Woman life and health: arguing the problems of the reality with professionals of the care

Vida de mulher e saúde: problematizando a realidade com profissionais do cuidado

Rebeca Nunes Guedes1 Ana Tereza Medeiros Cavalcanti da SilvaEdméia de Almeida Cardoso Coelho2

 1 Universidade Federal da Paraíba,UFPB; 2 Universidade Federal da Bahia,UFBA

Abstract. The relation between professionals and female users of health care is influenced by the way the involved individuals are inserted and interact in the social  space they occupy, which makes the practice to be directed by gender relation as well. Assuming the consideration of the life of   professional women and users may contribute to qualify women’s  health care, a study  was made aiming at offering a reflection and debate on the  relation between women’s  life and their  need for health care and identifying convergent and divergent aspects between the demand for care which results from the experience of professionals and that of the women they care for.  It is a qualitative study with gender as a theoretical reference. It was made between a multiprofessional female staff of a public health care setting. The production of empirical material was directed by a problematical methodology and reflection wokshop technique, the latter making experience exchange and collective knowledge building possible. The data were analyzed through the speech analysis technique that recognizes the most abstract, hematic level in  the text, which makes it coherent by revealing the enunciator’s  view of the world. The empirical material analysis showed that female health professionals present at times similar demands to those of the women they care for originated from  their multiple functions and existing tension in private and public settings,  which  points out their need to be heard and have the conflicts related to gender decreased.

 Key words: woman’s health; women working; gender Identity; Gender and Health.

 Resumo.  A relação entre profissionais e mulheres usuárias dos serviços de saúde é influenciada pelo modo como os sujeitos envolvidos no cuidado se inserem e interagem nos espaços sociais que ocupam, fazendo com que as práticas profissionais sejam orientadas também por relações de gênero. Com base neste pressuposto e motivadas, ainda, pela idéia de que a ampliação do conhecimento sobre a vida de mulheres, profissionais e usuárias pode contribuir para qualificar o cuidado à saúde das mulheres, realizamos este estudo, que teve como objetivos, compreender as concepções de mulheres profissionais sobre suas próprias identidades sociais nos espaços público e privado em que estão inseridas e analisar as convergências/distanciamentos entre os significados da vida da mulher profissional e os da vida da mulher de quem a profissional cuida. Trata-se de um estudo de caráter qualitativo tendo gênero como referencial teórico. A investigação foi desenvolvida junto uma equipe multiprofissional formada por mulheres, em um serviço público de saúde na cidade de João Pessoa-PB.  A produção do material empírico foi orientada por metodologia problematizadora e pela técnica de oficinas de reflexão que possibilitaram troca de experiências e a construção coletiva de um conhecimento. O material empírico foi analisado pela técnica de análise do discurso proposta por Fiorin do que resultou a visibilidade do fato de que mulheres profissionais de saúde apresentam uma demanda de cuidados, por vezes, assemelhada à das mulheres de quem cuidam, como resultado de suas múltiplas funções e de tensões existentes nos espaços, privado e público, requerendo a necessidade de serem ouvidas para minimizar seus conflitos relacionados à identidade de gênero.

 Palavras-chave: saúde da mulher; trabalho feminino; identidade de gênero, gênero e saúde.

 1- INTRODUÇÃO 

A relação entre profissionais e usuárias dos serviços de saúde é influenciada pelo modo como os sujeitos envolvidos no cuidado constroem sua identidade de gênero e interagem nos espaços sociais que ocupam. Tal relação está condicionada também à formação acadêmica que se realiza numa abordagem essencialmente técnica e sob sujeição ideológica ao modelo pedagógico hegemônico que unilateraliza e hierarquiza o saber e o poder em saúde 1 .

No tocante às profissionais mulheres, além delas trazerem para o campo de práticas o modelo biomédico de assistência ä saúde hegemônico trazem também para o cotidiano do cuidado das mulheres as marcas da construção da sua própria identidade de gênero (individual e coletiva), entre as quais as sobrecargas, resultantes da dupla jornada de trabalho e da demanda emocional gerada nas relações vividas em seu mundo familiar e profissional. Essa realidade tem sido constatada por investigadores da área da saúde e das ciências sociais e por profissionais, nas oportunidades de diálogo no cotidiano dos serviços, o que suscita reflexões e discussões sobre a necessidade de profissionais mulheres serem ouvidas de modo sensível e de se criarem espaços solidários nos serviços, de modo que cuidadoras também possam ser cuidadas 1 .

Consideramos que a problematização da realidade das profissionais que cuidam de mulheres possibilita-lhes reconhecerem-se como sujeitos históricos, cuja identidade é definida por padrões socialmente estabelecidos para mulheres e homens e que esta construção influencia o modo de se relacionar consigo própria e com os outros. Nesse sentido, pressupomos que a reflexão sobre a realidade na qual as mulheres estão inseridas pode contribuir para qualificar a relação de cuidado e abrir espaços para que, tanto as profissionais quanto as usuárias dos serviços de saúde possam constituir-se como sujeitos motivados a conhecer-se, defender-se e libertar-se de amarras resultantes de um processo histórico e cultural que lhes impõe um lugar social de dependência e subordinação, pois, defendemos o argumento de que as práticas profissionais podem ser instrumento de emancipação social.

Diante do exposto, questionamos: Como profissionais mulheres concebem sua inserção nos espaços sociais em que exercem os papéis de mulheres e de profissionais de saúde? De que modo a concepção que profissionais mulheres têm sobre si próprias se articula com a vida das mulheres de quem cuidam? Na busca de obter respostas para essas questões, o estudo teve como objetivos:

·         Conhecer as concepções de mulheres profissionais sobre suas próprias identidades sociais nos espaços público e privado em que estão inseridas.

·          Analisar as convergências/distanciamentos entre os significados da vida da mulher profissional e os da vida da mulher de quem a profissional cuida.  

2 METODOLOGIA 

2.1 Suporte teórico metodológico:Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa, tendo gênero como eixo teórico. O uso da categoria gênero dá visibilidade a desigualdades resultantes das relações entre homens e mulheres orientadas por um sistema de crenças e valores socialmente legitimados. A utilização da abordagem de gênero para a compreensão das relações de poder entre os sexos registra também sua importância na medida em que o foco da discussão das questões das mulheres amplia-se para uma análise das relações sociais como um todo, enfoca os mecanismos de subordinação das mulheres pelos homens e também pelo modo de organização das relações sociais alcança a legislação, o Estado, as relações de trabalho, as representações sociais, campos simbólicos, de modo que atua sobre os planos macro e micro-social.

Para que fosse possibilitada a apreensão da realidade das mulheres de modo crítico, reflexivo e cientificamente elaborado, foi adotada metodologia problematizadora segundo princípios de Paulo Freire, adaptada à abordagem de gênero.  Problematizando e decodificando criticamente o mundo vivido as pessoas se descobrem como sujeitos de sua própria história sendo chamadas a assumir o seu papel. Assim, a problematização da realidade é necessária à construção de espaços que possibilitem criar condições para o desenvolvimento de atitudes comprometidas com a ação transformadora 2 .  

2. 2 Cenário e universo empírico do estudo: O estudo foi realizado em um serviço público de saúde considerado referência para atenção básica e especializada à saúde da mulher, em João Pessoa-PB.  O universo empírico do estudo foi constituído por 13 profissionais de saúde: 1 auxiliar de enfermagem, 1 assistente social, 4 enfermeiras, 2 fisioterapeutas, 3 psicólogas, 2 técnicas de enfermagem que concordaram em participar da pesquisa e tiveram disponibilidade de tempo para inserir-se no grupo de estudo. A investigação cumpriu as disposições éticas, propostas pela resolução 196/96 que dispõe sobre a pesquisa realizada com seres humanos. O grupo foi constituído por mulheres com idade entre 29 e 57 anos, em sua maioria casadas, sendo 1 solteira e 1 viúva. Apenas 1 não possuía filhos, tendo as demais uma média de 2 filhos, variando de 1 a 4. A religião de 10 das participantes era católica, sendo as demais evangélicas. O tempo de trabalho das profissionais no serviço variou de 11 meses a 28 anos, tendo 9 delas algum curso de aperfeiçoamento, e  1  curso de pós-graduação. As participantes são identificadas no texto por nomes fictícios de sua escolha.  

2.3 Aspectos Éticos: O estudo cumpriu as regulamentações propostas pela resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, tendo obtido aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Paraíba (CEP/CCS/UFPB), sob protocolo n° 261/06. Após aprovação pelo CEP, iniciou-se o processo de investigação com prévio consentimento das mulheres participantes do estudo através do Termo de consentimento livre e esclarecido. 

2.4 Produção do material empírico: Considerando que a produção do material empírico por meio de processo grupal, conforme constatado em várias pesquisas1;3;4;5 possibilita um rico material optamos por utilizar oficinas de reflexão como técnica. As oficinas constituem espaço de construção coletiva do conhecimento, facilitando a aproximação com a realidade objetiva e subjetiva dos sujeitos da pesquisa desencadeando reflexão e discussão sobre as suas experiências de vida como mulheres e trabalhadoras.

            No desenvolvimento das oficinas foram cumpridas etapas específicas de apresentação e integração; desenvolvimento do tema; socialização das experiências; Síntese; avaliação; e descontração/relaxamento. Estas seguiram as recomendações de autoras com experiência no uso dessa técnica 1;4;6;7. Foram realizadas duas oficinas, sendo selecionados para divulgação neste artigo, os resultados da que foi denominada Vida de mulher e saúde.

 Todo o processo foi fotografado e as falas das participantes foram gravadas em fitas cassete, sendo posteriormente transcritas na íntegra para análise e discussão. Foi utilizado um caderno de campo para registro de observações. 

3 Análise e discussão do material empírico: Os depoimentos dos sujeitos do estudo foram analisados pela técnica de análise do discurso, proposta por Fiorin 8. Esta que tem como princípio básico reconhecer no texto o nível mais abstrato, temático, que lhe dá coerência. A identificação é marcada pela reiteração, redundância, recorrência de traços semânticos ao longo do discurso. O autor considera que o texto é uma organização dotada de mecanismos de coerência interna e externa, nos quais se podem perceber as visões de mundo dos sujeitos discursistas.

Seguindo os movimentos preconizados por Fiorin 8, depois de produzidos os textos, foram identificados temas e figuras que se confirmaram num mesmo plano de significado e nos remetia a uma categoria ou grande conceito que agregava os temas identificados.  O maior nível de abstração identificado nos discursos dos sujeitos da investigação levou à formação de subcategorias e categorias empíricas correspondentes, sendo elas: A heterogeneidade do ser mulher nos espaços sociais; Na vida de mulheres profissionais e usuárias, a convivência da liberdade e da exclusão social.  As categorias empíricas correspondem aos grandes conceitos do referencial teórico com os quais o material empírico encontra correspondência. 

3- 1 A HETEROGENEIDADE DO SER MULHER NOS ESPAÇOS SOCIAIS  

Esta categoria empírica foi construída a partir de duas subcategorias que apresentaram convergência temática, sendo abordadas as concepções que cada profissional participante do estudo expressou sobre suas próprias identidades, revendo-se como mulher nos espaços sociais que ocupa.. A partir de um momento de introspecção, vivido pelo grupo e exteriorizado simbolicamente em modelagem com massa, as profissionais descreveram as múltiplas faces da mulher trabalhadora, representada por cada participante na modelagem. As subcategorias resultantes são referentes à naturalização dos papéis de gênero e a um tipo idealizado de mulher, a seguir analisadas. 

3.1.1 A naturalização dos papéis de gênero e sua relação com o cuidar 

A redefinição dos papéis femininos no último século, que inclui o acesso à educação, ao voto, ao trabalho formal qualificado, possibilitando às mulheres ocuparem espaços antes somente permitidos aos homens, proporcionou à mulher uma mobilidade social expressiva, mudando a vida e as relações, inclusive no ambiente da família. Mas, a multiplicidade de papéis exercidos pelas mulheres vem comprometendo sua qualidade de vida, suscitando que se mantenha em pauta a discussão sobre a divisão sexual do trabalho, visando superar desigualdades de gênero também nesse campo. Isso foi constado ao analisar depoimentos referentes as seguintes questões da pesquisa: Quem é a mulher que há em mim? Como me reconheço nos espaços sociais que ocupo? Entre os depoimentos o de Rosa é bastante significativo: 

[...] a gente, que é mulher, se dedica a trabalho, a casa, a filhos, a marido e a gente esquece, realmente, um pouco da gente. [...] mas eu aproveitei esse momento pra pensar mais em mim, é tanto que eu me fiz só. [...] eu estou me dedicando muito ao meu trabalho, que é uma coisa que eu adoro fazer, trabalhar no hospital, adoro meus filhos, minha família, mas eu estou naquela fase de parar um pouco, sabe, pra pensar em mim, então eu me fiz aqui sozinha (Rosa). 

Nesse depoimento, há uma representação de mulher que reafirma o papel de cuidadora familiar somado ao de trabalhadora também no espaço público. A análise do discurso mostra que quando se afasta do que foi legitimado como seu principal papel social, preocupa-se em garantir a importância do seu núcleo familiar e do afeto que perpassa as relações buscando distanciar-se da culpa por usufruir de um espaço singular de atenção. O discurso revela também a mulher que exerce de modo prazeroso o trabalho no mundo privado e público, mas as jornadas de trabalho a aprisiona de modo a constituir obstáculo ao encontro consigo própria.

Com a crescente participação feminina no mundo do trabalho remunerado, logo se passou a valorizar a participação da mulher na sociedade apenas pela ótica da produção, sendo menos considerado o seu papel reprodutivo. “Cometeu-se o erro básico de exaurir o trabalho no trabalho remunerado, excluindo dessa categoria grande parte das atividades laborais realizadas pelas mulheres”. Vê-se assim que a relação entre a mulher e o mundo do trabalho é uma relação dialética, pois traz consigo conquistas e conflitos sendo a contradição produzida quando a saída da mulher de casa para as atividades no mundo público não foi acompanhada pela divisão do trabalho doméstico nem dos cuidados com a família 9.

O exercício da maternidade e o cuidado com a família, fortemente introjetados na construção da identidade de gênero, é espaço de realização para um grande número de mulheres, mas, hoje, é nas conquistas do mundo público, entre as quais, o trabalho remunerado, que as mulheres se completam como cidadãs. No grupo, ao lado de inquietações e desgastes, há um modo prazeroso dessas mulheres se referirem ao trabalho e à vida em família.

O trabalho no espaço público apresenta-se no discurso de Lua como gerador de desgastes afetando a relação consigo e com os outros. Tendo a família como referência de bem-estar ela encontra no aconchego do lar o conforto de que necessita:

[...] Desenhei essa casa porque a coisa que eu mais amo é a família: adoro meu pai, minha mãe e tenho marido, não tenho filhos, mas, devido a correria, meu pensamento é na hora de voltar pra casa e ter aquele aconchego da família. O outro lado é o meu lado mais preocupado, porque eu sou uma escrava das horas, acordo cedo, Então, minha vida social a escravidão pela hora... tornei-me uma pessoa retraída socialmente ( Lua ).

 

O modo como as mulheres exercem a conquista do trabalho no mundo público trouxe para elas sobrecargas e a contínua necessidade de ampliar e conquistar novos espaços tem imposto limites ao desenvolvimento de suas vidas em plenitude. Na prática, o trabalho de muitas mulheres foi se caracterizando como dupla ou tripla jornada e às vezes sentido como jornada ininterrupta. Isto porque antes de se inserir no mercado de trabalho a mulher já é parte da unidade doméstica, em cujo espaço um sistema cultural e simbólico lhe destina como principal papel social, o trabalho doméstico e o cuidado com a família, sendo também responsável pela sustentação emocional dos demais membros da família.

No grupo do estudo, a socialização das experiências individuais ampliou o espaço de discussão de modo que mulheres participantes reafirmaram-se como sujeito de direitos ao cuidado, vivendo naquele momento, a necessidade deste.

O corre-corre do dia-a-dia é que não faz você parar pra olhar pra você, pra sentir seu corpo, pra ver você. Você tem que ter dias pra você, momentos pra você.... É o que precisam as mulheres, ver isso, porque ficam as mulheres só submissas ao homem, o homem quer tudo, joga na mulher toda a responsabilidade e ela tem que saber trabalhar com isso aí (Cristal).

 

No discurso em análise, são reforçadas a necessidade e as dificuldades da vida das mulheres em construir espaços singulares de atenção. Vimos também que ao contrário da dependência familiar de cuidados pela mulher, expressa nos depoimentos anteriores, as profissionais falam do cuidado de si sem referência à necessidade de que a cuidem o que traz implícita a incorporação desse papel como inerente ao feminino e a autonomia que exercem quando se referem a essa função social. Nessa perspectiva, o cuidar de si é ao mesmo tempo direito e dever da mulher sujeito do discurso, ainda que para sua concretização outras pessoas precisem ser envolvidas.

Parece gratificante viver o prazer de ser mulher, mãe e profissional, contudo, há de se considerar que o mundo capitalista submete a mulher a novas regras, aprofundando o que historicamente também é fato, mulheres cuidam dos outros, mas, não aprendem a cuidar de si. Se o trabalho no mundo público é motivo de realização e produtor de bem-estar, pelo aumento da auto-estima feminina e pela valorização da mulher no espaço público, o espaço privado - que podemos traduzir também como espaço de cuidado - tem-se revertido em sobrecarga e desgastes ao acontecer sem redução das responsabilidades no mundo privado. Hoje, a provisão compartilhada é uma realidade e ainda que o papel de cuidadora familiar faça parte da identidade feminina, o cuidar compartilhado entre mulheres e homens é uma conquista a ser buscada.  

3.2 Idealização da mulher segundo valores socialmente legitimados  

A vida em família, com marido e filhos e, particularmente, vivenciar a maternidade são temas que se reiteram e formam com o trabalho no mundo público espaços sociais nos quais essas profissionais reafirmam identidades e realizações. Nesses, a vivência de papéis tradicionais de gênero convive com as conquistas das mulheres no mundo do trabalho diferenciando-se entre as profissionais do estudo o modo como lidam com o trabalho no lar e fora dele.

Os depoimentos ofereceram possibilidades de leitura sobre uma realidade que, embora apresente pontos convergentes tem suas especificidades, a exemplo do discurso de Pérola, no qual a maternidade representa um momento de maior realização como mulher, nos diferentes papéis sociais do âmbito do espaço público e do privado, conforme o depoimento: 

Eu fiz um sol, bem colorido, eu me fiz uma mãe, nesse ambiente de trabalho, porque eu acho que, como eu fui mãe recentemente, eu venho, mas eu ainda fico pensando muito na minha filha. Acho que a dependência emocional é mais minha do que dela [...] Então, eu fiz assim, eu mulher, mãe, no ambiente de trabalho, tendo que me dividir, em todos os aspectos: ser mãe, trabalhar, ser esposa e, assim, tudo bem colorido, bem feliz, porque acho que está sendo a fase mais feliz da minha vida [...](Pérola). 

As mulheres são preparadas para a maternidade desde a infância, mesmo que algumas não venham exercê-la concretamente. “No cotidiano das mulheres, a maternidade ainda é o articulador fundamental, mesmo quando vivemos numa sociedade em que a maternidade já se conforma como uma opção para determinados grupos sociais [...]” 6 .  Ao articular esse papel com o trabalho no mundo público. Verifica-se que o modelo de mulher/família, incorporado na formação da identidade de gênero e ainda predominante no imaginário social, acompanha as mulheres trabalhadoras também quando se inserem no trabalho do mundo público, este também já fazendo parte da sua identidade.

As profissionais participantes do estudo mostraram a forte marca da identidade de gênero construída sob um modelo de mulher que já não se adequa àquela que conquistou espaço no mercado de trabalho. Foi evidenciado nos discursos de algumas participantes que a inserção no mundo público não flexibilizou funções e tarefas no mundo doméstico, o que acarreta sobrecarga física e emocional. Outras trazem para o espaço do cuidar profissional um modelo idealizado de mulher, mãe e trabalhadora como expressão de prazer e realização, reforçando estereótipos de gênero, que reproduzem a naturalização de papéis sociais. Mantém-se a defesa de um modelo de família no qual a mulher é a maior responsável pelo equilíbrio de todos, ao mesmo tempo em que nessa família gratificam-se e harmonizam-se para a vida no mundo privado e no mundo público.  

4 NA VIDA DE MULHERES PROFISSIONAIS E USUÁRIAS, A CONVIVÊNCIA DA LIBERDADE E DA EXCLUSÃO SOCIAL 

            A igualdade de gênero não é suficiente para igualar socialmente as mulheres. A desigualdade de classe é flagrante quando pensamos no enorme contingente de mulheres sem acesso à informação, ao conhecimento e conseqüentemente aos espaços qualificados do mercado de trabalho. Essas mulheres constituem a maior parte da demanda dos serviços públicos de saúde e é nesses locais que buscam o acolhimento e a atenção às suas necessidades em saúde.

Vimos pelos depoimentos que, diferenciadas pela classe social as profissionais puderam conquistar pela qualificação profissional e pelo trabalho no mundo público, um certo grau de autonomia e liberdade que lhes proporcionaram instrumentos para enfrentar as desigualdades de gênero ainda que nos limites da singularidade de cada mulher.

            No discurso de Pérola temos a constatação de que independentemente da classe social, a multiplicidade de papéis sobrecarrega as mulheres em meio às atribuições do cotidiano doméstico, familiar e profissional revelando uma vida de significados relacionados a obrigações:

A gente não difere muito das mulheres que cuidamos. Por atender gestantes temos uma grande oportunidade de escuta das vivências delas. Atendemos uma diversidade de mulheres muito grande, a que não sabe ler, a que tem várias formações, a que só tem o SUS e a que tem plano de saúde diferenciado. Observamos que o dia-a-dia não tem muita diferença. A forma de se expressar pode variar, mas, a problemática é igual à da gente: trabalha, não tem tempo, a mesma coisa.  Você é mãe, mulher, é isso, é aquilo [...] tem afazeres em casa, tem o trabalho, tem o estudo (Pérola).

 

Quanto a outros aspectos da relação vida de mulher profissional e vida de mulheres usuárias do serviço, estas, comumente fora do mercado de trabalho ou em subempregos aparecem, neste estudo, destituídas de condições materiais dignas de sobrevivência. Essa desigualdade no plano da economia, marcada pela pobreza extrema, repercute nas questões de gênero, pois, desfavorece o enfrentamento das desigualdades de gênero. Fogo traz em seu discurso aspectos da vivência sexual e reprodutiva das mulheres por ela atendidas referindo-se à completa submissão ao parceiro sexual, sem liberdade de decidir sobre seu corpo e sobre a sua vida, expressando a grande distância da condição feminina entre profissionais e usuárias nesta dimensão da vida das mulheres:

 

A maioria delas vive pra marido, estão cumprindo a obrigação de esposa, [...] não têm o prazer de escolha. Encontra-se uma ou outra que a gente sente que ela tem uma certa decisão sobre o corpo[...]. Primeiro, elas não tem nem condições financeiras de se alimentar, nem o prazer de se cuidar, de maquiar, a maioria das mulheres vêem nisso uma forma de sentir a auto-estima mais elevada [...] muitas não têm oportunidade de trabalhar porque o marido não deixa. O que é pior, as que  não trabalham nem estudam, quando se separam nem pensão alimentícia têm porque o marido tem um subemprego. Assim, elas não têm opção de quase nada na vida delas, elas estão aí, ou elas optam por ficar com um homem pra fazer tudo que ele quer ou algumas caem na vida, porque não querem se submeter também a certos limites, mas também estão limitadas a viver na prostituição (Fogo).

 

As mulheres referidas na entrevista de Fogo ao viverem em situação limite de pobreza material, têm baixa auto-estima e encontram-se em situação de completa submissão ao poder masculino. Não reagem ao que foram levadas a entender como destino e internalizam a pobreza em todos os níveis. Expondo aos profissionais de saúde a sua vida necessitam de investimento desses no sentido de potencializar em si a capacidade de construir espaços que rompam os limites possíveis da submissão, da violência e da exclusão social, temas identificados no discurso da submissão.

A análise do depoimento de Fogo requer considerar o contexto histórico da segunda metade do século XX, marcado por conquistas para a vida das mulheres, especialmente após os anos 70, quando a luta feminista defendeu o controle da mulher sobre seu corpo, sexualidade e reprodução Porém, a situação apresentada testemunha que as intenções das políticas públicas de saúde para as mulheres não garantem sua concretização em ações que levem ao empoderamento das mulheres; os serviços de saúde ainda não se constituem em espaços que podem dispor de uma prática profissional que favoreça a emancipação social, a partir da consciência profissional do domínio do saber como instrumento potente para avançar com a transformação do status quo. Essa consciência política significa uma possibilidade de independência das amarras do subjugo da hierarquia do saber dominante ao qual a abordagem de gênero se contrapõe ao defender a emancipação das mulheres através da luta política e de sua organização social.

Desse modo é necessário que se desenvolvam estratégias que incluam a perspectiva de gênero em todos os níveis de atenção à saúde , para que se possibilite a “neutralização da visão positivista, idealista e eurocêntrica, causadora de prejuízos para as/os usuários, gestores e profissionais do sistema de saúde” 10 vislumbrando, assim, um cuidado em saúde não excludente, que atenda os princípios da equidade e integralidade, respeitando as particularidades de todos os grupos sociais, entre eles, das mulheres.

Comparando a vida da mulher cliente dos serviços públicos com o que foi exposto por algumas profissionais sobre a sua própria vida, sobretudo na primeira categoria empírica deste estudo, é possível afirmar que aquilo que aprisiona também pode libertar por meio da luta pela emancipação social. A autonomia, a liberdade, o empoderamento podem apresentar-se como categorias a serem conquistadas, estando mais próximas das mulheres que se profissionalizam e se incluem, pelo trabalho, no mundo público, ainda que encontrem limites na subjetividade e nos estereótipos dos quais tenta libertar-se. Isto pode ser traduzido pelos depoimentos a seguir:

A gente tem a oportunidade de mudar. E não é só mulher da classe baixa que se submete a maus tratos. A gente vê também isso em classe média alta. Então, a gente tem essa oportunidade de ter uma leitura diferenciada e ficar ou não naquilo, se sujeitar ou não. As mulheres da classe baixa muitas vezes precisam se sujeitar aquilo, por dependência econômica, física, emocional mesmo (Rosa). 

Ainda referente ao aspecto analisado, Fogo afirma:  

Quando comecei a trabalhar não queria trabalhar com mulher, só queria com homem. Porque eu me identificava com ela, com as dores, com os reclames, eu não tinha condições de trabalhar [...] eu não confio em médica mulher porque a experiência que eu tive em uma consulta ginecológica com uma médica, ela se colocou igual a mim, sentia a mesma coisa que eu, e aquilo ali me fez sentir que ela não estava levando em consideração tudo que eu estava sentindo porque ela também sentia e achava besteira. Foi péssimo, eu preciso de um profissional que me escute, que me dê apoio, mas eu quero lá saber da vida dele?Tenho o meu problema aqui ( Fogo). 

As profissionais deste estudo são auxiliares e técnicas de enfermagem, assistentes sociais enfermeiras, fisioterapeutas e psicólogas, mulheres inseridas em profissões consideradas femininas que vivenciam as barreiras do gênero também no mercado de trabalho. Garantiram sua mobilidade social e poder de decisão sobre suas vidas na medida em que se inseriram no mundo público, por meio da profissionalização, o que lhes possibilita construir instrumentos para superação, mesmo que individualmente, de certas desigualdades.

Todavia, o depoimento informa as dificuldades de mulheres profissionais em lidar com a dor da outra mulher (cliente) porque se identifica na mesma dor e a naturaliza. Buscando garantir ações técnicas, uma se afasta, outra banaliza o sentimento da mulher de quem cuida, negando a empatia, ou seja, colocar-se no lugar da (o) outra (o), sensibilizar-se para, assim, valorizar, respeitar, mobilizar recursos internos e/ou externos que possam abrir caminhos à minimização ou solução de problemas, a partir de quem os vive.

Desse modo, vida de mulher usuária dos serviços e vida de mulher profissional se distanciam em sua condição de classe, mas, ainda que igualadas pelo gênero se diferenciam nas condições objetivas para enfrentamento e superação de desigualdades, o que não é garantido plenamente no plano da subjetividade. Desse modo, mesmo quando mulheres dispõem de condições objetivas para superação de desigualdades nas relações de gênero, não conseguem romper todas as amarras da subordinação, pois, esta ocorre por mecanismos ideológicos de reprodução do status quo, a serem superados por novas relações sociais, o que requer a desconstrução daquilo que está posto hegemonicamente como relações de gênero, na atualidade.  

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

            Refletir com mulheres profissionais de saúde sobre vida de mulher articulada ao cotidiano do trabalho com mulheres clientes ofereceu-nos a oportunidade de confirmar as conquistas das mulheres no espaço público e o prazer de vivê-las. Nesse processo, reconhecemos a coexistência de uma forma diferenciada de opressão, decorrente da multiplicidade de papéis, aos quais as mulheres estão submetidas, ao somar atividades no espaço doméstico e público, acarretando-lhes sobrecarga de trabalho e comprometendo sua qualidade de vida. Disso decorre uma demanda própria de cuidados para si. Um dos pontos de convergência nos depoimentos foram as exigências sociais em torno da constituição da família tradicional e, sob um referencial idealizado de mulher, no doméstico, na maternidade, no casamento e no espaço público, assumem o cuidado do(o) outro(a) sem espaço para cuidar de si, reproduzindo desigualdades, por vezes questionadas, por vezes não percebidas por mulheres que também incorporaram a naturalização de papéis sociais de gênero.

No grupo do estudo, vivenciar a maternidade e estar em família constitui papéis sociais com os quais as mulheres se realizam, gratificam-se, reafirmam suas identidades e se harmonizam para o trabalho no mundo público, tendo-se na sua afetividade a referência para outras relações. A inserção no mercado de trabalho, como profissionais, constituiu espaço de autonomia e liberdade, quando associadas aos espaços femininos tradicionais. Verificamos ainda, que a provisão material compartilhada, produz auto-estima e favorece o empoderamento para enfrentar desigualdades de gênero ainda que limitadas às condições subjetivas individuais. As mulheres profissionais, sujeitos deste estudo, assumiram-se responsáveis pelo cuidado, em sua maioria, referindo a necessidade de produzir tempo para cuidar de si, enquanto reconheciam usufruir de cuidados na vivência grupal deste estudo, por ele ter constituído um espaço singular de atenção.

Os depoimentos revelaram as convergências e os distanciamentos, entre as mulheres que cuidam e suas clientes, decorrentes de desigualdades de classe e de gênero. Sem condições objetivas para assumirem-se como independentes financeiramente, mulheres usuárias do serviço submetem-se ao poder dos parceiros e  são vítimas de violência física e psicológica, a exemplo das situações de internação por gravidez, parto, puerpério ou doenças, às quais se somam o distanciamento dos filhos. Sem poder de decisão sobre seu corpo, sua sexualidade e sua vida, as mulheres atendidas no serviço submetem-se servilmente aos parceiros, enquanto as profissionais que conquistaram o mercado de trabalho ampliam condições de enfrentamento do poder masculino no mundo privado, facilitadas pelos privilégios de classe, embora também apresentem limitações na liberdade e na autonomia para construir relações de gênero igualitárias.

A oportunidade para reflexão e discussão sobre vida de mulher e sua relação com o trabalho foi permeado pela escuta sensível e bem-estar coletivo, construído na vivência grupal. O espaço de reflexão proporcionado nas oficinas fez emergir nas participantes a necessidade de atenção para consigo, assim como de melhorar a qualidade de sua atenção para com os(as) outros(as). Acreditamos que o olhar da mulher para sua vida e a de outras mulheres pode ser estimulado nos serviços e constituir uma oportunidade e possibilidade de tomar consciência da construção cultural de papéis sociais, crescendo coletivamente e ampliando a capacidade reivindicatória pelo exercício dos direitos.

Potencializando subjetividades numa relação horizontal entre pesquisadoras e participantes, as oficinas permitiram visualizar que a vivência cotidiana na atenção à saúde pode ser transformada e se encaminhar para o empoderamento de quem cuida e de quem é cuidado. Na avaliação, o grupo mostrou a fertilidade do processo metodológico e das trocas de experiências, que entenderam contribuir para melhor qualificar as relações entre a equipe, respeitando-se modos de ser e de estar no mundo, vinculados à singularidade da mulher. Neste estudo, foi possível unir pesquisa e intervenção social, cuidando de cuidadoras

REFERÊNCIAS 

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[8] Fiorin JL; Saviopli FP. Para entender o texto: leitura e redação. 15 a ed. São Paulo. Atica; 1999.

 

[9] Cruz MHS. Trabalho e gênero: algumas perspectivas de análise.  In:Universidade e Sociedade. n. 11; 1996. p. 168 (Andes: Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior).

 

[10] Cruz, ICF.  Sexismo e Racismo institucional: como a(o) enfermeira(o) pode prevenir estas violências à cliente? In: Online Brazilian Journal of Nursing [Online], v.5.n.2 Abr 2006 disponível em: http://www.uff.br/objnursing/viewarticle.php?id=499&layout=html, acesso em 03/07/2006

 

Contribuição dos autores:
-Concepção e desenho: Rebeca Nunes Guedes; Ana Tereza Medeiros Cavalcanti da Silva; Edméia de Almeida Cardoso Coelho.
-Análise e interpretação: Rebeca Nunes Guedes; Ana Tereza Medeiros Cavalcanti da Silva; Edméia de Almeida Cardoso Coelho.
-Escrita do artigo: Rebeca Nunes Guedes; Ana Tereza Medeiros Cavalcanti da Silva; Edméia de Almeida Cardoso Coelho.
-Revisão crítica do artigo:  Ana Tereza Medeiros Cavalcanti da Silva; Edméia de Almeida Cardoso Coelho.
-Aprovação final do artigo: Ana Tereza Medeiros Cavalcanti da Silva; Edméia de Almeida Cardoso Coelho.
-Colheita de dados: Rebeca Nunes Guedes, Edméia de Almeida Cardoso Coelho
-Provisão de pacientes, materiais ou recursos: Rebeca Nunes Guedes; Ana Tereza Medeiros Cavalcanti da Silva; Edméia de Almeida Cardoso Coelho.
-Obtenção de suporte financeiro:Rebeca Nunes Guedes, Ana Tereza Medeiros Cavalcanti da Silva; Edméia de Almeida Cardoso Coelho.
-Pesquisa bibliográfica: Rebeca Nunes Guedes, Ana Tereza Medeiros Cavalcanti da Silva; Edméia de Almeida Cardoso Coelho.
Endereço para correspondência : Rua Severino Nicolau Melo, 582, apto 1201-b Bessa. CEP 58036260. João Pessoa-PB
Apoio de: CNPq; Instituto Cândida Vargas; UFPB
Received Nov 25, 2006
Revised Jan 29, 2007
Accept Apr 22, 2007