Musical visitation: therapeutic strategy based on theory of transpersonal caring
Visita musical: estratégia terapêutica fundamentada na teoria do cuidado transpessoal
Leila Brito Bergold 1, Neide Aparecida Titonelli Alvim 2.
1 Hospital Central do Exército, RJ, Brasil. 2 Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Abstract: Musical visitations are done with the intention of reducing the negative influences related to isolation, dependency and lack of activity present in the hospital environment. This study discussed the musical visitations from the optics of the hospitalized client and its implications as therapeutic strategy for nursing care. The aims: to describe hospitalized client’s conceptions on musical visitations; to analyze the importance of these visitations as a therapeutic strategy in the hospital care context; to discuss the implication of the visitations for fundamental nursing. The theoretical basis used on this study was Jean Watson’s theory of transpersonal caring. It is a study of qualitative nature and utilized Creative and Sensitive Method to produce data. The subjects discussed the positive influence of musical visitations on promote comfort, well-being and expression of emotions that promoted their integrity and autonomy. We could conclude that the musical visitation is a therapeutic strategy for the nursing care of the hospitalized client.
Key words: Nursing; Nursing Theory; Music; Hospitalization.
Resumo: A visita musical tem por finalidade reduzir as influências negativas do ambiente hospitalar relacionadas ao isolamento, dependência e inatividade. Esse estudo discutiu as visitas musicais na ótica de clientes hospitalizados e suas implicações como estratégia terapêutica para o cuidado de enfermagem, Teve por objetivos: descrever as concepções de clientes hospitalizados sobre as visitas musicais; analisar a importância dessas visitas como estratégia terapêutica no contexto hospitalar; discutir as implicações das visitas musicais para a enfermagem fundamental. Fundamentou-se na Teoria do Cuidado Transpessoal de Watson. Estudo qualitativo,utilizou o Método Criativo e Sensível para a produção de dados. Os sujeitos discutiram a influência positiva das visitas musicais na promoção do conforto, bem-estar e da expressão de emoções que promoveram sua integridade e autonomia. Pudemos concluir que a visita musical é uma estratégia terapêutica para o cuidado de enfermagem ao cliente hospitalizado.
Palavras chaves: Enfermagem; Teoria de Enfermagem: Música; Hospitalização.
Introdução:
Sabemos que a internação hospitalar, apesar de ter por finalidade o diagnóstico e tratamento terapêutico e medicamentoso, em muitos casos, pode causar transtornos físicos, emocionais e sociais ao cliente, devido ao afastamento de sua vida cotidiana e também pela convivência com um ambiente estranho que o torna inseguro e ansioso. A própria rotina hospitalar que teria por objetivo organizar as atividades da equipe de saúde de modo a aumentar a eficácia do tratamento, trazendo conforto e segurança para o cliente, muitas vezes, mostra-se desconfortável pela rigidez imposta neste meio.
Poucas pessoas vivenciam uma experiência hospitalar sem se sentirem, em algum momento,despersonalizadas e destituídas de seus direitos humanos básicos e de sua dignidade. Deve-se destacar a dificuldade em se realizar o cuidado de forma ideal devido às condições de um ambiente que não oferece recursos, suporte ou apoio. Como conseqüência, o cuidado pode tornar-se desintegrado, técnico-orientado, mecânico, ritualístico e impessoal1
Com o objetivo de tornar o ambiente hospitalar mais saudável, diminuindo o impacto que este pode ter sobre o cliente, uma atividade denominada ‘visita musical’ vem sendo desenvolvida há aproximadamente sete anos no Hospital Central do Exército (HCE), na cidade do Rio de Janeiro. Ao longo desta experiência, tem sido observado que a música utilizada terapeuticamente proporciona uma série de benefícios tais como: consolo, conforto, expressão de sentimentos, redução da ansiedade ou stress, aumento da auto-estima e estabelecimento de contato ou comunicação com outras pessoas.
Ou seja, no contexto da visita musical, a música tem uma função terapêutica, mesmo não sendo uma terapia estabelecida em padrões formais baseados em conhecimentos e técnicas específicas, como as da musicoterapia. A música, neste entendimento, é de reconhecida importância para os todos os profissionais interessados em valorizar a construção de subjetividades inerentes ao afeto e à criatividade2.
Com esse intuito, foi criada uma equipe formada por funcionários do hospital, músicos que tinham interesse nesse tipo de experiência e que foram treinados para realizarem uma abordagem sensível aos clientes internados. Essa abordagem consiste em visitar clientes restritos ao leito, com a intenção de tocar ou cantar músicas escolhidas por eles e com a finalidade de proporcionar acolhimento e bem estar. A música é cantada e acompanhada por instrumentos musicais ou só tocada pelos seguintes instrumentos: flauta, cavaquinho e violão. Em dias pré-determinados, a equipe composta pelos músicos e coordenada por uma enfermeira que também é musicoterapeuta, visita unidades de internação interessadas nessa atividade. Um dos enfoques principais desse trabalho é que o cliente pode expressar o seu desejo: ele escolhe se quer escutar e também qual a música.
Essa estratégia é fundamentada em pressupostos da Teoria do Cuidado Transpessoal de Jean Watson, para quem o cliente é o sujeito do cuidado de enfermagem. Como tal, deve ser considerada sua capacidade de questionar, refletir e reivindicar seus direitos e necessidades. Assim, no espaço do cuidar, existe uma transação de cuidado pessoa a pessoa, o que implica na interação entre quem cuida e quem participa do cuidado, partindo da premissa de que o enfermeiro não atua ‘no’ cliente, mas ‘com’ o cliente. Por isso, a autora defende que o cuidado é relacional e recíproco3.
O interesse cada vez maior de focalizar a humanização no cuidado junto ao cliente internado estimula a reflexão sobre formas ao mesmo tempo efetivas e afetivas de cuidar. As visitas musicais podem ser uma dessas formas, visto que a nossa cultura é fortemente musical, o que, por um lado, auxilia a aproximação com o cliente e, por outro, facilita sua utilização pela equipe de enfermagem.
É importante também aprofundar o conhecimento sobre a utilização da música no ambiente hospitalar, pois o uso inadequado desta pode influenciar negativamente o cliente. A música pode trazer lembranças desagradáveis ao cliente, mobilizando suas emoções e alterando seu quadro clínico de forma a interferir em sua recuperação. Estudo realizado com profissionais de enfermagem apontou diferentes reações, positivas e negativas e por vezes ambíguas relacionadas a um mesmo estímulo musical4. Dessa forma, torna-se importante incentivar a escolha da música pelos clientes no âmbito das visitas musicais, pois assim ele expressa seu desejo e suas necessidades naquele momento.
Com a finalidade de aprofundar o conhecimento sobre a influência da visita musical, a pesquisa focou o seguinte objeto: “as visitas musicais na ótica do cliente hospitalizado e suas interfaces com a enfermagem fundamental”. As questões que nortearam esse estudo foram: quais as concepções de clientes hospitalizados sobre as visitas musicais? Qual a importância das visitas musicais no contexto do cuidado hospitalar? Quais são as interfaces existentes entre a estratégia da visita musical no cuidado ao cliente e a enfermagem fundamental?
Os objetivos traçados foram: descrever as concepções de clientes hospitalizados sobre as visitas musicais, compartilhadas no diálogo grupal; analisar a importância dessas visitas como estratégia terapêutica no contexto do cuidado hospitalar; e discutir as interfaces das visitas musicais com a enfermagem fundamental.
Segundo a Teoria Transpessoal, o paradigma do cuidado está situado em uma visão diferente da que domina o Ocidente, a qual trata os seres humanos como objetos e separa as pessoas de si próprios, dos outros e da natureza. Essa visão dominante separa também a mente do corpo e do espírito, o que leva a autora a defender o retorno a uma visão humanitária e metafísica com relação à vida e às experiências humanas, em especial àquelas relacionadas ao auxílio a outras pessoas durante os momentos mais vulneráveis de suas vidas. Assim, a enfermagem deve ser constantemente ampliada como uma ciência humana, inspirada em novos modelos nos quais arte e ciência integrem diversos modos de conhecer, ser e fazer3.
Dessa forma, o cuidado de enfermagem deve valorizar os aspectos que se relacionam com a subjetividade do homem, conforme preconiza o cuidado humano, cujos atributos incluem a valorização do aspecto psicossocial do cuidado em defesa da preservação da sensibilidade, da afetividade, da criatividade e da expressividade no cuidado, além do desempenho de tarefas ou técnicas5.
Outro aspecto importante da Teoria Transpessoal do Cuidado refere-se à unidade da mente/corpo/espírito/natureza e de um campo de conexão entre pessoas e ambientes em todos os níveis, que aponta a importância do cuidado com o próprio ambiente e com as relações interpessoais. São valorizadas também a subjetividade e intersubjetividade que se evidenciam na relação recíproca entre a enfermeira e os outros, referida como ‘momento de cuidado’. Nesse sentido as visitas musicais promovem efeitos benéficos que não estão ligados apenas à música em si, mas também à possibilidade de encontro que estas proporcionam, como um momento de cuidado. Esse momento é um ponto focal no espaço e no tempo que envolve ação e escolha entre os sujeitos do cuidado, criando uma conexão entre ambos3.
Em função de a música estar sempre presente no nosso cotidiano, ela estrutura e ancora muita das situações utilizadas como material bruto no processo da construção da identidade do sujeito. Essas vivências criam memórias de sentimentos que têm um papel importante porque realçam e posicionam os eventos da vida das pessoas significativamente, criando uma trilha sonora ou biografia musical que está intimamente ligada à nossa própria biografia. Assim, o estilo de vida e as escolhas realizadas cotidianamente que são reflexos da auto-identidade também são reflexos da inserção social e cultural do indivíduo. Nesse sentido, o seu estilo musical contribui para formar e é formado por sua auto-identidade6. Por isso, torna-se importante possibilitar a escolha musical pelos clientes no âmbito dessas visitas, pois viabiliza a expressão da identidade musical que está ligada diretamente à auto-identidade do cliente.
A busca de recursos próprios ligados à autonomia é um dos postulados de Watson que, segundo Talento7, defende a importância do cuidado no auxílio à pessoa a ganhar controle, tornar-se conhecedora e promover mudanças de saúde. No sistema de valores humanista de Watson, existe uma alta consideração pela autonomia e liberdade de escolha e ênfase sobre o auto-conhecimento. Procurar estratégias que contribuam para resgatar ou manter o grau de autonomia do cliente hospitalizado, elevando sua auto-estima, resgatando-o como sujeito social, através de sua participação no cuidado, configura-se como uma importante premissa do cuidado humano na busca do bem-estar e do conforto do cliente.
Os fatores de cuidado, que proporcionam uma estrutura para o desenvolvimento do cuidado transpessoal, fornecem uma linguagem para os fenômenos da enfermagem e ajudam a definir o conhecimento e práticas da enfermagem como distintos das práticas de cura associadas à medicina tradicional. Esses fatores servem de base para construir e desenvolver práticas avançadas para modalidades do cuidado3. Nesse contexto, possuem interface com as visitas musicais como uma estratégia do cuidado no contexto hospitalar, conforme os resultados desse estudo, discutidos adiante.
Metodologia:
Esse estudo utilizou o Método Criativo e Sensível (MCS) 8 por ser apropriado para uma pesquisa qualitativa que tenha um enfoque grupal. O MCS valoriza a dimensão social e coletiva do conhecimento assim como a linguagem artística e a sensibilidade que emergem das Dinâmicas de Criatividade e Sensibilidade (DCS) que são o eixo norteador do método9. Estas têm o propósito de aguçar a expressão da subjetividade dos participantes além de promover a interação entre o grupo e o pesquisador.
Para a produção de dados foram desenvolvidas três Dinâmicas de Criatividade e Sensibilidade “Corpo-Musical” cujo objetivo principal foi resgatar as experiências vivenciadas pelos participantes no ambiente hospitalar relacionadas à lembrança de seu contexto histórico, cultural e social estimulada pela visita musical. As dinâmicas seguiram cinco etapas: apresentação dos participantes e esclarecimentos; relaxamento com música para focalizar a atenção no tema; orientações para colagem de etiquetas adesivas em silhueta humana previamente desenhada, apontando qual parte do corpo fora influenciada pela visita musical e de que forma; após essa produção artística individual e sua apresentação, ocorreu uma discussão que levou os participantes à crítica-reflexiva sobre como se sentiram ao participar dessas visitas. Ao final da discussão houve a validação, pelos sujeitos da pesquisa, dos temas e subtemas surgidos na produção artística e na discussão crítica-reflexiva.
Os participantes totalizaram 14 sujeitos, clientes adultos internados na Clínica de Ortopedia do HCE, com idade entre 19 e 45 anos, de ambos os sexos, que haviam participado das visitas musicais, sendo que cada dinâmica contou com sujeitos diferentes.
Em cumprimento aos princípios da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, este projeto de pesquisa foi submetido à Comissão de Ética do HCE e ao Comitê de Ética em Pesquisa da EEAN/HESFA, da UFRJ, obtendo aprovação de ambos. Os nomes citados na discussão dos dados são fictícios.
Os participantes da pesquisa apontaram diversas influências da visita musical, sendo evidenciados dois aspectos a partir das discussões grupais: a promoção da integralidade e da autonomia do cliente internado. Estes aspectos são complementares e apontam a confluência de fatores diversos para a promoção da saúde no ambiente hospitalar, como o acolhimento, a produção de subjetividades e a busca de cuidados que promovam a unidade mente/corpo/espírito/natureza3.
No aspecto da autonomia, os sujeitos da pesquisa apontaram a escolha da música como uma expressão da sua singularidade, sendo tão importante, que deveria ser respeitada pelos outros, como mostra este trecho dialógico de um participante que veio de outra região do país, Marcos :
G “Eu respeito a música que eles ouvem aqui... Posso achar ruim, mas respeito porque eles gostam, né ? [...] porque às vezes... a pessoa não tem que ser egoísta, por exemplo, se... ela só gosta daquela música, sabe, aí coloca a minha também, coloca a dele, tal... Aí se ele for falar alguma coisa: _ Olha, colocou a sua música e eu escutei... então tem que me aceitar também! Pra defender na hora de colocar a música”.
Em outro momento dessa mesma dinâmica, Jader, responde a outro participante que diz não gostar de pagode, que é o seu estilo de música:
G “Você gosta de rock, eu não gosto de rock! Mas eu não me incomodo, vou tranqüilo, não tem nada... Mas é legal continuar com a pessoa... Eu não vou mudar porque está tocando rock! Vou continuar com a pessoa, por mais que eu não goste! Tipo assim, toca a sua música, aí você fica alegre... e eu fico alegre contigo... Depois vai pôr uma música que eu gosto, aí você vai... muda... Aí a minha música você não vai escutar?”
O empenho em defender o seu estilo musical está relacionado à identidade musical de cada um, da vivência no seu contexto cultural6. Poder escolher uma música reafirma a sua identidade, diminuindo a despersonalização que muitas vezes ocorre no ambiente hospitalar. Por outro lado, o respeito pelo estilo do outro guarda relação com o primeiro fator de cuidado apontado pela Teoria Transpessoal do Cuidado3, a formação de um sistema de valores humanístico-altruísta. Isto porque, além de promover a manutenção ou o resgate da autonomia do cliente ao garantir seu direito de escolha ou opção musical, considerando seus diferentes momentos e contextos, também potencializa a interação humana calcada na solidariedade e no respeito mútuos.
Outro fator de cuidado3, ser sensível consigo próprio e com os outros, é estimulado através da percepção do que é diferente possibilitado pelo contato com as escolhas musicais dos outros, como Charles aponta:
G“[...] lembra do Ricardo? Ele tem um gosto de música completamente diferente da gente, e a gente fica zoando chamando ele de careta... Aí, depois que você começou a tocar, eu comecei a reparar que as músicas não são tão caretas [...] Mas vamos dar um exemplo, eu curto pagode e o cara não gosta de pagode, porque ele não teve oportunidade realmente de ouvir pagode, entendeu? [...] Aí vai, ele escuta e tem a oportunidade de conhecer e gostar da música também [...]”.
Ter a possibilidade de exercer a sensibilidade em contato com os outros pode ser importante na promoção do o auto-conhecimento que impele às mudanças e ao próprio desenvolvimento. Ricardo, um dos sujeitos, que já havia participado de um grupo de pagode se refere à percepção da necessidade de mudança, aguçada pela sensibilidade no contato estabelecido na visita musical:
G “Curto tudo, gosto de pagode, samba, mas não tenho nada contra outro estilo, eu escuto também... Apesar de que a gente devia ouvir tudo, né? O que eu errei foi que eu só busquei um estilo musical, imagino que a gente tem que tocar tudo, né? Para não ficar só naquela rotina de samba e pagode...”.
Foi importante observar que a sensibilidade deles também se voltou para a equipe de enfermagem, ao discutirem o estresse nas relações estabelecidas no ambiente hospitalar. Refletiram sobre a necessidade de diminuir a tensão da equipe, a partir da percepção do próprio relaxamento, como apontou Fernando:
G “Eu fiquei solto, entendeu? Leve... Eu estava com um stress assim, aquela agonia... De repente, todo o mundo se soltou, numa boa, tá solto e pronto pra começar de novo... No caso, pronto pra agir com os pacientes novamente! Seria bom pra eles também (se referindo aos profissionais)”.
Outro fator de cuidado3 desenvolvido no âmbito das visitas musicais foi: promoção de ensino-aprendizagem transpessoal. A possibilidade de criar recursos próprios, despertada pela participação na visita musical, influenciou os clientes internados, que buscavam alterar a sua realidade através do crescimento pessoal e do exercício da sua autonomia, como se refere Charles:
G “[...] E essa música, você vê o Fernando, já trouxe violão, aí a gente fica tocando lá, fica parecendo até um luau, parece que a gente está na praia! (Falou com muito prazer)[...] Então foi uma coisa que não foi só... A gente não espera só a presença de vocês, a gente já está começando a se virar com a gente mesmo, porque é tão pouco tempo, então a gente começa a se virar com as nossas próprias mãos”.
A reflexão grupal dos participantes também apontou a importância da fé para o seu restabelecimento. A Teoria Transpessoal do Cuidado se refere ao fornecimento e manutenção da fé e esperança, como o segundo fator do cuidado, e no último fator amplia o aspecto da espiritualidade quando aponta a necessidade de ser aberto para as dimensões existencial-fenomenológicas e espirituais do cuidado e da cura3.
A música religiosa durante a visita musical, mobilizou alguns participantes, entre esses, Leandro, que relatou ser evangélico:
G “Eu sinto assim um alívio total, que os meus problemas todos estão resolvendo, que vai dar tudo certo [...] Ouvindo aquela música ali prá mim, tudo vai dar certo... Tenho fé e vai dar".
O conhecimento sobre as crenças religiosas dos clientes pode ser um importante instrumento para auxiliá-los a expressar seus sentimentos e expectativas. A enfermeira deve se esforçar para estar dentro da estrutura de referência do outro, numa busca mútua pelo sentido e totalidade do ser. Essa busca inclui medidas de conforto, controle da dor, um senso de bem-estar e/ou transcendência espiritual do sofrimento. Destaca-se aqui a importância de visões ampliadas da pessoa, o que implica na unidade mente, corpo e espírito3. O cuidado promovido através do encontro cliente-enfermeira ocorrido em sintonia pode expandir a consciência e potencializar a cura através de um sentimento de bem-estar, de reintegração. A utilização litúrgica da música e do canto se faz presente, em todos os povos e civilizações, sendo esta uma forma do ser humano resgatar a unidade cósmica, o sentimento de pertinência com o Todo10.
Outro aspecto a ser abordado é a mobilização de emoções ocorrida durante as visitas musicais, que revela uma interface com o quinto fator de cuidado: promoção e aceitação da expressão de sentimentos e emoções, positivas e negativas3. Assim, sentimentos como medo, raiva e tristeza diminuíram a partir das visitas musicais, evidenciados nestes relatos:
Elisa: G “[...] Eu estava com medo... Eles chegaram, começaram a cantar, eu fiquei outra pessoa, fiquei outra pessoa! Já estava melhor, tava ótima, né? [...]”.
Fernando: G“Se isso já tivesse acontecido (referindo-se às visitas musicais), agora, tipo de manhã nos nossos quartos... Tivesse feito uma musicoterapia conosco, entendeu ? Ficaria uma coisa melhor do que tá, porque a gente fica naquele negócio de raiva! Já tá internado aqui, quer descontar!”
Charles: G “[...] Indo ou não indo a depressão é contínua, ela é contínua... Só que quando chega a música, ela dá uma pausa [...]”.
A expressão dos sentimentos melhora o nível pessoal de percepção além de facilitar a compreensão do comportamento que é gerado a partir desses sentimentos. A expressão destes sentimentos e, a conseqüente compreensão pode facilitar a comunicação e interação entre o cliente e a enfermagem3.
Cabe ressaltar que o sentimento mais relacionado às visitas musicais foi a alegria, como apontou Zito:
G “Esse tipo de trabalho, com música... É o que eu falei, é aquele negócio, às vezes, a pessoa está chorando de tristeza, no momento em que vem a música, a pessoa passa a chorar de alegria. Isso converte, né...”.
Em diversos momentos os participantes relacionaram a visita musical com sentimentos positivos estimulados pelas lembranças agradáveis que a música de sua escolha trouxe, como foi apontado no seguinte trecho dialógico:
Jader: G “Porque, se eu escolher assim uma música que me fez mal... eu não vou me sentir bem... Agora, se eu ouvir uma música que eu na hora estava morando na felicidade, na alegria, assim eu gosto.
Elisa: G Eu concordo com ele! Se você já está aqui nesse lugar, é muito difícil muita coisa, né? Aí você tá aqui e vai pedir uma música que te lembrou uma tristeza... Aí fico... pior, né ? (riu)”.
Jader: G “No meu caso assim, por exemplo, se vocês vão lá, eu prefiro escolher uma música de uma coisa que eu passei de alegria, que eu me senti feliz naquela música... Eu prefiro assim uma coisa mais produtiva”.
A palavra ‘produtiva’ utilizada por Jader aponta a importância de partir do seu universo sonoro, e não do nosso, profissionais, pois somente o cliente sabe qual música naquele momento vai lhe trazer lembranças agradáveis ou significativas, ou seja, vai ser ‘produtiva’, a partir do seu referencial de vida e de suas necessidades. Essa possibilidade de escolha, que ao mesmo tempo expressa sua singularidade, lhe traz conforto e aumenta sua autonomia, possui interface com o fator de cuidado: participação em processos de cuidado criativos, individualizados e do tipo solução de problemas3. Importa procurar soluções criativas para situações que podem trazer prejuízo ao cliente, buscando a participação deste no seu processo de cuidado, como é o caso da escolha musical.
Outro fator importante nesse contexto se refere a auxiliar com satisfação as necessidades humanas básicas, enquanto se preserva a dignidade e totalidade humanas3. A possibilidade de ser ouvido e participar do seu próprio cuidado restaura a dignidade do ser humano. Contudo, a visita musical possibilita também a satisfação de outras necessidades, como a diminuição de dores, conforme o relato de Geraldo:
G [...] “Isso aconteceu comigo, naquele dia, eu estava sentindo dores na perna... Eu sinto muita dor, né? Naquele dia que a senhora chegou, cantando, a minha dor sumiu! Esqueci a dor naquela hora... Fiquei emocionado[...]. E aí nessa hora vocês chegaram cantando... Aquela dor que eu sentia... Eu melhorei bastante, entendeu?”
A visita musical promove o esquecimento de problemas ao tempo que traz boas recordações, o que promove bem estar e a diminuição da ansiedade, exemplificada por Zito:
G “É, faz esquecer os problemas, as coisas negativas, né? Mas nos faz lembrar de coisas assim... Que nos alegra, né? Às vezes, são problemas que passa na mente... Tudo bem, depois passa ali aquele momento (referindo-se à visita musical), é como se neutralizasse, né? Neutralizasse... o problema [...]”.
Outro participante, Marcos, se refere à influência da visita musical para a sua totalidade: _ “A música em si, ela traz um conforto, alegria, harmonia... Enfim, a mim ela traz tranqüilidade para o corpo todo”. A produção de subjetividades que ocorre, a partir de um estímulo musical, é uma saída emocional relacionada à experiência estética e musical, experiência que integra a totalidade do sujeito, envolvendo seu corpo, mente e emoções. Assim sendo, a música promove diversas reações e os seus efeitos não podem ser separados, mas devem ser vistos de forma global e complexa11.
Essa totalidade que abrange conforto, harmonia e tranqüilidade, aponta para o fator de cuidado: observar ambientes auxiliadores, protetores e/ou corretivos, seja mentalmente, fisicamente, socialmente ou espiritualmente3. Nesse sentido, a visita musical modifica o ambiente criando uma perspectiva de saúde e bem-estar que influencia de forma global os participantes. É muito significativo que Marcos tenha usado a palavra ‘harmonia’ para definir a sensação que a visita musical lhe trouxe, pois ela reúne ao mesmo tempo o sentido de música, organização e totalidade.
Relaciono o fator de cuidado desenvolvimento de uma relação de ajuda-confiança3 com os elementos de conforto12 que também foram evidenciados na visita musical: liberdade; integração; melhora; segurança/proteção; cuidado e comodidade. Esses elementos descritos evidenciam que a visita musical proporciona conforto aos clientes internados, pois guarda relação com um ambiente favorável (afetuoso, caloroso e atencioso) que proporciona crescimento, alívio, segurança, proteção e bem-estar.
Considerações Finais
O momento de encontro, fundamental para o estabelecimento de uma relação de cuidado3, é desenvolvido com o cliente internado durante a visita musical. Esta promove benefícios relacionados ao bem estar, integralidade e autonomia dos clientes que participam deste momento de cuidado, pois podem escolher a música que faz parte do seu universo cultural e do seu cotidiano, resgatando lembranças positivas que lhe trazem a sensação de força para enfrentar os aspectos negativos da hospitalização. Torna-se, portanto, uma estratégia de cuidado baseada no respeito aos direitos do cliente, suas necessidades, desejos e expectativas, ao estimular que expresse o seu gosto musical e a sua participação nesses encontros, como princípios éticos do cuidado. Aí encontramos interfaces entre as visitas musicais com o que é próprio e de interesse da enfermagem fundamental.
Os fatores de cuidado, como um guia filosófico e conceitual, possibilitam a base para o desenvolvimento de práticas avançadas para modalidades do cuidado, como ficou evidenciado na análise dos resultados da pesquisa à luz da Teoria do Cuidado Transpessoal. A visita musical como estratégia terapêutica é uma modalidade avançada do cuidado, pois estimula a conexão entre pessoas e ambientes em todos os níveis, promovendo a subjetividade e a intersubjetividade e modificando positivamente o ambiente hospitalar, o que revela a sua importância para a enfermagem fundamental.
Referências:
1. Waldow VR. Cuidado Humano: o resgate necessário. 2ª ed. Porto Alegre: Editora Sagra Luzzatto; 1999.
2. Bergold LB, Sobral V. Music for care humanization. Online Brazilian Journal Nursing [serial online] 2003 Dec [cited 2005 nov 6] 2 (3): Avaliable from:www.uff.br/nepae/objn203bergoldsobral.htm
3. Watson J. Watson’s theory of transpersonal caring. In: WALKER,P. & NEUMAN,B. (orgs.). Blueprint for use of nursing models: education, research, practice and administration. New York: N & N Press; 1996. p.141-184.
4. Bergold L, Alvim N, Cabral I. O lugar da música no espaço do cuidado terapêutico: sensibilizando enfermeiros com a dinâmica musical. Texto Contexto Enferm, 2006 Abr-Jun; 15 (2): 262-9.
5. Watson J. The theory of human caring – retrospectiv and prospective. Nursing Science Quarterly 1997; 10(1): 49-52.
6. Ruud E. Music Therapy: Improvisation, Communication and Culture. Barcelona: Publisher;1998.
7. Talento B. Jean Watson. In: George JB. Teorias de Enfermagem: Os fundamentos à prática profissional. 4 ed. Porto Alegre (RS): Artes Médicas; 2000. p. 254-65.
8. Cabral IE. O método criativo e sensível: alternativa de pesquisa na enfermagem. In: Gauthier JHM, Cabral IE, Santos I, Tavares CMM, organizadores. Pesquisa em enfermagem: novas metodologias aplicadas. Rio de Janeiro (RJ): Guanabara Koogan; 1998. p. 177-203.
9. Alvim NAT. Práticas e saberes sobre o uso de plantas medicinais na vida das enfermeiras: uma construção em espiral [tese]. Rio de Janeiro (RJ): EEAN/UFRJ; 1999.
10. Milleco Filho L; Brandão M; Milleco R. É preciso cantar – Musicoterapia, canto e canções.Rio de Janeiro: Enelivros; 2001.
11. Sekeff ML. Da música, seus usos e recursos. São Paulo: Editora UNESP; 2002.
12. Arruda EN; Nunes AM. Conforto em enfermagem: uma análise teórico-conceitual. Texto Contexto Enfermagem. 1998; 7 (2): p. 93-110.
Contribuição dos autores: Concepção e desenho: Leila Brito Bergold; Análise e interpretação: Leila Brito Bergold e Neide Aparecida Titonelli Alvim; Escrita do artigo: Leila Brito Bergold e Neide Aparecida Titonelli Alvim; Revisão crítica do artigo: Neide Aparecida Titonelli Alvim; Aprovação final do artigo: Leila Brito Bergold e Neide Aparecida Titonelli Alvim; Colheita de dados: Leila Brito Bergold; Provisão de pacientes, materiais ou recursos: HCE; Pesquisa bibliográfica: Leila Brito Bergold; Suporte administrativo, logístico e técnico: Núcleo de Pesquisa em Fundamentos do Cuidado de Enfermagem da EEAN/UFRJ;
Endereço para correspondência: Av. Rui Barbosa nº 20 apt° 1001, Flamengo, Rio de Janeiro, Brasil, 22250-020. E-mail: leilabergold@terra.com.br Fone: (21)25510167
Notas: Extraído da Dissertação de Mestrado “A visita musical como estratégia terapêutica no contexto hospitalar e seus nexos com a enfermagem fundamental” defendida em novembro de 2005 na Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
¶Premiado com Diploma de Honra ao Mérito pelo 1º Lugar como melhor trabalho concorrente ao Prêmio Sistematização da Assistência de Enfermagem concedido pelo Online Brazilian Journal of Nursing durante o 2º Simpósio “O Cuidar em Saúde e Enfermagem”, em novembro de 2007, promovido pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Received: Mar 18, 2008
Accepted: Mar 19, 2008