The sufferings and self care of hospitalized elderly - ethnography study
Os sofrimentos e o cuidado de si dos idosos hospitalizados - estudo etnográfico

 Fernanda Spiel Tuoto 1; Maria Helena Lenardt 2; Kriscie Kriscianne Venturi 2

1 Hospital Erasto Gaetner, PR, Brasil; 2 Universidade Federal do Paraná, PR, Brasil.

 ABSTRACT: Elderly oncological patients are marked by several limitatons and impositions generated by the disease and aging process, which lead them to hospitalization. This is a qualitative research with an ethnographic approach.  This study took place at a clinical ward in a reference hospital for cancer treatment, in the city of Curitiba, Paraná. This study aimed to interpret hospitalized elderly cancer patients suffering and the self care performed to minimize their suffering. The data was collected in 2007, from April to June, by participant observation and ethnographic interview. The following methodological phases were considered to analyze the data: domain, taxonomic and thematic. As a result of the research, four cultural domains emerged as well as a cultural theme titled: “through the elderly calvary of pain, the belief that sustains life”. Intense physical pain, lack of appetite, breathing difficulty and impossibility of walking and working are noticed by the elderly as the main suffering related to cancer.  It is concluded that informers make direct allusion to a calvary in which religion was used as the most essential self care.    

Keywords: Elderly; Pain; Neoplasia; Hospitalization. 

RESUMO: Os idosos portadores de doença oncológica são marcados por diversas limitações e imposições geradas pela doença e pelo processo de envelhecimento, que os conduzem à hospitalização. Trata-se de uma pesquisa qualitativa de abordagem etnográfica, realizada na ala de tratamento clínico de um hospital referência em tratamento de câncer, na cidade de Curitiba. O estudo teve como objetivo interpretar os sofrimentos pelos quais perpassam os idosos hospitalizados portadores de câncer e o cuidado de si por eles desenvolvidos para abrandar os sofrimentos. As informações foram coletadas no período de abril a junho de 2007, por meio de observação participante e entrevista etnográfica. Para análise das informações foram consideradas as etapas metodológicas: domínio, taxonômica e temática. Como resultados da pesquisa emergiram quatro domínios culturais e um tema cultural intitulado: no calvário de dor dos idosos, a crença que sustenta a vida. A dor física intensa, falta de apetite, dificuldade para respirar e a impossibilidade de andar e trabalhar são percebidos pelos idosos como os principais sofrimentos relacionados ao câncer. Conclui-se que os informantes fazem alusão diretamente a um calvário em que a crença religiosa foi utilizada como o mais essencial cuidado de si.

 Palavras-chave: Idoso; Dor; Neoplasias; Hospitalização.

 Introdução

O rápido crescimento da população idosa traz mudanças para nossa civilização e desafia a sociedade em diferentes aspectos, especialmente naqueles relativos à saúde humana.  As pessoas idosas, devido ao processo de envelhecimento, aos fatores genéticos e aos comportamentos de saúde nocivos ao longo da vida, apresentam maiores chances de desenvolver doenças crônicas não-transmissíveis1 ou crônico-degenerativas características desta faixa etária.

Entre as doenças crônico-degenerativas que acometem os idosos, o câncer é o segundo grupo de causas de morte nesta população2.  Apesar dos avanços tecnológicos na medicina, a incidência e mortalidade, principalmente na oncologia, aumentam cada vez mais na população idosa. A previsão entre 2007 a 2030 é de um aumento de 45% da mortalidade, devido a crise demográfica e envelhecimento da população. Estima-se que o número de casos novos de câncer aumentará de 11,3 milhões em 2007 a 15,5 milhões em 20303.

O câncer produz um enorme impacto na comunidade geriátrica, e ainda acarreta complicações importantes em todos os aspectos da vida de uma pessoa, sendo maior as conseqüências em um idoso, por este possuir limitações e imposições referentes ao processo de envelhecimento. São complicações e imposições no aspecto físico, psíquico, social e que levam o idoso a hospitalizar-se. Neste período de internação ele experiência, muitas vezes, situações capazes de provocar agressões de várias ordens e traduzidas nas mais variadas formas de sofrimentos.

O sofrimento foi definido pelas autoras como sendo o estresse associado com eventos que ameacem a integridade ou o todo de uma pessoa. As causas do sofrimento podem ser agrupadas de acordo com a sua origem física, psicossocial, cultural ou espiritual. Nos pacientes com câncer o sofrimento pode resultar de uma ou várias causas. O termo Sofrimento Total é usado para descrever a soma dos fatores responsáveis pelo sofrimento. Vários aspectos do sofrimento são interdependentes, entretanto a dor pode ser causada ou agravada por outras causas de sofrimento.

O paciente idoso pode suportar muito bem qualquer forma de tratamento para o câncer, desde que se leve em consideração a coexistência de processos morbígenos próprios da idade: a deficiência do sistema imunológico, influências ambientais e psicológicas e os distúrbios fisiológicos que modificam o metabolismo e a distribuição das drogas. Estes processos intrínsecos do idoso são obstáculos que devem ser bem analisados e vencidos quando do planejamento das ações de cuidado para o idoso, embora não se apresentem como fatores únicos para o sucesso da terapêutica. O olhar atento para o comportamento do próprio idoso, são atitudes imprescindíveis por parte da equipe que cuida. É preciso dirigir o olhar para o modo como ele experiência o tratamento e realiza os cuidados necessários ao submeter à prova sua capacidade de suportar.

Com o intuito de aliviar os sofrimentos do idoso, a equipe que presta cuidados não pode desprezar, é preciso entender as aflições expressadas pelo mesmo diante da trajetória de tratamentos e de cuidados. Isto exige por parte dos profissionais, cooperação com os desejos da pessoa idosa e provisão de poder a ela, oferecendo estímulo à capacidade para cuidar de si, num processo que exige estas atitudes para o sucesso do tratamento.

O cuidado de si surge com mais intensidade no momento da necessidade de se fazer algo para amenizar ou sanar os padecimentos advindos do câncer. Acredita-se que o cuidado de si seja uma atividade imprescindível para aliviar o sofrimento no período da hospitalização.

Neste estudo entende-se por cuidado de si como o cuidado desenvolvido pela própria pessoa idosa e/ou aquele cuidado em que o idoso solicita ajuda parcial ou total de outrem. Justificamos esta definição por se tratar de pessoa idosa, porquanto nem sempre se conta com a independência total. Em razão disto, não consideramos o termo autocuidado como o ideal para os idosos hospitalizados com câncer.  

            Alicerçada no exposto, a investigação teve como objetivo: interpretar os sofrimentos pelos quais perpassam os idosos hospitalizados portadores de câncer e o cuidado de si por eles desenvolvido para abrandar os sofrimentos.

Metodologia

TIPO DE ESTUDO E INFORMANTES

Trata-se de pesquisa qualitativa de abordagem etnográfica. Para a sua realização foram informantes 26 idosos. Destes, 19 eram homens e 7 eram mulheres, todos internados na ala de tratamento clínico de um hospital de ensino e de referência em tratamento de câncer, localizado na cidade de Curitiba - Paraná.

Para o estudo foi adotada a definição de idoso conforme a Lei nº 8842/94 que dispõe sobre a Política Nacional do Idoso, “o idoso é aquele que conta igual e mais de 60 anos”4:12277.

Os critérios de elegibilidade para participar como informante foram: aceitar participar da pesquisa, ter idade igual ou superior a 60 anos, possuir capacidade física e mental (conforme avaliação descrita no prontuário do paciente) para responder a entrevista etnográfica, estar internado na ala de tratamento clínico do hospital e ser portador de qualquer tipo de câncer.

COLETA E ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES

            O período de coleta das informações foi de abril a junho de 2007, suficiente para adquirir a saturação dos domínios. Como instrumento de coleta das informações desenvolveu-se a observação participante e a entrevista etnográfica não-estruturada.

Efetuamos a observação participante moderada5 (OPM), que é quando o etnógrafo busca manter equilíbrio entre ser espectador, entre participação e observação. A OPM consistiu no registro descritivo dos comportamentos dos informantes, na expressão verbal e não verbal e na descrição do cenário onde se desenvolveu a situação de hospitalização. A observação participante moderada foi realizada concomitante à entrevista etnográfica. As informações etnográficas e as observações foram registradas num diário de campo, sob a forma de anotações descritivas.

Durante o questionamento etnográfico adotamos a forma de um diálogo coloquial de forma conjunta com a OPM, alicerçado no seguinte roteiro de questões descritivas e estruturais 5,6: 1) Quais os sofrimentos ao longo da hospitalização? 2) Por que perpassam sofrimentos durante a hospitalização? 3) Quais os cuidados de si que desenvolvem no período da hospitalização? 4) Quais os locais de sofrimento durante a hospitalização?

As informações foram submetidas às análises de domínios, taxonômicas e temáticas5,6 e foram organizadas e processadas concomitantes à coleta das informações.

 

ASPECTOS ÉTICOS

O projeto foi encaminhado ao Comitê de Ética em Pesquisa do hospital e aprovado para sua execução, mediante parecer consubstanciado sob o registro P.P.1141 em reunião de 05 de abril de 2007. Os critérios de respeito à dignidade do ser humano, à proteção, aos direitos, ao sigilo e ao anonimato foram assegurados pelo Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, fundamentado na Resolução 196/967, sobre pesquisa envolvendo seres humanos. Para garantir o anonimato dos informantes, os mesmos foram identificados por iniciais fictícias.

 Interpretação dos domínios

DOMÍNIO CULTURAL 1: A dor, a falta de apetite, respirar com dificuldade, impossibilidade de andar e trabalhar são indutores de sofrimentos físicos.

 O sofrimento é a pior coisa do mundo, é a dor pelo corpo... eu tenho muita dor nos ossos, é uma dor horrível ( R.S.10/05/07).

 Eu fico gemendo quando estou com dor, porque parece que isso tira minha dor (R.S.10/05/07).

 Eu sofro com a minha respiração que agora é difícil, pesada, dói. Não é como o normal de quando a gente respira, sinto falta de ar (T.I. 04/05/07).

Já senti muita dor. Bom, a gente só interna porque sente dor. Eu reclamo de dor para pedir remédio, mas não sou de fazer alarme, fico quieta no meu cantinho até passar (M.M. 01/06/07).

No hospital é tudo ruim, mas o meu sofrimento maior é não conseguir comer, porque como e passo mal, ponho tudo para fora (F.O. 19/05/07). 

Não conseguir comer me faz sofrer porque quando a gente come e bebe com vontade, fica forte. Assim sem comer sinto muita fraqueza, é que não tenho apetite. Ficar sem comer é ruim até para minha mulher que me vê ficar fraco, tenho ânsia de sentir o cheiro da comida (A.F. 29/04/07). 

O sofrimento é a coisa mais triste que pode existir para a pessoa, é só você cair numa cama e não poder andar (E.A. 27/04/07). 

Eu sei que vou conseguir andar porque isso é coisa passageira, tenho fé nisso. Tenho fé, acredito que vou melhorar (R.S. 10/05/07).

 Eu sofro um pouco porque tenho que ficar aqui deitado, não posso andar.

Eu sou acostumado a trabalhar e tenho que ficar deitado (A.F 25/04/07).  

Eu ainda trabalho, sou jardineiro porque a aposentadoria é muito po poupouco. Quero trabalhar... (J.C. 19/05/07).

 

A dimensão física do sofrimento dos idosos durante a hospitalização foi expressa principalmente pela presença de dor, e na sequência por não conseguir comer, dificuldade em respirar e impossibilidade de andar e trabalhar.

Entre os vinte e seis idosos, doze deles associaram sofrimento físico à dor. A dor física “é a mais óbvia e freqüente causa de sofrimento para o paciente oncológico”8:88.

O modo de expressar a dor é cultural, desde que se entenda a cultura “como um modo de se comportar, de se comunicar diante das atividades em relação à vida”9:103.  O background cultural “pode exercer grande influência na maneira como as pessoas percebem e reagem à dor, em si mesmas ou em outras pessoas, e pode também influenciar o modo como as pessoas comunicam a dor”10:165.

Nas demonstrações perante a dor, podemos defini-la como individual, singular para cada idoso investigado, “ainda que duas pessoas padeçam a mesma dor, cada uma a padece de maneira pessoal, correspondente à sua índole, cultura, educação, experiência de vida, memórias do passado e projetos do futuro”11:1247.

Neste estudo a dor não foi analisada comparativamente à cultura dos idosos, para isso seriam necessários protocolos adequados. Apenas interpretamos como cultural as expressões dos idosos diante da dor.

Os idosos relataram a dificuldade para alimentar-se e para respirar como sofrimento físico e que este modo de sofrer é de um martírio lento e atroz. Alimentar-se e respirar são necessidades básicas do ser humano para se nutrir, sem as quais ele morre. O ar/oxigênio que introduzimos em nossos pulmões é vital, significa para nós humanos o sopro da vida. Quando o idoso sente “falta de ar” (dispnéia) este sintoma gera sofrimento, provoca ansiedade, angústia e desespero, porque quem não respira não vive: morre. Nesta perspectiva o idoso se depara com a morte.

Para o idoso o alimento é substância que traz força, energia ao corpo doente, enfraquecido pela falta de apetite advinda do câncer e pela “via crucis” da hospitalização. Portanto, a dificuldade que encontram para se alimentar é geradora de sofrimento, no sentido de que contribui para enfraquecer, debilitar mais seu frágil organismo.

O alimento é mais do que apenas uma fonte de nutrição. Desempenha diversas funções e está intimamente relacionado com os aspectos sociais, religiosos e econômicos da vida cotidiana. “O alimento traz consigo uma série de simbolismos, manifestando e criando as relações entre o homem e o homem, o homem e as deidades, e o homem e seu meio ambiente natural”10: 48.

O idoso com câncer permanece longos períodos acamado e isto significa ficar ainda mais frágil, num amplo sentido, fere seu amor-próprio, sua dignidade como ser humano. Estes idosos pertencem à geração que para garantir o sustento familiar era preciso muito esforço físico, muitas horas de trabalho e deitar numa cama era permitido somente quando vinha a noite.

Quando o idoso recupera, mesmo que parcialmente o estado de saúde e pode sair do leito, isto significa para ele retomar a vida que deixou enquanto acamado. O ser humano é uma abertura para horizontes, é uma abertura para a existência, é um ser de existência, de manifestação. No leito, na imobilização física que a doença impõe o idoso não consegue se manifestar por completo, é preciso decidir aí ficar, aceitar a imobilização, a doença, a morte.

            Os idosos pesquisados apresentaram baixa renda familiar e afastados de sua fonte secundária de renda a situação financeira tornou-se mais crítica. A dificuldade econômica foi apontada por todos os idosos como mais um sofrimento que eles acrescentam a todo o sofrimento gerado pela doença. Todos os idosos participantes do estudo eram aposentados formalmente, fato que não os impedia de manter algumas atividades de trabalho. Estas atividades, segundo eles, têm a função de complementar a renda familiar e servem também como meio de se manter ativo, interativo na sua comunidade.

            As situações pontuadas pelos idosos como indutoras de sofrimento físico (dor, dificuldade para alimentar-se, falta de ar e imobilidade) podem ser minimizadas por meio de atitudes dos profissionais da enfermagem, as quais exigem em primeira instância o desenvolvimento de um processo interativo, dialógico junto aos idosos. A maneira como o enfermeiro percebe este processo dialógico irá influenciar sua atuação no cuidado e consequentemente na maneira como será recebido e aceito pelo idoso.   

DOMÍNIO CULTURAL 2: Incerteza do controle do tempo e da autonomia são elementos geradores do sofrimento psíquico durante a hospitalização.

 

Eu acho meio pesado ficar aqui no hospital, todo mundo me trata muito bem, mas eu sinto falta de ver minhas flores, de ficar com o meu cachorro. Isso me faz sofrer porque gosto de ser livre, gosto de liberdade (M.H. 20/04/07).

 O problema maior que tenho aqui no hospital é ficar sem fazer nada, porque em casa a gente mexe aqui e ali o dia inteiro, tem liberdade para fazer o que quer, na hora que quiser (L.M. 01/06/07).

 Eu trabalhei tanto na minha vida e agora estou aqui desse jeito dependendo dos outros. Por isso que todo mundo fala que os velhos atrapalham (E.A. 27/04/07).

 Eu acho horrível depender dos outros, ainda mais eu que sempre trabalhei fora e em casa mesmo, nunca dependi de ninguém para fazer o serviço da casa, agora minha cunhada vem nos sábados lavar roupa e limpar a casa, eu pago para ela (M.M.01/06/07).

 A doença quando começa não tem dia para terminar, eu queria que juntassem tudo o que precisa fazer e acabasse a doença de uma vez (J.D.A.14/04/07).

 A doença é minha cruz, e a doença não se sabe quando vai acabar, ela não passa rápido (E.A. 27/04/07).

 

A dimensão psíquica do sofrimento emerge na fala dos idosos na forma de falta de liberdade no hospital, de incerteza do tempo e dos obstáculos na autonomia. Ao vivenciar a situação de hospitalização o idoso deixa à parte atividades cotidianas, que significavam a faculdade de se governar por si mesmo.

            Os idosos de hoje, mesmo quando saudáveis, reclamam da condição que precisam se sujeitar e assim, consideram-se inúteis quando não realizam algumas atividades com efeito prático. Estes idosos pertencem a uma época, quando ativos, em que todo conhecimento era considerado um instrumento a serviço da ação, da utilidade e com isto se obtinha o êxito, a satisfação.

            Nos idosos com câncer, em razão das “limitações próprias que o envelhecimento traz e os episódios de descompensação e desequilíbrio”12:60 da doença, ocorrem hospitalizações com maior freqüência. Nestas hospitalizações    o doente idoso pode vivenciar o isolamento, o rompimento de laços afetivos com pessoas e situações importantes na vida pessoal.

A dependência decorrente do câncer e do próprio envelhecimento “é outra situação que assusta e acarreta desconforto: depender do outro significa perda da autonomia e da auto-estima”13:12.

            Também foram motivos de sofrimentos psíquicos na hospitalização as incertezas referentes ao tempo: o tempo de duração da doença, o tempo de hospitalização e o tempo de duração dos tratamentos e, principalmente, dos exames que antecedem diagnósticos relacionados ao câncer, como o tipo, a evolução e ou cessação do progresso da doença. Durante todo o processo terapêutico a incerteza está presente para os pacientes. É um lançar-se no incerto e prosseguir em uma trajetória sem lugar e tempo determinados14.

            A doença aparece como provocadora de mudanças ameaçadoras que “afastam o sujeito do ponto central do qual o EU acredita se constituir”15:76. O tempo influencia a estrutura (ponto central), modificando a posição do sujeito, provocando especificidades suscetíveis de se revelar em cada tipo de organização subjetiva e de modo singular para cada velho.

Para os doentes,

 

[...] o relógio e o calendário também não correspondem ao tempo real. Se observarmos com um pouco de atenção a forma como os doentes se referem ao tempo de internamento, ao tempo entre a chamada do serviço de enfermagem e o atendimento, entre uma situação dada e a decisão que o médico precisa tomar, veremos que para o doente o tempo é marcado e definido pela situação de tensão e sofrimento que ele experimenta neste intervalo16:115.

 

            “Só pelo fato de ter vivido, sabemos que o” tempo “não é a mesma coisa aos 15 ou aos 40 anos, e aos 80 anos o tempo como porvir se reduz ao tamanho dos projetos possíveis, ou no pior dos casos, a um total vazio de projetos”15:77.

O planejamento dos cuidados de enfermagem no decorrer da hospitalização do idoso deve favorecer as histórias pessoais, as individualidades físicas e psíquicas para se estabelecer um cuidado congruente, satisfatório para os envolvidos. O idoso deve ser coparticipante do cuidado de enfermagem, como ser ativo e dotado de autonomia. É preciso que os sentimentos expressados pelo idoso na relação dialógica sejam percebidos pelo enfermeiro e levados em conta durante as ações de cuidado, pois fazem parte do respeito mútuo. Os modelos de práticas educativas trabalhados durante a hospitalização devem se dirigir para a perspectiva de minimização dos efeitos negativos da hospitalização e principalmente dos sofrimentos envolvidos com a doença oncológica.   

 DOMÍNIO CULTURAL 3: Sofrimento pela espera e pelo isolamento.

Aqui é a casa da dor, existe a casa de Deus, de esperança, e aqui é a casa da dor, porque as pessoas sentem muita dor aqui. Eu sofri com o tempo da dor aqui (T.T.P. 25/04/07).

Eu estou aqui sofrendo nesse quarto, porque estou em isolamento, não posso sair fora daqui (A.S. 04/05/07).

Seria melhor estar em casa, porque lá sou livre... aqui fico nesse quarto, não posso andar onde eu quero (T.I.04/05/07).

Sofri quando fiquei esperando um tempão para fazer os exames, depois para saber o que eu tinha e se precisava internar, mas eu vi que tem bastante gente esperando para internar, é bastante gente que tem internado aqui (A.F.29/04/07).

Quando comecei a fazer os exames foi difícil porque eu ficava em casa pensando quais seriam os resultados, a gente fica muito angustiado e triste com isso (A.G. S. 01/06/07).

 

O hospital é entendido pelos idosos como um local de cura, mas o local em que as pessoas experimentam todos os tipos de sofrimentos. O O significado atribuído como lugar que se sente dor, justifica-se por tratar de uma instituição especializada no tratamento de câncer que traz consigo um estigma produzido e incorporado socialmente. Está explícito nos pacientes “a segregação do hospital enquanto espaço que se diferencia dos demais espaços sociais por tratar uma doença que produz muitas mortes”16:83.

            O hospital para as pessoas idosas possui muitos agravantes, um deles é que “pode remeter ao medo de não retornarem aos seus lares, de passar no hospital longos períodos e aí morrerem”17:192. É também um ambiente diferente daquele que o idoso está acostumado e por isto exige adaptação. Esta adaptação significa sofrimento para o idoso, pois o hospital é um ambiente regido por regras organizacionais, as quais o impedem de manter seus hábitos e costumes profundamente enraizados em sua cultura familiar.   

O quarto de isolamento é um lugar especifico para sofrer. Os pacientes oncológicos se submetem ao isolamento protetor e ao isolamento de contato. Em ambos os casos o isolamento ocorre em uma enfermaria de 2 leitos, na qual o segundo leito não é ocupado.

Os indivíduos são formados subjetivamente através de sua participação em relações sociais. Os idosos apresentam muito mais que os adultos uma forma particular de pertencimento. O isolamento num espaço físico provoca tristeza e desânimo, pois os vínculos, os lugares, os eventos e as histórias particulares que repetem em suas conversas representam importantes significados, que movem e articulam o cotidiano deles, são aspectos particulares de sua identidade que no ambiente solitário não conseguem expressar.

 

A experiência da hospitalização vem sempre representada como detentora de poder, desestruturante do cotidiano, da vida pessoal e familiar do doente. Gradativamente se transforma em redução das atividades diárias e centralização de um núcleo menor de relações interpessoais. O processo de hospitalização reduz o espaço externo do indivíduo18:28.

 

            O idoso, assim como as pessoas adultas, possui sua identidade cultural - aqueles aspectos de sua identidade que surgem de seu “pertencimento” étnico, racial, linguístico, religioso, familiar. O ambiente hospitalar, por ser desconhecido, descentra, desloca e até fragmenta essa identidade, pois abala os quadros de referência que davam ao idoso uma ancoragem estável no mundo social19.

             Os idosos relataram sofrer também em seus domicílios quando esperavam por uma vaga para a internação ou quando aguardavam os resultados de exames que indicariam ou não a necessidade de hospitalização. O período que antecede a internação é “um período de pouca informação. O paciente sabe pouco sobre a sua situação e sobre o que ocorrerá com ele”20:73. Para muitos pacientes, uma importante fonte de informação são os leigos, amigos e familiares. Essas informações, nem sempre fundamentadas, podem colaborar para aumentar o medo.

 DOMÍNIO CULTURAL 4: Cuidados de si utilizados para minimizar os sofrimentos: a crença religiosa e as orientações médicas. 

Eu tenho muita fé que Deus vai me ajudar a sarar. Eu tenho fé em Deus porque senão vou acreditar  em quem?(A.B. 18/04/05). 

Eu tenho muita fé em Deus, só Deus pode liberar a gente do sofrimento, mais ninguém (J.V. 04/05/07). 

É  Ele quem vai me curar, porque trago Ele comigo (R.S. 04/05/07). 

O meu cuidado é seguir tudo o que os médicos dizem para fazer. Tomo todos os remédios, tento me alimentar conforme as orientações que recebi, embora nem tudo seja possível, o que é possível é rezar (A.C. 11/04/07). 

Nunca parei nenhum tratamento, eu tento ajudar do meu jeito os médicos para ficar bom logo, o que mais faço é orar (M.H. 18/04/07). 

O cuidado de si emerge como modo de abrandar sofrimentos durante a hospitalização. A prática do cuidado consigo é considerada um suporte para o enfrentamento das diversas situações que se apresentam neste período. O idoso na situação de sofrimento, aprende a conhecer-se, aprende a cuidar de si e incorporar este cuidado ao seu cotidiano.

            O cuidado de si que se manifestou como mais significativo entre os idosos foi a fé religiosa e consequentemente o ato de rezar. Estes dados evidenciam a religiosidade e a espiritualidade como presenças marcantes no período em que o idoso está hospitalizado.

            Em situações limite frente ao sofrimento em nossa sociedade “se recorre a poderes sobrenaturais” 21:71, a religiosidade. Pode-se entender a religiosidade “por um conjunto de práticas que realizam as pessoas que professam uma fé (oração, leitura da Bíblia, atos de piedade, sacramentos entre outros)”.22:44

            Segundo pesquisa23 que avaliou as dimensões espirituais e religiosas de um grupo de idosos, o aumento da religiosidade e da espiritualidade nos idosos é um fenômeno natural do processo de envelhecimento.

            Constatamos que os idosos fazem referência à fé religiosa como o cuidado mais importante e indispensável a ser desenvolvido nos momentos de dificuldade. Frequentemente expressaram a fé e a oração como os caminhos que os conduzem à saúde e que significam a cura de suas doenças.

            Obedecer às orientações dos profissionais de saúde, principalmente dos médicos, é um cuidado que o idoso expressa como significativo, entretanto segue a orientação conforme o seu entendimento.  Por meio desta atitude os idosos acreditam que estão ajudando a si próprios no sentido da cura, tentam absorver apenas aquilo que consideram importante.

Os idosos apontam o profissional médico como aquele a que se deve a obrigação de seguir suas orientações. Sabemos que a maioria das orientações de cuidados é instruída pelo profissional enfermeiro(a). Ainda se tem muito viva pelos idosos a expressão de que somente o profissional médico é o detentor da cura.

TEMA CULTURAL: no calvário de dor dos idosos a crença religiosa que sustenta a vida

O paciente idoso hospitalizado é muito mais um ser de “enraizamento” do que um ser de abertura é muito mais da transcendência (a seu modo) do que um ser de participação. Sua imanência é centrada na aderência a um comportamento quase cristalizado pelo seu cotidiano que pouco muda.

No seu modo de ser procura se manter centrado em frágeis e cambiantes referências de comportamento (e de identidade), entretanto nem sempre possui condições para adotar tal estilo quando não está em seu contexto familiar. Quando fragilizado por contingência da vida, como a doença, é exposto a uma circunstância ou acontecimento que põe sua existência em risco, muito mais do que a pessoa adulta.

Uma sociedade na qual o predomínio das imagens é crescente, associado ao fascínio despudorado pelo espetáculo que invade cada vez mais todas as áreas das relações humanas, fica difícil para o nosso frágil idoso, mesmo saudável, se manter participativo. Mais do que nunca tentam desenvolver atributos de “resilência”, qual seja “a capacidade de recuperar a manutenção do comportamento adaptativo, quando ameaçado por um evento estressante”24:44.

A aderência pelos idosos a determinadas crenças religiosas pode assumir dimensões fundamentais nas suas presentes configurações identitárias. Isto precisa ser levado em conta no tratamento e cuidados com ele. “Os idosos valorizam profundamente suas crenças e seus valores religiosos”23:950. As religiões “trazem mensagens de salvação que procuram responder as mesmas perguntas básicas do ser humano. As perguntas sobre os problemas humanos do amor e do sofrimento, da culpa e do perdão. Todas oferecem caminhos para comportar-se de forma correta nesta vida a fim de alcançar a libertação de todo sofrimento”25:435.

A religiosidade aumentada dos idosos se traduz em decorrência do “tratamento religioso que ao invés de oferecer explicações reducionistas do tratamento da medicina, os sistemas religiosos oferecem uma explicação à doença que se insere no contexto sociocultural mais amplo do sofredor”26:47. A fé está ligada ao enfrentamento do câncer e também à possibilidade de cura. As curas tem significado de saúde e salvação e oferecem novo modelo de saúde.

O idoso hospitalizado, na sua visão de mundo, percebe que as coisas vão em frente quando as pessoas têm expectativas positivas quanto ao futuro, em outras palavras, quando possuem fé, esperança. Não poupam paciência para esperar. A esperança não é feita somente de carne e osso, mas de abstrações, emoções e confiança. Cruzam uma trajetória em busca da saúde empurrada não pelo desespero, mas pela esperança. Nossos cuidados às vezes tornam-se tão incapazes de proporcionar oportunidades de alívio, mas a esperança deles não mudou de lado, permanece no coração do idoso e cria razões válidas para esperar.

O que emociona é a resistência desses idosos no seu calvário, nas estações da dor física (psíquica e social), na falta de ar, na imobilização e na falta de apetite. O princípio da resistência não está nos seus músculos frágeis, mas no olhar magnífico, cheio de uma vontade de viver ao mesmo tempo humilde e feroz, esse olhar estranho que jamais vimos em qualquer outra pessoa. Que exprime a mesma paciência indomável que a própria morte não desarmará, pois esse olhar não desviará dela, como não se desviou da vida.

É o olhar de idoso que deve sua liberdade apenas a si próprio, de idoso formado para a liberdade, pois não a recebeu de ninguém, mas a conquistou dia a dia, pagou-a com seu labor obscuro, seus sacrifícios sem número, sua paciência, sua fé, porque ele como que a arrancou das entranhas. O seu cotidiano familiar, sem doença, já era a “via crúcis”. Agora, doente, resta-lhe ficar curado para fugir da morte, desta desconhecida que tanto temor traz.

A doença (câncer) foi percebida pelos idosos diante de dor física. A fraqueza, o cansaço, o emagrecimento como sintomas iniciais da doença passaram despercebidos. As questões diárias de sofrimentos que já viviam impostas pelo próprio processo de envelhecimento e pelo determinante de ser pobre, não lhe permitiram a distinção e formar idéia de estar com uma doença grave. A dor é um dos mais primitivos sofrimentos do homem, diante da qual, ao contrário do frio ou da fome, ele ficava totalmente impotente27:165.

O sofrimento do idoso faz alusão diretamente a um calvário vivido na sua própria história de vida como um velho sofredor e consequentemente as estações vividas refletem no novo calvário pelo qual perpassa, tornando-o mais intenso.

 Considerações Finais

            Aos idosos deixamos nossos agradecimentos em virtude do que nos ensinaram (mesmo sem saber), que no calvário há uma força e esta força vem da fé religiosa. Entre todas as nossas descobertas existenciais, válidas de serem lembradas, esta é sem dúvida, uma das mais confortadoras e significativas. 

Neste estudo foram interpretados os tipos de sofrimentos e os cuidados possíveis desenvolvidos pelos idosos sofredores. São informações que trazem subsídios teórico-práticos para a prática do cuidado de enfermagem com o idoso portador de câncer, desde que se entenda que elas servem de sobreaviso – a não resolução de uma das causas relacionadas ao sofrimento pode causar ou exacerbar outros aspectos do sofrimento. O sofrimento comporta a diminuição da potência de agir e de suportar da pessoa idosa.

Os efetivos processos interativos entre o idoso e o enfermeiro fornecem trocas importantes de crenças e valores. Percebe-se que quando as diferenças entre profissional e idoso não são respeitadas, maiores serão os signos de sofrimentos dos idosos. O desenvolvimento de práticas educativas no cenário da hospitalização favorece a manutenção e a negociação do cuidado que o idoso expressa como necessário para o seu bem estar. As práticas educativas desenvolvidas por meio de oficinas de trabalho, neste período, minimizam os conflitos e sofrimentos e promovem maior satisfação e benefícios ao idoso.

Chegamos a alguns resultados que refletem um saber local que não pode ser extrapolado a outros cenários com precisão: a antropologia sempre teve sentido aguçado de que aquilo que se vê depende do lugar em que foi visto e das outras coisas que foram vistas ao mesmo tempo. As formas do saber são sempre e inevitavelmente locais, inseparáveis de seus instrumentos e de seus invólucros.

Os profissionais da enfermagem que cuidam, compartilham a crença nos poderes da racionalidade e organização para alcançar progresso na luta contra o sofrimento e a doença do idoso, entretanto existe um momento em que a saúde escapa do âmbito da medicina, da fisiologia do organismo e da epidemiologia. É preciso entender que a religiosidade é parte significativa do processo terapêutico dos idosos, porque é o cuidado de si possível e o mais creditado no calvário da hospitalização diante da ameaça da morte.

Propomos novos estudos sobre esta temática que valorize a cultura do idoso no processo de hospitalização e adoecimento. 

 Referências

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Contribuição dos autores: Concepção e desenho: Fernanda S Tuoto e Maria Helena Lenardt; Análise e interpretação: Fernanda S Tuoto e Maria Helena Lenardt; Escrita do artigo: Fernanda S Tuoto e Maria Helena Lenardt; Revisão Crítica do artigo: Maria Helena Lenardt e Kriscie Kriscianne Venturi; – Aprovação final do artigo: Fernanda S Tuoto, Maria Helena Lenardt e Kriscie Kriscianne Venturi; Coleta dos dados: Fernanda S Tuoto; Provisão de materiais e recursos: Fernanda S Tuoto;  Pesquisa bibliográfica: Fernanda S Tuoto.  

Endereço para correspondência: Fernanda Spiel Tuoto. Rua: Lauro Tavares Rodrigues, n 589. Xaxim, Curitiba, Pr, Brasil. CEP: 81720-020. E-mail: fernandatuoto@yahoo.com.br