Luciane Favero, Verônica de Azevedo Mazza, Maria Ribeiro Lacerda
Resumo: Estudo de caso realizado com objetivo de descrever a vivência da enfermeira domiciliar em cuidado transpessoal a familiares de neonato egresso de unidade de terapia intensiva. Utilizou-se como referencial teórico a Teoria do Cuidado Transpessoal operacionalizada por meio da aplicação do Processo de Cuidar proposto por Lacerda (1996). Foi selecionada uma família como sujeito do estudo, a qual foi acompanhada durante o período de hospitalização da criança e no domicílio após a alta hospitalar. Os dados foram coletados por meio de documentos e registros em arquivo, compostos por notas metodológicas e diário do pesquisador. Para a análise das evidências, utilizou-se a estratégia analítica geral “baseando-se em proposições teóricas”, e como estratégia analítica específica, a “adequação ao padrão”. Desta forma, foi possível constatar as práticas de cuidados do cuidador familiar, suas demandas e necessidades de cuidado; a importância da Enfermagem no processo de hospitalização, alta e cuidados domiciliares, bem como, de um referencial que norteie suas ações e coadune com sua forma de pensar e agir no mundo, principalmente no cuidado a si e ao outro. Esse caminhar possibilitou compreender que as ações objetivas do cuidar precisam estar aliadas ao cuidado humano, expressivo, de forma que a enfermeira assuma diferente postura ante o cuidador familiar, e reforçou, também, a necessidade de investimentos em pesquisas capazes de aliar o cuidado domiciliar ao cuidado transpessoal na Enfermagem e demais profissões da área de saúde.
Palavras-chave: Assistência domiciliar, Teoria de Enfermagem, Cuidados de Enfermagem, Família, Recém-nascido.
Introdução
A Enfermagem vem sendo construída ao longo de sua história, à luz de uma base humanista de atenção à saúde, buscando significado na existência do ser humano. Mediante o cuidado com a pessoa e com a vida, sob um enfoque humano, se dá a verdadeira identificação profissional, pois a essência da Enfermagem se constrói a partir da relação pessoa a pessoa1.
Importante alerta é feito de que o papel do cuidar está ameaçado pelo aumento da tecnologia médica e que a preservação e o avanço do cuidar são questões importantes para a Enfermagem no presente e no futuro2. A autora continua afirmando que o cuidado pode ser eficazmente demonstrado e praticado de modo transpessoal, no qual a consciência de cuidado vai além da dimensão biológica, material e é capaz de transcender o tempo, o espaço e o corpo físico3. Entende desta maneira, que na relação de cuidar, a enfermeira não se encontra só, necessita do outro para que nesta interação o cuidado aconteça.
Uma dimensão transpessoal de cuidar conota uma forma especial da relação de cuidado, sendo uma união com o outro, elevando a consideração pelo todo e pelo seu estar-no-mundo. É a partir do encontro transpessoal que enfermeiro e cliente tornam-se um, é o momento em que o cuidado é concretizado e os dois seres estão sintonizados de corpo e alma nesta relação2.
Com base nessa filosofia de cuidar em Enfermagem, a qual inexiste sem a presença do outro, e esse é percebido como ser único, sagrado e ativo em todo o processo, é importante refletir acerca do cuidado oferecido ao recém-nascido (RN) hospitalizado e à sua família.
O cuidado neonatal passa por inúmeras transformações, sendo o advento da inovação tecnológica um condicionante para o aumento da sobrevida e da possibilidade de um universo mais amplo ao cuidado aos RNs. Essas mudanças atingiram a perspectiva de vida deste ser, e toda uma estrutura de atendimento, que extrapola a lógica da racionalidade e da recuperação do corpo anátomo-fisiológico e passa a preocupar-se com a família e qualidade de vida de pais e bebês, não esquecendo desta forma o cuidado humano4.
A aproximação do bebê com a mãe/pai dentro das unidades de terapia intensiva (UTIs) neonatais oferece estímulos positivos para a estabilidade e evolução clínica do recém-nascido pré-termo (RNPT), redução no tempo de internação e diminuição das reinternações da criança. Isso ocorre devido ao fortalecimento de laços afetivos e melhor preparação dos pais para os cuidados aos filhos, minimizando, desta forma, os custos da atenção e ampliando os benefícios5.
Porquanto, para cuidar do neonato egresso de unidade de terapia intensiva neonatal (UTIN) em seu domicílio é preciso haver interação com a família e considerá-la como partícipe do cuidado prestado à criança, e também, como elemento a ser cuidado6.
Partindo do preceito de que o cuidado neonatal não se limita ao objetivo de garantir a sobrevida do prematuro extremo até a alta, percebe-se que o seguimento e o suporte adequado aos bebês e crianças egressos das unidades neonatais são ainda enormes desafios em nosso meio7. Assim, há necessidade de investir nossas atenções para o momento pós-alta hospitalar, no seguimento dessas crianças em ambulatórios, unidades de saúde e no domicílio.
Com base em oito anos de atuação em UTIN e mediante observações e indagações realizadas aos pais no momento da alta hospitalar por esta autora, foi possível perceber que muitos se sentem despreparados para esse momento. E como agravante, muitas mães não contam com ajuda de companheiros, familiares ou amigos quando retornam aos domicílios.
Conhecendo esta realidade e reconhecendo a importância do cuidar de forma transpessoal para a prática de Enfermagem, a questão norteadora deste estudo é: como a enfermeira domiciliar vivencia o cuidado transpessoal à família de neonato egresso de UTI? Para responder a tal indagação, traçou-se como objetivo: descrever a vivência da enfermeira domiciliar em cuidado transpessoal a familiares de neonato egresso de UTI.
Referencial teórico para o cuidado transpessoal domiciliar a família de neonato egresso de UTI
A Teoria do Cuidado Transpessoal desenvolvido pela Doutora Jean Watson foi escolhida para compor o referencial teórico deste trabalho devido à identificação pessoal da primeira autora ao conhecer mais profundamente seus propósitos e fundamentos.
O cuidado transpessoal de Enfermagem foi escolhido por acreditar que a relação de cuidado não acontece unilateralmente. Ambos os sujeitos dessa relação transformam-se e são transformados durante a concretização da relação de cuidado.
O cuidar de forma transpessoal é compreendido como o ideal moral da Enfermagem, no qual existe a preocupação máxima com a dignidade e preservação do ser humano. Uma relação transpessoal de cuidar conota uma relação de cuidar especial, uma união com a outra pessoa, considerando o seu todo e seu estar no mundo2.
Para a teórica, transpessoal refere-se à intersubjetividade da relação enfermeira-cliente, em que a pessoa da enfermeira é influenciada pela pessoa do cliente. Ambos estão presentes no momento e sentem uma união com o outro. Este contato subjetivo tem o potencial de ir além do físico-material ou do mental-emocional, e alcançar o sentido mais elevado do self espiritual ou do eu alma. O cuidado humano transpessoal ocorre numa relação eu-tu, e este contato é um processo que transforma, gera e potencializa o processo de heling (“termo que significa recomposição, restauração e reconstituição e nunca deve ser entendido como cura”)8:334.
O contexto para se ver o cliente e a enfermeira na Teoria do Cuidado Transpessoal é no momento-a-momento durante encontros entre as duas pessoas, um evento que implica uma ocasião de cuidar em que ocorrem transações intersubjetivas do cuidar2.
O momento de cuidado é aquele em que o eu da enfermeira se encontra e se une ao eu do cliente, passando a ser um só. Esta união provoca alterações permanentes na vida desses dois seres, não somente no presente, mas capaz de ecoar, também, para o futuro. Deste modo, ele torna-se parte da história de vida passada de ambos os seres e possibilita novas oportunidades, como por exemplo, o autoconhecimento2.
O cuidado transpessoal, entendido nesta dimensão, “possibilita um melhor conhecimento de si para melhor conhecer o outro, promove a ampliação da capacidade de reestruturação.” O cuidado que engloba e valoriza o trinômio corpo-mente-espírito é capaz de mudar o foco do cuidado, passando da perspectiva da cura para o da reconstituição e amor9:217.
A partir da publicação da sua obra em 200510, Jean Watson evoluiu na construção de sua teoria. Ocorreu a substituição dos fatores de cuidado, inicialmente utilizados, pelos elementos do processo clinical caritas, e, ao expô-los, amplia seus conceitos. Estes são expressos em dez elementos, os quais são apresentados sinteticamente a seguir:
Elemento 1- Praticar o amor-gentileza; Elemento 2- ser autenticamente presente, honrando o profundo sistema de crenças; Elemento 3- cultivar práticas espirituais; Elemento 4- desenvolver e sustentar uma autêntica relação de cuidado, ajuda-confiança; Elemento 5- ser presente e apoiar a expressão de sentimentos; Elemento 6- usar criativamente o eu e os caminhos do conhecimento; Elemento 7- experiências de ensino-aprendizagem que atendam a pessoa inteira, permanecendo dentro do referencial do outro; Elemento 8- criar um ambiente de reconstituição; Elemento 9- ajudar nas necessidades básicas; Elemento 10- dar abertura e atender aos mistérios espirituais e dimensões da vida-morte.
Desta forma, o cuidado transpessoal é aquele que acontece no momento de cuidado, em que os elementos do processo clinical caritas são utilizados pela enfermeira para a efetivação deste. Portanto, é na operacionalização dos elementos do processo clinical caritas que ocorre o momento de cuidado, o qual é muito mais que um processo de Enfermagem, visto que a teórica não o advoga.
Devido a esse fato, para a aplicação da Teoria do Cuidado Transpessoal proposto por Jean Watson neste estudo, foram utilizadas as fases do processo de cuidar de Lacerda11:33-36, as quais são compostas por:
Contato inicial: caracteriza-se pelos primeiros contatos entre enfermeira, cliente e família. A cada novo olhar ou ouvir, novas descobertas ocorrem. Neste momento, há um desvelar de ambas as partes, que pode ou não se completar. É neste momento que são consideradas a história de vida de cada um.
Aproximação: Nesta fase, a relação já evoluiu, os sentimentos, palavras, toques, várias formas de comunicação ocorrem, vários temas são abordados e a enfermeira e o cliente movimentam-se para uma união.
Encontro Transpessoal: ocasião em que ocorre a relação transpessoal, em que enfermeira e cliente transcendem cada um, não sendo mais dois e sim apenas um. “A enfermeira após viver esta experiência de união dos selves sente-se tocada em sua alma, na sua essência como profissional e como pessoa, marcando seu viver de forma atemporal”11:35.
Separação: esta fase conota a maturidade das partes envolvidas, em que as conotações subjetivas se modificam e esses partem regenerados e enriquecidos com o conhecimento, força e energia para enfrentar a vida. A enfermeira e o cliente se libertam do vínculo estabelecido. Porém, a separação pode ocorrer de forma abrupta, sem que tenha ocorrido transformação, seja por recuo do cliente, ou pela necessidade de maior preparo por parte da enfermeira ou do cliente, ou também pela necessidade de suporte de outro profissional.
Metodologia
Trata-se de um estudo de caso descritivo, com abordagem qualitativa, realizado com uma família de neonato egresso de UTIN.
O estudo de caso representa a estratégia preferida quando se colocam questões do tipo “como” e “por que”, quando o pesquisador tem pouco controle sobre os acontecimentos e quando o foco se encontra em fenômenos inseridos no contexto da vida real12. Desta forma, a necessidade pelos estudos de caso surge do desejo de compreender fenômenos sociais complexos, o que permite uma investigação para se preservar as características holísticas e significativas dos acontecimentos da vida real12.
Assim, o estudo de caso “é uma investigação empírica que investiga um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto da vida real, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão claramente definidos”12:32.
Para a realização do estudo, delimitaram-se como locais de estudo dois ambientes: a UTIN de um hospital privado e de caráter filantrópico, referência para gestação de alto risco e o domicílio dos sujeitos.
A família, sujeito do estudo, seguiu os seguintes critérios de inclusão: ser pai, mãe ou familiar de neonato egresso, maior de 18 anos e experienciar pela primeira vez o internamento de um filho em UTI; ser residente no município de Curitiba; aceitar participar do estudo assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido; e, neonatos com maior nível de complexidade que necessitassem de cuidados específicos no domicílio, com conseqüente aumento da exigência da família nos cuidados pós-alta hospitalar.
A pesquisa passou por apreciação do Comitê de Ética e Pesquisa da Faculdade Evangélica do Paraná, sendo aprovado no dia 17de Setembro de 2008, sob o protocolo número 5641/08. Para respeitar o anonimato dos sujeitos, a família foi denominada de família Flores e seus integrantes receberam o codinome de flores: mãe Orquídea, pai Lírio e neonato Violeta.
A coleta dos dados, ou das evidências (termo utilizado pelo autor para referir-se a todos os dados de pesquisa que possam ser coletáveis e analisáveis) pode ser realizada por meio de seis fontes distintas. São elas: documentos, registros em arquivo, entrevistas, observação direta, observação participante e artefatos físicos12. Desta forma, a coleta de evidências desta pesquisa aconteceu por meio de documentos e registros em arquivo durante o período de Novembro de 2008 a Março de 2009.
Os documentos eram compostos por: ficha de nascimento do RN, ficha de admissão na UTIN, evolução clínica e de Enfermagem, carteirinha de vacinação, resumo de alta, encaminhamentos e receita médica para a alta hospitalar. Os registros em arquivo utilizados foram diários de campo e notas metodológicas elaborados durante os encontros domiciliares com a família sujeito do estudo.
A família foi contactada durante a internação do neonato, momento em que ocorreu a apresentação da pesquisa e do pesquisador e formalizações éticas. Durante três semanas, houve três encontros hospitalares com a família flores, período em que a fase do contato inicial do processo de cuidar foi aplicado. Após a alta hospitalar, sete encontros domiciliares aconteceram com esta família, todos com agendamento prévio, via telefone, e acordados com a família.
Para a análise das evidências, duas estratégias de análise distintas são propostas pelo autor, uma denominada de estratégia analítica geral e outra de estratégia analítica específica. Entre as estratégias analíticas gerais, três tipos são descritos: baseando-se em proposições teóricas, pensando sobre explanações concorrentes e desenvolvendo uma descrição de caso12.
Neste estudo, a estratégia geral para análise das evidências é “baseando-se em proposições teóricas”, a qual é preferida, pois segue as proposições teóricas que levaram ao estudo de caso. Os objetivos e o projeto originais do estudo pautaram-se em proposições que, por sua vez, refletiam o conjunto de questões da pesquisa, as revisões feitas na literatura sobre o assunto e as novas proposições que poderiam surgir12.
Desse modo, as proposições utilizadas para o desenvolvimento deste trabalho foram o processo de cuidar de Lacerda11 e os elementos do processo clinical caritas. Assim, todas as proposições pautaram-se na Teoria do Cuidado Transpessoal desenvolvida por Jean Watson. A estratégia analítica geral fundamenta as técnicas analíticas específicas que serão utilizadas para analisar os dados do estudo de caso. Cinco técnicas analíticas específicas são apresentadas pelo autor: adequação ao padrão, construção da explanação, análise de séries temporais, modelos lógicos e síntese de casos cruzados12.
Para o desenvolvimento do presente estudo, a técnica analítica específica utilizada foi a de “adequação ao padrão”. Por adequação ao padrão, entende-se que se compara um padrão fundamentalmente empírico com outro de base prognóstica12. Dessa forma, a adequação ao padrão consiste em ajustar as evidências coletadas a um padrão. No caso deste estudo, o padrão refere-se ao Processo de Cuidar proposto por Lacerda11 o qual, juntamente com a Teoria do Cuidado Transpessoal de Jean Watson, fundamentam a coleta e análise dos dados e compõe o referencial teórico desta obra.
Resultados e discussão
Para a apresentação dos resultados, fez-se uso das quatro fases que compõem o processo de cuidar proposto por Lacerda11, as quais, aliadas ao referencial teórico que embasa este estudo e seguindo os critérios metodológicos selecionados, serão apresentadas a seguir, separadas em primeiro e segundo momento, devido ao afastamento temporal ocorrido entre o terceiro e quarto encontros, o qual exigiu a retomada de fases anteriormente contempladas.
Primeiro momento:
Contato inicial
Violeta é um bebê que nasceu prematuramente, com peso de 900g. Permaneceu hospitalizada durante 48 dias na UTIN, recebeu alta com peso de 1745g. A família é composta pela mãe Orquídea e pelo pai Lírio. Os sete encontros domiciliares realizados com esta família tiveram a duração média de uma hora e trinta minutos e intervalo de 8 dias em geral, entre cada encontro. Uma exceção ocorreu apenas entre o terceiro e quarto, cujo intervalo foi de 49 dias devido à viagem de férias da família.
O primeiro contato com a família aconteceu no decurso da hospitalização de Violeta, momento em que Orquídea a segurava no colo pela primeira vez. Devido à prematuridade, a criança permanecia a maior parte do tempo dentro de uma incubadora. Ao conversar com a criança e chamar a mãe pelo nome, esta se mostrou receptiva e emocionada pelo momento que vivia. Orquídea tentava amamentar Violeta e relatou o quanto havia desejado e esperado por aquela oportunidade. Assim, para que a família pudesse viver aquele momento, tomei a decisão de me afastar.
Foi aplicado o elemento 6 do processo clinical caritas, o qual afirma que a Enfermagem deve “usar criativamente o eu e todos os caminhos do conhecimento como parte do processo de cuidar”. Sob essa óptica, a sensibilidade deve fazer parte dos conhecimentos da enfermeira e ela precisa utilizá-los para atingir o cuidado e a reconstituição3:107.
O elemento 4 também foi utilizado, pois para o desenvolvimento de uma autêntica relação de cuidado, é necessário fazer-se presente, estabelecer uma relação que vai além dos sentidos, de forma empática, com respeito e sensibilidade, além da isenção de julgamentos e preconceitos13.
Outros dois encontros aconteceram ainda na UTIN. No segundo encontro, o trabalho foi apresentado e a família convidada a participar. Aceitou prontamente, mostrando entusiasmo e até certo alívio, devido ao fato de estarem inseguros quanto aos cuidados a serem realizados após a alta do bebê. No terceiro contato, ocorreu a marcação do primeiro encontro no domicílio após a alta hospitalar de Violeta.
O primeiro encontro domiciliar ocorreu após dezessete dias do terceiro momento na UTI. Orquídea estava assustada com a necessidade de reinternação de Violeta após cinco dias da alta hospitalar, devido à broncoaspiração durante a administração de medicamentos realizados pela mãe. A criança permaneceu reospitalizada durante três dias. Orquídea fazia muitas perguntas, andava sem parar e balançava a criança nos braços.
Ao perceber esta agitação, alguns elementos do processo clinical caritas foram empregados: o elemento 2, o qual nos remete a fortalecer, sustentar e honrar o profundo sistema de crenças e o mundo de vida subjetivo do ser cuidado. Igualmente no elemento 3, que refere o desenvolvimento de práticas espirituais próprias e do eu transpessoal. A empatia e a valorização das crenças da família cuidada também foram utilizadas, bem como o elemento 5, que remete à expressão de sentimentos positivos e negativos e, finalmente, o elemento 6, em que se aplica múltiplos conhecimentos na tentativa de auxiliar a reconstituição daquele momento.
Assim, iniciava o desvelar de ambas as partes, que pode levar à evolução ou não da relação, possibilitando prosseguir ou não para as fases subsequentes, o que dependerá não apenas do interesse da enfermeira, mas também dos seres cuidados11.
Aproximação
O segundo encontro na casa da família ocorreu após nove dias conforme agendamento prévio. Orquídea estava nervosa devido à hipertermia apresentada pela criança durante a noite em decorrência de uma possível reação vacinal. Orquídea sentia-se esgotada e sobrecarregada com as atividades da casa e os cuidados com Violeta. Reclamou que não tinha ajuda do esposo, ele estava cobrando atividades que ela não tinha condições de fazer e tudo isso deixava Orquídea nervosa, sentindo-se impotente como dona de casa e como mãe.
Nesta situação, o elemento 1 do processo clinical caritas foi utilizado, o qual conota a prática do amor e gentileza, em que está presente uma genuína intenção de cuidado, realizado de maneira amorosa e gentil13. Também foi importante desenvolver e sustentar uma autêntica relação de cuidado, ajuda e confiança (elemento 4), pois era preciso estar presente de forma integral, ouvir, perceber e sentir o que o outro tem a dizer, não somente pela sua voz, mas pelos seus gestos, olhares, movimentos; tudo de maneira empática, sem pré-julgamentos, com sensibilidade e respeito, pois somente desta maneira a relação poderia evoluir para o encontro dos selves.
O elemento 5 também foi empregado para que ela pudesse expressar suas emoções e sentimentos de modo natural e, a partir dessa expressão, eu pudesse auxiliá-la a fortalecer sua própria reconstituição. Tais sentimentos e vivências experenciadas também poderiam se transformar em ponto de partida para o crescimento e superação, como uma experiência de ensino-aprendizagem (elemento 7), mas percebia a importância de ajudá-los quanto às necessidades básicas (elemento 9), de ordem inferior (biofísica), e superior (psicossociais e intrapessoais) por perceber a agitação, irritação e angústia que Orquídea demonstrava relacionada à sobrecarga de atividades, privação do sono e sentimento de incapacidade por ela verbalizado.
Neste encontro ocorreu cuidado mútuo entre a pesquisadora e os seres cuidados. Lírio preparou e serviu um lanche. Naquele momento, a certeza de que a relação evoluiu era clara e evidente, pois vários assuntos surgiram: a história do casal, as dificuldades do estrangeiro em território brasileiro, planos para o final de ano etc. Tais situações expressam a união que era construída com o passar dos encontros.
Esta etapa do processo denota evolução na relação entre enfermeira e ser cuidado. Vários temas são abordados durante os encontros, e ambos os seres se movimentam para a união11, em que a enfermeira pode desenvolver uma relação de ajuda e confiança, como forma de perceber o outro mais profundamente, como refere o elemento 4 do processo de clinical caritas proposto por Watson3.
Encontro transpessoal
O terceiro encontro se deu uma semana após o segundo. Devido à viagem programada dos sujeitos cuidados para o litoral, o quarto encontro aconteceria somente após algumas semanas.
Orquídea sorridente amamentava Violeta e expressou por meio de um abraço com uma das mãos, e, verbalmente também, que era muito bom ter alguém com quem compartilhar aqueles momentos e que estava feliz pela minha presença. Enquanto Orquídea expressava sobre a semana da família, Lírio foi até a escada que leva ao piso superior e começou a limpá-la. Orquídea balançou a cabeça em sinal de aprovação e sorriu disfarçadamente. Nenhum comentário foi proferido naquele momento, mas foi possível perceber a alegria no olhar, no sorriso e na fala de Orquídea pela ajuda do esposo nas tarefas domésticas, assunto que havia sido conversado no encontro anterior.
Os elementos 1, 2, 4, 6, 7 e 8 foram aplicados, em um misto de presença, atenção, amor, gentileza, cuidado, ajuda-confiança, uso criativo do conhecimento, aprendizado com as novas situações e com as já vivenciadas, na tentativa de reconstituição e criação de um ambiente capaz de restaurar os envolvidos naquela relação de cuidado.
Durante o cuidado transpessoal, os sentimentos são libertados, o que permite que o receptor dos cuidados, assimile melhor a condição da sua alma e do seu próprio ser. Tal assimilação pode levar à reorganização do Eu percebido e do Eu experenciado de cada um dos seres envolvidos na relação de cuidado e ambos estão mais unidos acerca do que cada espiritualidade é na sua essência2.
Quase dois meses se passaram sem que encontros com a família pudessem ser realizados devido às festas de final de ano e à viagem por eles programada. Durante este período de afastamento, modificações puderam ser sentidas dentro de mim, como, por exemplo, a transformação na maneira de agir e de pensar a relação com o outro, não somente referente a este caso, mas durante as ações de cuidar do meu cotidiano pessoal e profissional.
Segundo momento:
Contato inicial
No quarto encontro após um mês e 20 dias, ocorreu uma regressão na relação e no processo de cuidar, havendo necessidade de retornar à primeira fase do processo de Lacerda11 para que a efetivação da relação fosse alcançada.
Questões biológicas foram o foco do encontro, muitas dúvidas ressurgiram com relação a assuntos já vivenciados e que a priori demonstraram superação. Houve necessidade da utilização do elemento 6, 7 e 9, além do elemento 5 muito presente neste encontro.
Orquídea demonstrava muita preocupação em relação à saúde de Violeta, retomou antigas dificuldades já vivenciadas que pareciam ter sido superadas. Então, foi possível perceber que novamente caminhávamos na fase do contato inicial, fato relativo ao prolongado período de separação, quando o encontro transpessoal ainda estava acontecendo e a reconstituição não havia se concretizado efetivamente. Elementos que conotam a presença da enfermeira, a intenção do cuidado, empatia, respeito a crenças e abertura a sentimentos negativos foram empregados, na tentativa de mais uma vez evoluir na relação.
Aproximação
No quinto encontro com a família, após uma semana, Orquídea estava sozinha devido à viagem do esposo. Ela estava mais tranquila, porém desorganizada quanto às rotinas diárias, pois às 15h ela ainda não havia conseguido almoçar. Ao ficar com Violeta para que Orquídea pudesse se alimentar, era utilizado o elemento 9 do processo clinical caritas, o qual contribui para o alcance das necessidades básicas.
Orquídea expôs vários sentimentos, receios, mas também alegrias por conquistas vivenciadas. O significado da amamentação para aquela mãe pôde ser compreendido e relações com acontecimentos anteriores, que não haviam ficado claros, foram realizados.
Neste encontro atingiu-se novamente a fase da aproximação, pois ela ocorre quando a relação já evoluiu e “os sentimentos, palavras, toques, várias formas de comunicação ocorrem, vários temas são abordados e a enfermeira e o cliente movimentam-se para uma união”11:33.
Encontro transpessoal
O sexto encontro aconteceu após 14 dias. Orquídea esperava na porta com Violeta nos braços e sorriu ao me ver. Abraçou-me e pediu que eu entrasse. Dirigimo-nos até o quarto do casal e lá permanecemos durante o encontro.
Orquídea estava descontraída, alegre, falante e também preocupada com dois novos eventos. Um deles referente a problemas em uma das unidades onde a filha faz acompanhamento e a outra devido à diminuição do leite materno.
Houve a tentativa de utilização dos elemento 6 e 7 para que se fosse capaz de compreender o significado que aquela situação tinha para Orquídea, e, a partir daí, contribuir para o entendimento e superação da dificuldade.
Aos poucos, ela estava organizando sua vida, comentou sobre os planos que possuía, em relação a voltar a trabalhar, ser independente, ganhar seu próprio dinheiro, conhecer pessoas novas, sair de casa, enfim, demonstrou entusiasmo e certa ansiedade para que este período logo chegasse.
Orquídea olhou-me e disse que gostava muito da minha presença, que eu levava esperança, tranquilidade, carinho, atenção à sua casa e isso lhe fazia muito bem. Sentia-me da mesma maneira, alegre, em paz e renovada a cada encontro. Assim, foi possível entender e sentir o que Watson2 descreve a respeito da relação transpessoal: união da enfermeira com o outro e, nesta, existe elevada consideração pelo todo da pessoa e pelo seu estar no mundo. Neste momento, há uma união espiritual entre duas pessoas e são capazes de transcender a si próprias, ao tempo e espaço. Existe o compartilhamento de experiências e a criação de um campo fenomenológico próprio, mais profundo e complexo.
O cuidado transpessoal acontece no momento de cuidado, ocasião em que duas pessoas juntas com as suas histórias de vida únicas e o seu campo fenomenológico dão lugar à ocasião real do cuidar, com um campo próprio, maior. Assim, o momento da ocasião do cuidar, torna-se parte da história de vida de ambas as pessoas e dá, a ambos, novas oportunidades para além da instância de um ponto no tempo2.
Separação
O sétimo e último encontro com esta família foi um encontro atípico. Novamente encontramo-nos em um dia chuvoso, mas Lírio não estava presente e Violeta dormiu durante todo o tempo. Orquídea estava feliz, com semblante descansado, aliviado. Comentou que estava dormindo bem, mais animada com os afazeres domésticos e cuidados com Violeta. Já conseguia conciliar suas atividades, suas consultas médicas, sua rotina de vida com a rotina do bebê, sem que isso fosse um peso ou um fardo a carregar.
Era possível perceber Orquídea descontraída, com planos para o futuro, madura com relação às dificuldades enfrentadas e as que ainda estavam por vir. Comentou sobre sua participação na pesquisa, como se sentiu ao participar dela, suas expectativas e a constatação do processo vivenciado.
Afirmou que sentiria minha falta e que se sentia sozinha antes mesmo de o encontro acabar. Sabia que teria de superar este momento e encontrava-se fortalecida para o enfrentamento das situações.
O elemento 10 foi utilizado, pois neste caritas process ocorre a percepção do mundo subjetivo das experiências internas de vida dos outros, o qual pode ser afetado por muitos fatores que não podem ser totalmente explicados3. Mas é preciso separar-se. A relação tem um fim e a separação representa a evolução da relação e a maturidade das partes envolvidas, em que enfermeira e cliente se libertam do vínculo criado por atingirem cada um os seus propósitos, ou ainda, esta pode acontecer de forma abrupta sem que a transformação tenha ocorrido, seja por recuo do cliente ou pela necessidade de suporte de outro profissional11.
Fez-se início o momento das despedidas. Violeta continuava dormindo, mas mesmo assim recebeu meu carinho e gratidão expressa à sua mãe. Ao sair da casa da família, Orquídea permaneceu no portão até que não pudesse mais ser vista. Esse momento foi o fechamento de um círculo, a efetivação de um processo de cuidar transpessoal que modificou meu modo de pensar, de imaginar, de sentir a vida.
Conclusão
Ao descrever a vivência como enfermeira domiciliar aos familiares de neonato egresso de UTI e, utilizando como referencial teórico a Teoria do Cuidado Transpessoal de Jean Watson, a qual sustentou e norteou o desenvolvimento deste estudo, atendo ao objetivo proposto.
Viver este estudo significou descobrir um leque de possibilidades de atuação da enfermeira, além de entrar em contato com um referencial que aos poucos se tornou parte da minha vida pessoal e profissional, mudou meu modo de pensar, fez-me perceber o outro na relação de cuidado e de agir durante minha atuação como profissional da Enfermagem e ser humano que vive em grupo. Possibilitou ainda a aproximação com o cuidado domiciliar, com a realidade do ser cuidado, com o ambiente de domínio do cliente e fez com que eu percebesse o quão distante estava minha prática, considerada “ideal”, do real em que o outro vive, o que permitiu que repensasse minha trajetória profissional para que as ações de cuidado fossem capazes de refletir tudo o que vivi e aprendi com o percorrido até aqui.
Muito ainda é preciso avançar, mas é perceptível a importância que cuidar do outro de modo transpessoal representa para a vida dos envolvidos nesta relação e o quanto evoluí desde o início desse processo.
Cabe a todos os profissionais da saúde rever e aprimorar sua forma de cuidar em busca da excelência, daquilo que satisfaz os seus interesses e mais do que isso, satisfaça as necessidades daqueles que o compartilham. Cuidar de modo transpessoal requer envolvimento, investimento e identificação, mas é passível de realização seja em um ambiente crítico como a unidade de terapia intensiva, ou no domicílio dos pares desta relação. Deve-se ter em mente que o cuidado à família de um neonato egresso de UTI em seu domicílio, é permeado por um caráter imprevisível, uma vez que as situações vividas naquele momento são o que determinam as necessidades de cuidado. Esse contexto, por sua vez, exige do profissional a utilização de recursos e estratégias adequadas e coerentes a cada situação, embasadas nos diversos tipos de conhecimento, empatia, vontade genuína de acertar e estar na relação, além de atualização constante e revisão periódica da sua própria condição de ser humano e profissional do cuidado.
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