The life experience of families concerning the work of the mental health professionals: a phenomenological study

A experiência vivida da família relacionada ao trabalho de profissionais de saúde mental: um estudo fenomenológico 

 

Marcio Wagner Camatta 1, Jacó Fernando Schneider 1. 

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS, Brasil.

 

Abstract: This study aims at understanding the life experience of family members of users from a Psychosocial Attention Center concerning the work of the mental health professionals. It’s a qualitative research, based on Alfred Schutz’ Social Phenomenology framework. Data were collected through interviews with 13 family members in 2006 at a mental health service in Porto Alegre, Brazil. The comprehensive analysis allowed to consider that the social relationship face-to-face, among families and mental health team, permits the professional closer the existential dimension of families, identifying their specific needs. This relationship has increased the proximity among the families, professionals and users. However, the team actions should also consider others socials areas to exercise citizenship continuously. The involvement of families in team work is essential to reach durable and self-sustaining results in mental health attention.

Keywords: Mental Health; Mental Health Services; Family; Philosophy 

Resumo: O objetivo deste estudo foi compreender as experiências vividas de familiares de usuários de um Centro de Atenção Psicossocial acerca do trabalho da equipe de saúde mental. Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa do tipo fenomenológico, com a utilização do referencial da sociologia fenomenológica de Alfred Schutz. Os dados foram coletados por meio de entrevista realizada com 13 familiares em outubro e novembro de 2006, em um serviço de saúde mental de Porto Alegre, Brasil. A análise compreensiva permitiu considerar que a relação social face-a-face, entre familiares e a equipe de saúde mental permite uma maior aproximação da dimensão existencial das famílias, possibilitando o desvelamento de suas necessidades específicas. Esta forma de relacionamento tem favorecido o vínculo entre a equipe, os familiares e os usuários. No entanto, as ações da equipe de saúde mental devem se voltar também para os espaços sociais, na busca de um exercício contínuo da cidadania. O envolvimento da família é essencial para garantir resultados duradouros e auto-sustentáveis na atenção em saúde mental.

Palavras-chave: Saúde Mental; Serviços de Saúde Mental; Família; Filosofia

 Introdução

A busca pela consolidação da atenção em saúde mental pautada nos pressupostos da reforma psiquiátrica brasileira tem provocado mudanças no cotidiano de trabalho das equipes de saúde mental. Esses pressupostos implicam um novo modo de estar e atuar juntos aos sujeitos em sofrimento psíquico, sua família e comunidade.

            Esse novo modo de atenção em saúde mental, denominado psicossocial, considera o sujeito em sofrimento psíquico um sujeito situado histórico e socialmente1, que deve ter a possibilidade de ser cuidado por uma rede diversificada de serviços que extrapolem o campo da saúde, tendo por horizonte a reabilitação psicossocial e a reinserção social.

Dentre os serviços de saúde que compõem a rede de atenção em saúde mental, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) foram escolhidos pelo Ministério da Saúde como o articulador da rede de saúde mental no país. Enquanto um dispositivo que funciona em regime de portas abertas na comunidade, o CAPS visa à atenção em saúde mental do sujeito em sofrimento psíquico severo e persistente, bem como assistir a sua família2. Desta maneira, busca-se promover a saúde e a qualidade de vida dos sujeitos em sofrimento psíquico, da sua família e da comunidade em que vivem.

Os serviços de saúde mental que funcionam em regime de portas abertas têm possibilitado uma maior participação das famílias dos usuários devido à possibilidade daqueles em acompanhar o cotidiano do seu familiar-usuário, a sua evolução clínica e as atividades do serviço3. Embora os profissionais de saúde mental considerem a família um elemento fundamental no processo de reabilitação psicossocial do sujeito em sofrimento psíquico, eles não se sentem implicados a cuidar efetivamente das famílias, delegando esta ação a profissionais com formação específica4.

Devido ao pouco envolvimento da família no tratamento do seu familiar em sofrimento psíquico, ela tem se mostrado pouco preparada para manter o seu familiar desinstitucionalizado5. Pensamos que esta constatação aponta para uma importante lacuna a ser preenchida pelas ações dos profissionais que atuam na saúde mental, isto é, trabalhar efetivamente junto às famílias.

Com o processo de desinstitucionalização promovido pela reforma psiquiátrica, pesquisadores no campo da saúde mental têm-se preocupado com as responsabilidades delegadas às famílias, pois estas, freqüentemente são sobrecarregadas emocionalmente e carecem de suportes institucionais, gerando assim sentimentos de desamparo quanto ao enfrentamento do sofrimento mental de seu familiar em sofrimento psíquico6. Assim, quando um familiar procura um profissional de saúde mental para tratar seu familiar em sofrimento psíquico, surge deste encontro a possibilidade de reconhecimento e acolhimento do sofrimento de ambos - do indivíduo e da família7.

O cuidado e a inserção da família em um serviço de saúde mental não se restringem a uma equipe aberta que trate bem a família e que utilize dispositivos como atendimentos individuais e em grupo, mas sim, que seja imprescindível uma atitude de compromisso e responsabilização por parte da equipe na construção de uma relação em que a família se sinta sujeito de um projeto mediante a construção de um espaço de negociação8.

Considerando que os familiares de usuários do CAPS e a equipe de saúde mental deste serviço vivenciam encontros, em um ambiente de compartilhamento de espaço e tempo no mundo social, temos por objetivo compreender as experiências vividas de familiares de usuários de um CAPS acerca do trabalho da equipe de saúde mental.

Nesse sentido, é possível compreender o mundo com os outros em seu significado intersubjetivo, ou seja, a partir das relações sociais entre as pessoas. Assim, utilizamos os conceitos da sociologia fenomenológica para a compreensão da realidade social dos familiares de usuários de um CAPS ao experienciarem o trabalho da equipe de saúde mental deste serviço.

Por meio desta investigação, esperamos que os profissionais de saúde mental, e entre eles os enfermeiros, possam refletir criticamente sobre suas ações no cotidiano e conscientizar-se da sua responsabilidade social, ética e política no contexto de mudança na atenção em saúde mental. 

Referencial Teórico-Filosófico

O referencial da sociologia fenomenológica, enquanto um referencial das ciências sociais tem sido utilizado cada vez mais por pesquisadores enfermeiros com o intuito de aprofundar a compreensão de seus diferentes objetos de pesquisa no campo da saúde e da enfermagem9.

Nesse referencial, a intersubjetividade ocupa lugar central, pois diz respeito a uma categoria ontológica da existência humana, isto é, já está dada aos sujeitos que vivenciam o mundo da vida10. Esta intersubjetividade está evidenciada quando um eu reconhece a existência de outro eu como semelhante, ambos dotados de consciência similar. Nesta condição, o eu percebe que, tanto ele quanto o outro, fazem parte de um mundo exterior, o mundo da vida, reconhecendo-o como eminentemente social, pois, desde o início, vivencia-o com outros semelhantes11-12.

Assim, na perspectiva da sociologia fenomenológica, o mundo da vida é tido como um mundo social, ou seja, é “[...] o meio em que o indivíduo vivo se encontra no seio de seu tempo-espaço histórico-cultural: assim o sujeito é ‘de’ um mundo social e mundo social é sempre o mundo ‘de’ um sujeito. A correlação entre homem e mundo social é sempre essencial. [...] Para Schütz, a sociologia compreensiva se ergue a partir do mundo vivido social comum a todos nós” 13:86-7.

Nesse sentido, o mundo social se configura em um mundo intersubjetivo, um mundo cotidiano que é compartilhado, vivenciado e interpretado pelo sujeito e por outros semelhantes. Isto implica dizer que o mundo da vida cotidiana não é unicamente o meu mundo privado, mas um mundo comum a todos, pois é nele que co-existem semelhantes com quem estabeleço diferentes relações sociais.

O estabelecimento de um relacionamento social ocorre quando um sujeito compartilha com um semelhante um ambiente comum ou quando esse está orientado para um contemporâneo11. Desta maneira, é possível experienciar o outro de forma direta, numa situação denominada face-a-face, ou indireta, quando nesta relação o sujeito se volta para um contemporâneo.

Na Figura 1, ilustramos a relação social direta e indireta na vida cotidiana e suas principais características, de acordo com o referencial da sociologia fenomenológica.

Figura 1 – As relações sociais direta e indireta segundo a sociologia fenomenológica de Alfred Schutz  

Uma relação social direta ocorre quando11: 1) Há orientação unilateral do sujeito (eu) para o semelhante (tu), surgindo assim a “orientação para o tu”; 2) Há orientação recíproca entre sujeito e semelhante concretizando o “relacionamento do nós”; 3) Esta relação confere ao mundo um caráter intersubjetivo e social; 4) Permite apreender o semelhante mais diretamente, de maneira mais viva, vivenciando-o de forma imediata; 5) Compartilham uma relação típica de comunidade de tempo e espaço.

A situação face-a-face acontece quando um participante torna-se intencionalmente consciente da pessoa que o confronta e compartilham o mesmo tempo e espaço. É somente do relacionamento face-a-face, da experiência comum do mundo do nós, que o mundo intersubjetivo pode ser constituído11.

Por outro lado, uma relação social indireta ocorre quando11: 1) O sujeito se volta para o outro (semelhante), que apenas compartilha com ele a dimensão do tempo cósmico, surgindo assim, a “orientação para o eles”; 2) O sujeito estabelece uma relação de anonimato com o seu contemporâneo, vivenciando-o de forma indireta e impessoal; 4) O sujeito apreende o contemporâneo pelas características típicas na orientação para o eles, pois a sua compreensão acerca dele ocorre por meio de um contexto significado objetivo, no qual o outro é tipificado em suas funções/papéis no mundo social.

Pensamos que existe uma série contínua de experiências entre a experiência social direta, vivenciada em seu âmago na relação face-a-face, e a experiência social indireta, representada pela relação vivenciada no mundo dos contemporâneos. Nesse sentido, pode-se dizer que o próprio mundo dos contemporâneos é uma função variável da situação face-a-face13.

Para melhor ilustrar este raciocínio, imaginemos uma régua de zero a dez. O marco zero representa o relacionamento do nós puro, caracterizado pela situação face-a-face entre sujeito e um semelhante, conscientes um do outro, reciprocamente. Na outra extremidade da régua, o marco dez é representado o relacionamento social indireto, o mais anônimo possível, caracterizado pela orientação para o eles. Na medida em que caminhamos da situação face-a-face (marco zero) para a orientação para o eles (marco dez), vivenciamos diferentes âmbitos do relacionamento social que necessariamente emergem da situação face-a-face

Objetivo

Compreender as experiências vividas de familiares de usuários de um Centro de Atenção Psicossocial acerca do trabalho da equipe de saúde mental. 

Material e métodos

Trata-se de uma investigação de abordagem qualitativa, do tipo fenomenológica, a qual visa à descrição de uma determinada experiência vivida pelos sujeitos e à captação dos significados atribuídos a esta experiência. Dentre os referenciais teórico-filosóficos referentes à modalidade fenomenológica optamos pela Sociologia fenomenológica de Alfred Schutz para a análise compreensiva dos depoimentos.

O campo de investigação foi um CAPS II localizado em Porto Alegre. Este serviço funciona desde 1996 e a maioria dos membros da equipe inicial atua ainda hoje, sendo constituída por três psiquiatras, duas enfermeiras, quatro auxiliares de enfermagem, três terapeutas ocupacionais, três psicólogas, uma assistente social, uma educadora física e uma nutricionista. Vale destacar que neste serviço há estagiários e residentes de diferentes áreas como psicologia, psiquiatria, enfermagem e educação física, que participam da maioria das atividades realizadas no serviço.

Os sujeitos pesquisados foram 13 familiares de usuários do serviço que estivessem mais envolvidos com o tratamento do familiar-usuário, os quais foram identificados por meio de conversas informais com usuários, familiares e a própria equipe. Para a coleta dos depoimentos foi realizada entrevistas nos meses de outubro e novembro de 2006, por meio da questão orientadora: “Fale sobre o trabalho da equipe do CAPS”. As entrevistas foram encerradas no momento em que observamos que os questionamentos que motivaram esta investigação foram respondidos.

Para análise dos depoimentos nos focamos nas convergências das unidades de significado que emergiram dos depoimentos à luz do referencial da sociologia fenomenológica de Alfred Schutz. Para o desvelamento do fenômeno, seguimos os seguintes passos14: Leitura de cada depoimento; releitura de cada depoimento destacando unidades de significado; mediante uma postura reflexiva descrevemos o que estava expresso nestas afirmações; a partir do estabelecimento das convergências das unidades de significado, construímos as categorias concretas; realizamos uma compreensão vaga e mediana dos depoimentos a partir das categorias concretas; e por fim a interpretação compreensiva para revelar a essência do fenômeno.

Com a análise dos depoimentos organizamos os resultados das experiências vividas dos familiares em três categorias concretas, sendo suas denominações inspiradas em conceitos do referencial da sociologia fenomenológica. Desta maneira, consideramos que o trabalho da equipe do CAPS é experienciado pelos familiares de acordo com as seguintes categorias concretas: o trabalho permeado por relações interativas; o trabalho como projeto, ação e ato; e o trabalho fundamentado no interesse à mão.

Neste artigo apresentamos a interpretação compreensiva dos depoimentos da categoria concreta - o trabalho permeado por relações interativas. Na apresentação dos depoimentos, os familiares estão representados pela letra F, seguida do número correspondente à ordem com que a entrevista foi realizada (de F1 a F13), e para garantir o anonimato, utilizamos as letras X e Y para os profissionais.

Esta investigação foi aprovada pela Comissão de Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, sob número 001.042261.06.6 em 27 de outubro de 2006. 

Resultados e discussão

Cada familiar entrevistado expressou suas experiências vividas acerca do fenômeno investigado – o trabalho da equipe de saúde mental do CAPS – às quais nos permitiram construir, a partir dessas experiências singulares, a categoria concreta “o trabalho permeado por relações interativas”. Essas descrições, de acordo com o referencial da sociologia fenomenológica, são de atores sociais situados biograficamente, ou seja, de pessoas reconhecidas em sua história, cultura e relações sociais11.

O ser humano nascido em um mundo social, e que vive nele sua existência cotidiana, o experimenta como construído em volta do lugar que ocupa nele, aberto à sua interpretação e à sua ação, mas sempre com referência à situação biográfica determinada12.

Com relação ao trabalho da equipe permeado por relações interativas, o relacionamento do nós é espacial e temporal, no qual ocorre a orientação para o tu. Já o relacionamento do nós puro, além de ser espacial e temporal, tem como diferencial a orientação para o tu recíproca, pois as consciências puras dos envolvidos se dão em presença uns com os outros11.

A tomada de consciência do relacionamento do nós puro não é possível quando o está vivenciando, mas quando estivermos fora dele, pois este conceito - relacionamento do nós - serve apenas para captação teórica da situação face-a-face, tendo em vista que é “somente a partir do relacionamento face-a-face, da experiência comum do mundo do nós que o mundo intersubjetivo pode ser constituído” 11:189.

O estabelecimento de relações interativas entre os familiares e a equipe pressupõe relações intersubjetivas. No CAPS essas relações têm se mostrado recorrentes, seja por iniciativa da equipe, seja pela dos familiares. Embora algumas vezes esta relação seja mediada por telefone, ela se caracteriza como uma variação de uma relação social diretamente vivenciada, como se observa nos depoimentos a seguir. 

“[...] quando eles percebem que o paciente não está bem, eles já ligam pra casa, te chamam aqui, se meu irmão não vinha um dia já ligavam pra saber porquê”. (F1)

“Então, quando eles me chamam eu vou. Já sei como funciona o CAPS, já conheço”. (F4)

“A equipe [...] Eles também estão sempre em contato comigo, familiares”. (F12) 

Assim, as relações sociais entre familiares e profissionais do CAPS são recorrentes e de iniciativa de ambos, embora haja maior empenho da equipe em envolver a família no tratamento. Nessas relações, os familiares e a equipe mostraram-se disponíveis ao estabelecimento de um relacionamento do nós puro, pois esta disponibilidade da equipe está caracterizada pela possibilidade de agendamento de um encontro entre o profissional e o familiar.

São nesses encontros face-a-face, entre o profissional e o familiar, que a escuta emerge como um elemento intrínseco a esta relação, qualificando esses encontros no cotidiano15, permitindo aos envolvidos apreenderem-se mutuamente de maneira mais viva11.

O movimento de buscar um relacionamento do nós puro também ocorre no sentido do familiar para a equipe, isto porque a família recorre aos profissionais a fim de ser orientada em situações do cotidiano, que poderiam interferir diretamente no tratamento do seu familiar-usuário. 

“[...] tudo isto eu peço para terapeuta se pode, porque eu tenho medo de tentar ajudar e estragar. Mas ela falou: não tem problema”. (F4)

“A equipe [...] tem tempo se eu precisar... no caso conversar com alguém, é mais fácil agendar; ou eles também”. (F12) 

Do encontro entre um profissional de saúde mental e um familiar de um sujeito em sofrimento psíquico pode-se ampliar a possibilidade de maior aproximação do universo destes familiares. Contudo, este movimento pede paciência e sensibilidade desses profissionais na procura dos sentidos que brotam de suas histórias de vida, ou seja, para captar sua dimensão existencial7.

Cada família possui uma maneira peculiar de conviver com o sofrimento psíquico de um de seus membros, não existindo assim receita ou protocolo que resolva instantaneamente os problemas das situações do cotidiano. Assim, os profissionais de saúde mental devem reconhecer que estas vivências singulares desdobram-se em necessidades também específicas que estão relacionadas intimamente a crenças, valores e costumes desta família16.

Por envolver reciprocidade de consciências e maior proximidade entre os sujeitos que se interagem numa situação face-a-face, o relacionamento do nós puro pode contribuir na qualificação da escuta vivenciada nos encontros entre os sujeitos, permitindo a apreensão mais vívida da dimensão existencial desta família e o desvelamento paulatino de suas necessidades.

Em qualquer projeto terapêutico é fundamental o envolvimento da família e resgate da esperança deste frente ao sofrimento psíquico de seu familiar7. Assim, pensamos que o desvelamento das necessidades específicas dessas famílias poderá conduzir a construção de um projeto terapêutico mais promissor.

Quanto ao relacionamento entre a equipe e os familiares, foi possível identificar nos depoimentos que estes últimos sentem-se acolhidos pela equipe na medida em que são bem tratados e obtêm atenção.  

“[...] estão todos acostumados aqui, com o médico, com a enfermeira, com todo mundo. São bem tratados”. (F3)

“Ela gosta muito de estar próxima aos médicos, de ter atenção, e aqui ela consegue ter”. (F12)

“São todos muito atenciosos. [...] Eu sempre me senti muito acolhida aqui. Quando eu venho, todos me tratam bem”. (F8) 

Para os familiares, ser bem tratado e ter atenção da equipe significa um tipo de relação que envolve necessariamente carinho e respeito dos profissionais em relação aos familiares e usuários, explícito no depoimento a seguir. 

“Eles são muito queridos, têm respeito pela pessoa humana; o importante é o respeito. Porque a gente vai aos consultórios médicos do SUS e é um pavor, eles não te dão respeito, carinho”. (F2) 

Os familiares afirmam que esse tipo de relacionamento não é freqüentemente encontrado em outros serviços de saúde da rede pública que eles tenham utilizado, sendo este um diferencial no trabalho da equipe. De maneira geral as pessoas não estão acostumadas com a forma com que os profissionais do CAPS se relacionam com a clientela - usuário e familiares - em seu trabalho, principalmente por se tratar de um serviço público.

Quanto ao relacionamento social entre os familiares e a equipe, emergiu a responsabilização e o comprometimento da equipe como uma postura inerente desta na assistência em saúde mental aos usuários. Assim, surge como característica da equipe a persistência na implementação do seu trabalho, gerando segurança e confiança dos familiares e usuários em relação às condutas profissionais. 

“Eu acho que ela está ótima, mas isto é devido à ajuda grande que ela tem de lá. Porque custou, não foi assim rapidinho. Eles batalharam um bocado lá com ela. Eles foram devagarzinho, trazendo ela pra vida de novo”. (F4)

“Eles têm muita responsabilidade com ela, porque quando ela vem pra cá, tem total assistência. [...] Ela está tendo bastante apoio da doutora, ela tem muita confiança”. (F8) 

Tratar bem, ter atenção, comprometimento, responsabilidade, carinho e respeito são características atribuídas pelos familiares ao trabalho da equipe do CAPS. Esta forma de relação tem repercutido na promoção da satisfação e da auto-estima dos usuários, bem como na promoção do relacionamento social dentro e fora do serviço devido ao convívio no próprio CAPS17.

Essa maneira de cuidar aponta para a valorização de tecnologias de relações (tecnologias leves) no cotidiano do trabalho em saúde, nas quais implicam na produção de vínculo, autonomia, acolhimento e responsabilização18. Entendemos que a utilização consciente das tecnologias leves em saúde pelos profissionais no cotidiano dos serviços de saúde mental é uma importante estratégia de consolidação de um modelo de atenção pautado no reconhecimento da dignidade humana, no respeito à autonomia e na defesa da cidadania dos sujeitos em sofrimento psíquico e suas famílias.

Portanto, está no conteúdo relacional uma importante estratégia na busca de práticas de saúde tidas como humanizadas e ‘humanizadoras’, pois a proposta de humanização, enquanto política ministerial possui enquanto eixo central a ampliação do processo comunicacional que, para sua consolidação, requer uma ”nova cultura de atendimento” 19:12.

As características apontadas no relacionamento da equipe com a família compõem um aspecto relevante do trabalho da equipe por implicar no favorecimento do vínculo entre a equipe, os familiares e os usuários. No entanto, este vínculo produzido nos encontros com os profissionais, para os familiares, tem se caracterizado como uma relação de dependência entre o usuário e a equipe do CAPS, como é mostrado a seguir. 

“Quando é para sair, que estão melhor, que já podem passar pra outro lugar, ninguém quer sair. Todo mundo volta mesmo [...] não querem largar doutor X; doutora Y, as enfermeiras”. (F3)

“se não fosse o CAPS onde será que ela estaria! [...] eu acho que ela não saberia viver sem o CAPS, porque ela é bem dependente de lá. [...] ela não sabe viver sem esta coisa toda”. (F4)

“Ela não pensa de nenhuma forma deixar o CAPS. E eu também não gostaria de maneira alguma que ela deixasse porque está fazendo muito bem para ela”. (F8) 

Para os familiares, a relação de dependência dos usuários com o CAPS é reflexo do medo, deles e dos seus familiares-usuários em ficarem sem a assistência da equipe, ou seja, têm receio em romper a relação com a equipe. Assim, os familiares querem a todo custo manter este vínculo com o serviço e a equipe, mesmo quando esta relação fica caracterizada como uma relação de dependência.

No entanto, esta relação de dependência não deve ser entendida como necessariamente negativa, pois, todos nós somos, em alguma medida, dependentes uns dos outros. Assim, o problema reside na dependência excessiva de apenas poucas relações, o que gera uma situação de dependência restrita, diminuindo assim o poder de contratualidade e autonomia dos sujeitos – usuários e famílias20.

Entende-se por autonomia a capacidade de um indivíduo gerar normas, ordens para a sua vida, conforme as diversas situações que enfrente. Deste modo, “somos mais autônomos quanto mais dependentes de tantas mais coisas pudermos ser, pois isto amplia as nossas possibilidades de estabelecer novas normas, novos ordenamentos para a vida” 20:57.

Pensamos que esta concepção reforça a necessidade da constituição de uma rede de serviços de saúde mental adequada, quantitativamente e qualitativamente, para atender às necessidades dessa população, bem como a diversificação de outros dispositivos e interações em que os usuários e familiares possam estabelecer relações de dependência com o intuito de ampliar seu poder de contratualidade no mundo social.

Vale ressaltar ainda que, embora um depoimento traga marcadamente a relação de dependência do usuário com o serviço, ele explicita que o espaço do CAPS tem, em alguma medida, propiciado o exercício da cidadania dos seus usuários. 

“Ela precisa daquilo, eu acho que lá ela se sente gente. [...] Tirando a gente aqui, os outros irmãos e os pais tratam ela como uma doente, uma incapaz. Então, aqui e lá é onde ela é gente”. (F4) 

A questão da cidadania é relevante neste depoimento, pois mostra que, entre os diferentes âmbitos do mundo social que o familiar-usuário freqüenta, o espaço do CAPS tem se mostrado como um âmbito do mundo social desses usuários no exercício de sua cidadania, ou como foi dito, de “ser gente”. Contudo, ressaltamos a necessidade de que as estratégias terapêuticas e psicossociais transbordem para além dos muros dos serviços de saúde mental como os CAPS, promovendo assim o exercício cotidiano da cidadania dos usuários e familiares nos espaços sociais onde ocorrem os encontros e as trocas sociais. 

Considerações finais

Quando é dado um espaço para que o familiar se coloque sobre o trabalho da equipe, o mesmo revisita sua história e descreve sua trajetória com o familiar em sofrimento psíquico. Relata, apresenta, desabafa e compartilha com os pesquisadores um retrato sucinto do seu convívio com a loucura. Assim, nos encontros entre os pesquisadores e os familiares, emergiram sentimentos de dor e sofrimento, mas também de satisfação e de alegria no cotidiano do mundo social.

A compreensão do trabalho da equipe de um CAPS pelos familiares de usuários deste serviço possui outras dimensões das quais neste estudo foi possível desvelar algumas delas. Nesse sentido, o buscado por meio desta investigação não se esgota, necessitando ser constantemente esclarecido por meio de um processo atentivo e contínuo de desvelamento do mundo social dos familiares.

            O relacionamento social direto, face-a-face, implementado no CAPS, tem implicações nos resultados alcançados pelo serviço, pois nesse relacionamento emergem o respeito, o carinho, o comprometimento e a responsabilização da equipe com os usuários e seus familiares. Essas características remetem ao entendimento de que as interações humanas devem ser exploradas como um espaço de implementação de tecnologias relacionais no âmbito da saúde, como propõe as tecnologias leves.

A relação face-a-face, permite uma maior aproximação da dimensão existencial das famílias dos usuários dos CAPS, possibilitando o desvelamento de suas necessidades específicas, podendo conduzir a projetos terapêuticos mais efetivos. Assim, os profissionais de saúde mental podem buscar estabelecer continuamente uma relação de interação social direta, face-a-face, com os familiares dos usuários, no serviço, no domicílio e na comunidade.

Esta forma de relacionamento tem favorecido o vínculo entre a equipe, os familiares e os usuários. Embora os familiares caracterizem o vínculo, entre os profissionais e os usuários, como uma relação de dependência, entendemos que os profissionais do CAPS devem aumentar o poder de contratualidade dos seus usuários, no sentido de ampliar, diversificar e qualificar essas relações de dependência no mundo social.

Por fim, os familiares reconhecem que os profissionais do CAPS vêm se ocupando da defesa da cidadania dos usuários dos CAPS. Mesmo assim, é fundamental que as ações da equipe de saúde mental devam se voltar também para os espaços sociais, na busca de um exercício contínuo da cidadania. Desta maneira, o envolvimento da família nesta busca é essencial para garantir resultados concretos, duradouros e auto-sustentáveis. 

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Contribuição dos autores

- Marcio W. Camatta, Jacó F. Schneider (Concepção e desenho, Análise e interpretação); - Marcio W. Camatta (Escrita do artigo, Pesquisa bibliográfica); - Jacó F. Schneider (Revisão crítica e Aprovação final do artigo)

E- mail: mcamatta@gmail.com.