinação de arranjos que não vão, necessariamente, na mesma direção. Assim, homens e mulheres, ainda que possam partilhar uma mesma situação – como, por exemplo, a experiência da saúde ou do sofrimento mental -, vivenciam de forma diferente os fatos do seu cotidiano devido à força da dimensão que constitui aquilo que podemos chamar de experiência de gênero.

Por saúde mental compreende-se o estado de bem-estar no qual o indivíduo percebe as próprias habilidades, pode lidar com os estresses normais da vida, é capaz de trabalhar produtivamente e está apto a contribuir com sua comunidade5.

Nesse sentido, destaca-se que vários indicadores biopsicossociais reafirmam a idéia do gênero como uma construção que influenciará inevitavelmente na expressão da saúde mental ou do sofrimento no campo do alcoolismo. Diante do exposto, o estudo objetiva apreender do discurso de alcoolistas, interfaces entre gênero e saúde mental e refletir acerca das possibilidades de atuação do enfermeiro nesse contexto. 

PERCURSO METODOLÓGICO

Estudo descritivo, com abordagem qualitativa, realizado junto a um grupo Alcoólicos Anônimos (AA) de Fortaleza, Ceará. Selecionou-se este cenário como ambiente de estudo, tendo em vista que este representa um dos dispositivos que compõem a rede de apoio social ao alcoolista.

          Os sujeitos do estudo foram 20 alcoolistas de ambos os sexos, sendo que os critérios de inclusão contaram com os seguintes aspectos: ser maior de 18 anos, afiliado ao grupo por no mínimo um ano; participar regularmente das reuniões; apresentar condições físicas e emocionais para responder aos questionamentos.

A coleta de informações foi realizada mediante roteiro de entrevista semi-estruturada, no período de maio e julho de 2008. A entrevista abordou aspectos pessoais e questões norteadoras que resgatavam a história de uso de álcool; vivência no grupo e a influência desta no modo de vida do alcoolista.

As informações foram registradas por meio de um gravador e, posteriormente, transcritas na íntegra. Como método de análise, utilizou-se os três pólos cronológicos que compõem a análise de conteúdo. A pré-análise corresponde à fase de intuições que objetiva operacionalizar e sistematizar as idéias iniciais, direcionando o desenvolvimento das operações sucedentes. Nesta fase inclui-se a leitura flutuante das informações coletadas; escolha dos documentos a serem analisados; formulação das hipóteses; referenciação dos índices (elementos que podem ser agrupados em um conjunto) e a elaboração dos indicadores; e preparação do material. Em seguida, tem-se a conclusão da preparação do material e a exploração do mesmo, sendo seguida pela fase de tratamento dos resultados obtidos a partir dos quais poder-se-á propor inferências e adiantar interpretações, conforme os objetivos6.

Dentre as formas atuais de investigação utilizadas na enfermagem, a análise de conteúdo vem contribuindo para explicitar elementos não visíveis do processo de viver e adoecer. Isto decorre da necessidade de evidenciar relações entre o fato objetivo da desordem biofisiológica e algumas dimensões constituídas por valores, símbolos, representações, desejos e comportamentos, somente alcançados por meio de incursões à subjetividade, expressa pela enunciação verbal.

Desenvolveu-se a pesquisa de acordo com os preceitos éticos da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, que regulamenta a pesquisa envolvendo seres humanos7. O estudo foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisa da Universidade Federal do Ceará, sob protocolo 198/08. 

RESULTADOS 

Os entrevistados tinham idade entre 30 e 69 anos; sendo 18 homens e duas mulheres; 12 estavam casados; quatro, em união estável; dois, solteiros e dois, divorciados; três moravam sozinhos e17 co-habitavam com familiares; todos tinham filho(s).

Dos participantes, 15 eram católicos; quatro, protestantes; e um não tinha práticas religiosas. Todos procediam de bairros do município de Fortaleza, próximos ao endereço do grupo AA onde se desenvolveu o estudo. Este fato pode ser explicado com base na existência de muitos núcleos de AA, distribuídos na cidade, favorecendo o acesso e a participação em grupos próximos à residência do alcoolista. Entre os entrevistados, 13 eram naturais desse município.

Em relação à escolaridade, 8 pessoas iniciaram o ensino fundamental, mas destas, apenas 2 concluíram; 8 participantes finalizaram o ensino médio; 1 possuía ensino superior e 3 tinham pós-graduação. Quanto à profissão/ocupação, 8 eram aposentados e 4, autônomos; entre os demais havia 1 educador físico, 1 secretária, 1 telefonista, 1 funcionário público, 3 trabalhavam com serviços gerais e 1 era serigrafeiro.

Quanto à renda mensal, 14 entrevistados ganhavam até dois salários mínimos; 3, entre 3 e 4 salários; e outros 3 tinham remuneração acima de 5 salários mínimos; 16 residiam em habitação própria e 4, em moradia alugada.

No que se refere às informações subjetivas, obteve-se 75 trechos nas falas dos participantes contendo interfaces entre gênero, oferta de apoio no processo saúde-doença, e possibilidades de vivência do sofrimento, do adoecimento e da violência. 

Em 39 trechos dos discursos, percebeu-se que os participantes associavam família e gênero feminino com fonte de apoio social e provisão de cuidados relativos à saúde. A passagem abaixo ilustra o achado:

Hoje posso entrar na casa de minha mãe e abrir a panela e colocar comida pra mim. Eu tinha perdido esse direito. Hoje sou feliz, não brigo com a esposa, o pessoal me respeita. Minhas irmãs, mãe, mulher me apóiam. (Participante 6)

 

Em 18 discursos, os sujeitos relacionavam gênero, sofrimento mental e processo de adoecimento. Tal sofrimento manifestava-se por meio de respostas como medo, desconfiança, culpa, excesso de cuidado/controle para com o outro e descuido para consigo e mudanças no estilo de vida. Os relatos a seguir evidenciam tais dados:

Eu ia beber, e quando eu saía de casa a preocupação dela (companheira) aumentava. Eu andava armado, era prepotente. Essa era minha cabeça de alcoólico. Ela via que eu corria risco. Sei que a fiz sofrer por isso, não por agressão física ou verbal. (Participante 2)

 

Eu estou muito nervosa, eu não era assim. É a quarta vez que meu filho bebe e causa confusão. Nesse final de semana eu amarrei ele em casa. (Participante 10)

Por fim, 18 trechos de discursos dos participantes continham indicativos de que ofertar cuidados em saúde ao alcoolista, característica atribuída ao gênero feminino, poderia predispor à passividade, sujeição e violência impostas pelo masculino:

Meus dois filhos e minha mulher quase eu matei quando tava embriagado uma vez. Já com homem eu não discutia, tinha medo, era um covarde. Uma (hora) da manhã a minha mulher tava trabalhando e eu, bêbado, dizia quando ela chegava que ela tava era me traindo com outro. (Participante 20)

 

Meu casamento acabou por causa do alcoolismo dele. Aí comecei a beber até vir parar no AA. Minhas filhas me viam brigar com o pai delas em casa. Elas assistiam o pai me espancar, eu abandonei elas praticamente.  (Participante 11)           

DISCUSSÃO

Atualmente, o consumo de álcool tem se disseminado em diversas camadas sociais e o alcoolismo tem acometido pessoas com diferentes níveis de escolaridade, remunerações, profissões e ocupações. Destaca-se que a escolaridade influencia na profissão ou ocupação de uma pessoa e, consequentemente, na sua remuneração. Os baixos preços de bebidas alcoólicas no país em geral, o fácil acesso em vários pontos de venda e a percepção sobre o consumo de álcool são fatores que favorecem as pessoas a estarem, igualmente, expostas e vulneráveis. Tanto o uso de álcool na vida como a prevalência de alcoolismo no Brasil, tem sido maiores entre os homens em todas as faixas etárias estudadas, a partir de doze anos de idade8.

A presença maior de uso de álcool e alcoolismo entre homens é um achado que vem sendo consistentemente descrito, cuja causa ainda não está devidamente esclarecida. As hipóteses elaboradas em vários aspectos (biológicos, culturais, sociais e econômicos) consideram o papel da mulher na sociedade, a identificação da virilidade com hábito de beber, a utilização do álcool como ansiolítico entre os homens e o estigma que cerca o consumo de bebidas alcoólicas em mulheres.

O beber feminino, por sua vez, engloba um conjunto de fatores relacionados ao ser mulher no espaço social e ser mulher alcoolista, numa relação dialética entre o plano identitário e os processos de subjetivação hegemônicos de gênero, onde a questão da violência doméstica se apresenta de forma significativa. Assim, na mulher, o ato de beber pode relacionar-se com o processo de lidar com experiências adversas e fugir do sofrimento, resistindo à violência e ao desamparo numa tentativa de ficar alegre e mais sociável; assim como num comportamento de isolamento social, depressivo e autodestrutivo9.

Percebeu-se nos discursos, que os entrevistados associavam família e gênero feminino com a provisão de cuidados ao longo do processo saúde-doença e aqueles que mais faziam essa associação mencionavam uma maior probabilidade de serem vivenciados sentimentos de raiva, culpa e abandono.

Dependendo do contexto, as relações do alcoolista podem se dar de forma inofensiva, apresentar poucos riscos ou assumir padrões disfuncionais, com prejuízos biológicos, mentais, familiares e sociais.

Para a família, o alcoolismo pode constituir-se como um dos maiores problemas, principalmente quando esta demonstra pouco conhecimento sobre o mesmo. Entre as maiores dificuldades enfrentadas estão a violência e as relações conturbadas10.

Um conceito do co-dependente, por exemplo, considera aquele que convive de forma direta com um dependente químico ou a pessoa que, por qualquer motivo, viveu uma prolongada relação parentalizada na família de origem, assumindo, precocemente, responsabilidades inadequadas para a idade e o contexto cultural11.

A co-dependência interfere na vida, notadamente na saúde mental e no modo de lidar com a condição de dependência química. As manifestações da co-dependência incluem sofrimento, dor emocional e adoecimento físico e psíquico, refletidos em respostas múltiplas. Além disso, alguns sentimentos oriundos dessa vivência de co-dependência são frequentes, entre eles: descontentamento, incertezas, angústia, depressão, ansiedade, tristeza, desesperança, perda12.

Inserido nesse contexto, o enfermeiro se vê na confluência de um cuidar marcado pela polarização. De um lado, o posicionamento do alcoolista que, por vezes, recusa tratar-se, embora reconheça, mesmo que minimamente, que seu estado requer tratamento. Este, muito mais pelo próprio processo de desgaste biopsicossocial e financeiro, é marcado por forte relação de agressão-frustração, além da atribuição da culpa à família ou a membros distintos e/ou a transferência de sua condição a outrem, quer pessoal, quer profissional e, ainda, uma conjunção explicativa híbrida para sua fármacodependência. Do outro, o posicionamento da família, também não menos ansiogênico e defensivo, na busca do apoio e da solução para as dificuldades decorrentes deste processo. Frequentemente, a família faz-se representar por um membro que assume a condição de cuidador, defendendo os interesses da família, embora carregue nas suas manifestações discursivas o peso e o ônus suportivo da situação traduzidos em desabafos13.

As interações do profissional enfermeiro com um indivíduo são também interações indiretas com a família dele, porque esta é um sistema dinâmico e a incapacidade de um membro afeta os demais na convivência familiar. Apenas com a incorporação da família no processo de reabilitação, pode o sistema familiar adaptar-se à mudança em um de seus membros. Ao adotar o agir centrado na dimensão desse encontro humano, além dos aspectos biopsicossocial, o enfermeiro pode identificar pontos de estrangulamento da convivência familiar, por meio de ações educativas em saúde e da visita domiciliária14.

A intervenção desenvolvida pelo enfermeiro para alcoolista e familiares, de forma individual ou grupal, é essencialmente educativa. O papel educativo auxilia na quebra de crenças, preconceitos e superação da negação do problema e possibilita o desenvolvimento de um plano assistencial individualizado. É imprescindível a orientação do alcoolista sobre o seu problema, valorizando a família como parte integrante nessa estratégia, garantindo o acesso à informação e aos meios de tratamento disponíveis na comunidade, incluindo um tratamento mais intensivo, se necessário, além das redes sociais de apoio.

A exigência de construção permanente da rede de apoio, entendida mais como uma postura metodológica do que como um conjunto predial de serviços, implica que toda ação de cuidado no campo da saúde mental seja atravessada pelo princípio da intersetorialidade. Além do serviço de saúde mental, o alcoolista precisa de outras formas de assistência à saúde, de educação, esporte, lazer, cultura, de instâncias jurídico-legais que garantam seus direitos, entre outras. Assim, na perspectiva de uma clínica no território, as intervenções de enfermagem junto a todos os equipamentos, de natureza clínica ou não, devem envolver, de uma forma ou de outra, todos os dispositivos que fazem parte da vida do sujeito.

Articulando todos os princípios acima considerados, a noção de território, que é um dos princípios mais caros no campo da saúde, ultrapassa em muito a noção de território geográfico. O território é o lugar psicossocial do sujeito, atravessado em sua experiência pelas instâncias pessoais e institucionais nas quais ele está inserido. Assim, a casa, a família, a escola, a igreja, o clube, a lanchonete, o cinema, a praça, a casa dos colegas, o posto de saúde e todos os outros campos constituem o território, incluindo-se centralmente o próprio sujeito nessa construção15.

O apoio social mencionado pelos entrevistados consiste em sistemas de suporte que proporcionam assistência e encorajamento para que os sujeitos com inaptidão física ou emocional possam melhor superá-la, bem como na eliminação de barreiras, manutenção dos vínculos sociais; e fortalecimento dos laços de solidariedade16,17.

Tal suporte pode ser instrumental (financeiro, por exemplo) e/ou emocional, referente à afeição, preocupação com o alcoolista e ações que levam a um sentimento de aprovação e de pertencer a determinado grupo.

Nos relatos, os participantes relacionavam gênero feminino e oferta de apoio ao alcoolista, reconhecendo que tal associação poderia fomentar a passividade e sujeição do provedor dos cuidados em saúde, trazendo riscos de sofrimento, adoecimento e violência.

Atribuir simbolicamente poder e força ao masculino e sensibilidade, cuidado, dependência e fragilidade ao feminino pode resultar em comportamentos que predispõem a doenças, lesões e mortes1.

Nas suas manifestações, esse fenômeno aponta para diferenciais de gênero que respondem aos posicionamentos dos sujeitos na sociedade e às identidades construídas nos modos como vivenciam as relações sociais intra-sexo e com o sexo oposto18,19 .

Ao enfermeiro é relevante a compreensão desses processos e dos seus efeitos sobre a saúde, incorporando a perspectiva de gênero em suas ações para diferenciar mulheres e homens biológica e socialmente e, assim, romper com o conhecimento dicotomizado dos papéis sociais. Pressupõe-se a compreensão das relações de gênero, diferenciando o sexo biológico do social. Enquanto o primeiro refere-se às diferenças anátomo-fisiológicas - biológicas - existentes entre os homens e as mulheres, o segundo diz respeito à maneira que estas diferenças assumem nas diferentes sociedades, no transcorrer da história. O sexo social e historicamente construído é produto das relações sociais entre homens e mulheres. A análise aprofundada destas relações revela condições desiguais de exercício de poder, com as mulheres, por exemplo, ocupando posições subalternas conforme os relatos dos participantes do estudo20.

O quadro é de uma intensa e profunda desigualdade e aponta para a superação pela via da equidade. Equidade em saúde é entendida como a superação das desigualdades que, num contexto histórico e social, são evitáveis e consideradas injustas, implicando que necessidades diferenciadas da população sejam atendidas por meio de ações governamentais diferenciadas. Este conceito apóia-se no entendimento de que as desigualdades não são naturais, mas determinadas pelo processo histórico-social de cada sociedade - que articula dialeticamente modo de produção e superestrutura jurídico-político e ideológica 20.

Destaca-se que conceitos, incluindo o de equidade, são recursos de difícil operacionalização, pois como tais constituem elementos do mundo das idéias e não do das coisas, havendo dificuldades adicionais ao se intentar sua operosidade.

No desenvolvimento de políticas equitativas que considerem a interface entre gênero e saúde mental, recomenda-se ao enfermeiro participar, mobilizar a comunidade, e sensibilizar autoridades e profissionais de vários setores visando a mudança da realidade atual. Na prática, as intervenções de enfermagem devem, além de garantir do acesso a serviços em saúde de qualidade, avaliar determinantes da saúde como as relações de gênero em sua amplitude.

Junto à família e a comunidade o enfermeiro pode atuar na minimização das barreiras (discriminação, preconceito, exclusão de grupos, entre outras) que dificultam o acesso e a adequada atenção em saúde mental, bem como a prevenção de transtornos devido questões envolvendo gênero e problemas como o alcoolismo21

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As informações obtidas denotam que a família e os processos sociais envolvendo gênero constituem significativos elementos de suporte social ao alcoolista. Os discursos continham menções de apoio instrumental e emocional.

Contudo, à medida que se ofertava cuidados em saúde ao alcoolista, característica atribuída pelos entrevistados ao gênero feminino, aumentava a possibilidade da vivência das condições de sujeição, sofrimento e violência.

Nesse sentido, o enfermeiro deve considerar a inclusão da família do alcoolista em suas intervenções, aproximando-se de seus membros por meio de ações educativas e visitas domiciliárias, haja vista que o apoio social promove autonomia dos sujeitos diante dos processos sobre seu estado de saúde.

Os processos sociais envolvendo gênero também devem ser incorporados nas práticas por representarem agentes determinantes na saúde mental. Nesse contexto, recomenda-se ao enfermeiro participar, mobilizar a comunidade, e sensibilizar autoridades e profissionais de vários setores visando à mudança da realidade atual e o desenvolvimento de políticas equitativas,

Tais resultados trazem subsídios para o saber fazer do enfermeiro num campo ainda caracterizado por lacunas, sobretudo no tocante às políticas públicas e práticas profissionais consolidadas, como o da dependência química.

Diante da escassez na produção científica nacional que aborda a temática, o presente estudo contribui para ampliar a discussão sobre a relação entre a construção social de gênero e o processo saúde-doença mental.

Destaca-se ainda que o estudo se deteve na apreensão da subjetividade dos sujeitos entrevistados, em detrimento da expressão quantitativa do fenômeno estudado, o que o torna limitado no aspecto de generalização dos resultados. Assim, ressalta-se a necessidade de realização de outras pesquisas que tragam mais subsídios teóricos e práticos para que enfermeiros possam melhor atuar no contexto estudado. 

REFERÊNCIAS

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