The Marital Violence  under a gender view:  domination and possibility of destruction of the  hegemonily idealized model of marriage 

 A Violência conjugal sob o olhar de gênero: dominação e possibilidade de desconstrução do modelo idealizado hegemonicamente de casamento:

Rebeca Nunes Guedes1 ; Ana Tereza Medeiros Cavalcanti da Silva2; Edméia de Almeida Cardoso Coelho3; César Cavalcanti da Silva4; Waglânia de Mendonça Faustino e Freitas5.

1 Universidade Federal da Paraíba, PB, Brasil; 2 Universidade Federal da Paraíba, PB , Brasil; 3 Universidade Federal da Bahia, BA, Brasil; 4 Universidade Federal da Paraíba, PB, Brasil; 5 Universidade Federal da Paraíba, PB, Brasil.

 Abstract. This study is intended to enlarge the understanding of marital violence. In a qualitative analysis  the research investigated what marital violence does mean to women victims of this kind of violence and how it affects their biological, emotional and social life. The results of the qualitative material in this research were achieved through interviews with women in situation of reported violence whose speeches were analyzed under the perspective of Fiorin 3. The analysis of the speeches showed that marital violence is a manifestation of the power assimmetry present in the relation of the genders and the women´s emotional feelings as well as their standard idealized profile as woman, wife and mother turned out to be a strong hidrance to their liberation from that violent relation and oppressive condition. The difficulty to face such a condition results in women having to go on living with their aggressors, which makes marital violence a recurrent, multifaceted phenomenon affecting their physical, mental and social health.

Key words: Violence against women, gender and health, gender identity, power. 

Resumo. Trata-se de um estudo com a finalidade de ampliar a compreensão da violência conjugal, no qual buscou-se compreender o significado da violência conjugal para as mulheres que a sofrem e analisar as repercussões dessa violência na sua vida biológica, emocional e social. A produção do material qualitativo da investigação foi conseguida por meio de entrevistas com mulheres em situação de violência e de denúncia, cujos discursos foram analisados segundo a perspectiva de Fiorin3. A análise dos discursos evidenciou evidenciou que a violência conjugal é um modo de manifestação da assimetria de poder presente nas relações de gênero e que os sentimentos afetivos, juntamente com o modelo idealizado de mulher, esposa e mãe revelaram-se nos depoimentos, como fortes contradições que dificultam a libertação das mulheres da relação violenta e de sua situação de opressão. As dificuldades de enfrentar tais contradições permitem que as mulheres permaneçam na convivência com seus agressores, o que justifica ser a violência conjugal um fenômeno recorrente e multifacetado que impacta significativamente a saúde física, mental e social das mulheres vitimizadas.

Palavras-chave: Violência contra a mulher, Gênero e saúde, Identidade de gênero, Poder 

 INTRODUÇÃO

  A violência é um fenômeno complexo que tem, em suas raízes, a interação de fatores biológicos, sociais, econômicos e políticos. É de difícil definição, pois, a noção de comportamentos aceitáveis/inaceitáveis e do que constitui um dano está intimamente influenciada pela cultura e pelo contexto histórico de sua produção, como também está submetida a contínuas mudanças, à medida que valores e normas sociais assumem novos significados.

Cerca de metade das mulheres latino-americanas é vítima de alguma violência, porém, ao contrário da situação enfrentada pelos homens, que na maioria das vezes são agredidos por pessoas distantes do seu meio familiar e no espaço público, a violência contra a mulher ocorre principalmente no espaço doméstico e é exercida por parceiros ou outras pessoas com quem as vítimas mantêm relações afetivas ou íntimas1.

  Estudos revelam forma mais endêmica de violência contra a mulher é a violência conjugal. Em vários países, entre um quarto e mais da metade das mulheres questionadas sobre o tema, relataram terem sido agredidas fisicamente pelo companheiro atual ou anterior, em algum momento de sua vida. Ainda um percentual maior permanece em condições de abuso emocional e psicológico e, entre um terço e mais da metade dos casos, o abuso sexual é mais um tipo de violência que acompanha as demais e agrava sobremaneira a situação de saúde física e mental da mulher vitimizada2.

Desse modo, a violência, quando praticada contra a mulher, por ser uma questão de gênero, assume um diferente enfoque, uma vez que, na grande maioria dos casos, o agressor é alguém do sexo masculino, seu parceiro ou cônjuge. Sendo assim, a violência contra a mulher é resultado de  relações de poder construídas ao longo da história pela desigualdade de gênero e consolidadas por uma ideologia patriarcal e machista.

As relações existentes entre os cônjuges são regidas por papéis sociais (mãe-mulher-dona de casa e pai-marido-chefe de família), construídos ideologicamente como cultura, nos quais estão implícitas as desigualdades de gênero, fortemente introjetadas no imaginário social, sendo sua naturalização um dos fatores de opressão para as mulheres e de aceitação no imaginário social do senso comum. Essa forma de violência implica agravos à saúde física e mental das mulheres, limitando sua capacidade produtiva e prejudicando sua qualidade de vida e auto-estima. O fenômeno constitui uma contradição que precisa ser identificada, compreendida e enfrentada no enfoque das relações de gênero para que as mulheres possam desfrutar das condições sociais de igualdade, pressupostas nos ideários da civilização ocidental, desde a modernidade, para todos os seres humanos.

Vista por esse ângulo, a violência doméstica contra as mulheres constitui um problema de saúde pública e requer a articulação dos serviços de saúde com as instituições de apoio às vítimas, assim como a atuação adequada dos profissionais de saúde, que se encontram em posição estratégica para identificar riscos e possíveis vítimas de violência conjugal, de modo que os serviços possam vir  constituir uma rede de intervenção, tanto na prevenção quanto na assistência ao dano instalado. Conhecer como as vítimas concebem esse fenômeno e como ele afeta sua vida, possibilitará a identificação de caminhos que levem ao enfrentamento e superação das contradições que alimentam a desigualdade de gênero e permitem o desenvolvimento da violência conjugal praticada contra as mulheres.

Diante dessa problemática, ampliar investigações e aprofundar a discussão sobre esse fenômeno da realidade possibilitará uma melhor compreensão e visibilidade do problema pelos profissionais de saúde, entre eles, os de enfermagem, que lidam  mais diretamente com o cuidado às mulheres vitimizadas pela violência conjugal, além de oferecer subsídios para que políticas públicas valorizem estratégias para o empoderamento das mulheres, possibilitando, assim, rupturas das  amarras da submissão. Nesse sentido, este estudo parte de uma aproximação com as mulheres vitimizadas, de modo a conhecer sua convivência com esse tipo de opressão.

Uma outra perspectiva de alcance desta pesquisa é talvez a possibilidade de que seus resultados possam subsidiar a atuação dos profissionais de enfermagem no sentido de instrumentalizá-los com um tipo de conhecimento para o enfrentamento das conseqüências da violência conjugal na vida das mulheres, uma vez que os serviços de saúde fazem parte da rota percorrida por mulheres em situação de violência, que apresentam freqüentes queixas e problemas de saúde. Estudos apontam para o fato de que a violência ainda é pouco apreendida pelos profissionais de saúde2.  

Essas reflexões motivaram a elaboração deste artigo, que tem como objetivo Compreender o significado da violência conjugal, segundo a concepção das mulheres que a sofrem.

MÉTODOS

Caracterização do estudo

Trata-se de uma pesquisa exploratória e desritiva, de abordagem qualitativa cujos elementos do objeto de estudo foram analisados a partir da perspectiva de gênero. Isso significa que nossa leitura teve como enfoque principal a construção histórica das relações sociais entre os sexos.

Cenário da investigação

O estudo foi realizado no município de João Pessoa – Pb, na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM), durante o período de 20 de Abril a 24 de maio de 2006. 

Universo empírico e produção do material empírico

Para a produção do material empírico, foram consideradas as mulheres em situação de violência conjugal, no momento em que realizavam a denúncia. As mulheres entrevistadas foram aquelas que, durante os meses de abril e maio de 2006, estiveram na DEAM em situação de denúncia contra violência conjugal e apresentaram interesse em participar do estudo, assim como disponibilidade de tempo e estado emocional que permitisse a realização do processo de entrevista.

Aspectos éticos

Este estudo atendeu aos requisitos propostos pela Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Pesquisa que dispõe sobre as normas e diretrizes regulamentadoras da pesquisa envolvendo os seres humanos. Após aprovação do projeto de pesquisa pelo Comitê de Ética e Pesquisa do CCS-UFPB sob protocolo 261/06, iniciamos a investigação junto à Delegacia da Mulher. Desse modo, mantivemos o contato com algumas denunciantes para explicar-lhes os objetivos da pesquisa e esclarecer-lhes os aspectos éticos dispostos no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Após conseguir seu consentimento em participar do estudo, com a sua assinatura do documento, foi iniciado o processo de entrevista, tendo sido solicitado a cada mulher escolher um nome fictício a ser utilizado na pesquisa, de forma a garantir seu anonimato.

Análise e discussão do material empírico

Iniciamos a análise do material empírico com a transcrição do material produzido pelas entrevistas, impressão e leitura dos textos.  Subseqüentemente passamos à re-leituras dos textos e à identificação dos temas sob o enfoque de gênero. Em seguida, foi feito o recorte dos textos que continham os temas que orientaram a construção das sub-categorias, considerando o objeto e os objetivos deste estudo. Para tanto, os textos foram decompostos e organizados em blocos de significados e dispostos por coincidência ou divergência temática. Em todo o processo de análise e discussão, o material empírico foi relacionado com a literatura pertinente, para ancorar as posições sociais nele reveladas, conforme a orientação para a análise do discurso na perspectiva proposta por Fiorin3.

O enfoque tem como princípio básico a compreensão de que o discurso é uma posição social devendo, assim, ser analisada. Para o autor, os textos são analisados não para se responsabilizar individualmente as pessoas, mas para se identificar determinadas posições sociais que se manifestam discursivamente no interior da sociedade, marcadas pela ideologia.

Seguindo essa orientação metodológica de análise, identificamos os temas emergentes dos discursos que permitiam a organização dos blocos de significação que orientaram a construção das seguintes sub-categorias empíricas: A assimetria de poder impondo submissão e silêncio das mulheres em situação de violência; O duplo da violência: dominação e possibilidade de desconstrução do modo idealizado hegemonicamente de casamento; A visibilidade do impacto da violência na vida biológica, psicológica e social das mulheres vitimizadas. Ao término dessa etapa do processo de investigação, verificamos que as sub-categorias poderiam ser acolhidas em um grande conceito ou categoria maior: A violência conjugal e sua relação com a tutela da diferença nas relações desiguais de gênero4.

Visando atender ao objetivo proposto para este artigo, passaremos à apresentação da subcategoria empírica, construída a partir dos temas e discursos revelados nos depoimentos das participantes, que dizem respeito à compreensão das mulheres a respeito da vivencia da violência conjugal.

RESULTADOS E DISCUSSÃO:

Apresentaremos, a seguir, o perfil sócio-demográfico das mulheres, sujeitos da investigação. Tais sujeitos da pesquisa se encontravam em situação de violência por ocasião da investigação e prestando denúncia contra seus agressores. A elas foram atribuídos os seguintes nomes fictícios: Atena, Márcia, Rosa, Vitória, Socorro, Suelen, Priscila e Rosália:

A Idade variou entre 21 e 41 anos; Em relação ao estado civil, cinco eram solteiras, duas casadas e uma divorciada; Apenas uma não possuía filhos, tendo as demais uma média de dois filhos, variando de uma a cinco; A religião de cinco das participantes era a católica, sendo uma espírita e duas sem religião definida;Em relação à escolaridade, uma participante tinha o ensino superior concluído, duas concluíram o ensino médio, uma tinha o ensino médio incompleto, três o ensino fundamental incompleto e uma se declarou analfabeta; Em relação à profissão das participantes apontamos: uma comerciante, uma professora, uma cabeleireira, uma doméstica, uma vendedora ambulante, uma auxiliar operacional e duas do lar; Em relação ao grau de parentesco com os agressores, foram identificados: dois companheiros, um cônjuge, quatro ex-companheiros e um ex-cônjuge.  

A violência conjugal e sua relação com a tutela da diferença nas relações desiguais de gênero:

  O duplo da violência: dominação e possibilidade de desconstrução do modelo idealizado hegemonicamente de casamento

O mundo privado do lar e a instituição família, além de constituírem o lócus onde a violência conjugal ocorre, constituem, paradoxalmente, espaços onde as mulheres reafirmam identidades e realizações. O modelo idealizado de família e casamento revelou-se no discurso das mulheres participantes do estudo, constituindo uma particularidade que, além de tornar mais sérias as conseqüências negativas da violência, dificultam seu enfrentamento e contribuem para a manutenção da relação. Os depoimentos que seguem revelam o modelo idealizado de casamento e de família, fortemente presente na vida das mulheres:

“Você fica pensando: ‘Meu casamento vai durar porque o da minha mãe durou, o da minha tia durou, e isso vai terminar assim ,marido é assim mesmo e assim vai ficar’. Meu pensamento era o  de arrumar  minha casa, meu emprego, meu trabalho, que  essas coisas aconteciam num casamento, que um arranhão passava[...] Eu casei pra viver, construir uma família, organizei toda minha casa, trabalhei muito, comprei meus móveis tudo bem novinho, tudo bibelôzinho, era tudo organizado”.(Atena).

No depoimento em análise, a violência se revela como um fator “natural”, comum em um casamento, decorrente do poder outorgado socialmente aos homens, cuja naturalização é também incorporada pelas mulheres. Como tal, é banalizada e reduzida a uma conseqüência física “curável e passageira”, a um fenômeno do cotidiano, uma possibilidade sobre a qual nada se pode fazer. Assim, a violência aparece no imaginário social, mas ela é de fato uma conseqüência de um mecanismo ideológico que visa à manutenção e reprodução do poder masculino e de sua hegemonia como conseqüências diretas da instituição do casamento.

Estudiosos sobre a temática apontam que deixar às mulheres a definição de abuso leva à subestimação do nível de violência física e psicológica nas relações intimas. Isso nos revela, na prática, a naturalização da dominação e da violência masculina pelas próprias mulheres, constituindo uma das contradições que requer um enfrentamento por ser uma das grandes dificuldades no combate à violência5.

A permanência de muitas mulheres em relações em que se mantêm submissas ao poder masculino envolve múltiplos fatores, desde a dependência econômica e/ou afetiva do parceiro, até a supostas gratificações que a relação traz pela realização pessoal de manter o modelo idealizado de mulher6, que mantém a relação afetiva e a família nuclear, mesmo tendo que se anular como ser humano, para isso, conforme revela o depoimento de Rosália:

“Ele era altamente violento, agora ele era um marido muito bom, assim, financeiramente...não deixava faltar nada pra mim nem pros meninos, mas quando bebia era um Deus nos acuda,e era  todo final de semana. A brabeza dele era toda pro meu lado, se tivesse um problema descontava em cima de mim, ai me desencantei e me separei(...)mesmo gostando muito dele, eu era louca e apaixonada pelo meu marido, mas era pêa, todo final de semana, era pêa!”( Rosália)

Ao afirmar que, apesar de altamente violento, era um marido muito bom, Rosália demonstra, em seu depoimento, as contradições que perpassam as relações conjugais nas quais ocorrem as situações de violência. A provisão econômica e os sentimentos afetivos, denominados por Rosália de loucura e paixão, foram fatores mantenedores da relação até o momento em que ela se desencantou. Resgatando o significado do termo “desencantar” como “causar decepção , desiludir, tirar, desfazer, quebrar o encanto ou encantamento de: Com um beijo o príncipe desencantou a bela adormecida”7, percebemos a violência como um fenômeno que desfaz a ilusão, o “encantamento” dos contos de fadas, universo de significado que a hegemonia historicamente tem veiculado sobre as relações de gênero. O desencantamento, ou seja, a consciência sobre a realidade das relações entre os sexos pode ser fator que contribui para a desconstrução do modelo de casamento idealizado culturalmente pela sociedade,que, no discurso de Rosália se apresenta como tema que motivou um modo de pensar mais próximo de sua emancipação do dominador.

A decepção traduzida pelo desencantamento referido no depoimento de Rosália também é revelada nos discursos que seguem, demonstrando ser a violência um fenômeno que decepciona por desfazer a idealização hegemônica  que muitas mulheres introjetam sobre o casamento.

“Inocência, ingenuidade, imaturidade, porque eu pensava que casamento era uma coisa e na realidade é outra”. (Atena).

“Eu estou muito decepcionada. Eu nunca imaginei passar por uma situação dessas. Ele já vem me agredindo já faz quatro anos. Eu achava que podia resolver as coisas com conversa, só que a gente já não tem mais diálogo, e eu não quero mais! Chegou a um ponto que não dá mais”. (Priscila).

“Desgosto, eu chorava! Gritava [...]”. (Socorro).

“Eu jamais esperava isso dele. Ele é ignorante mas eu não esperava isso dele”. (Suelen).

O envolvimento emocional que permeia todas as relações da violência conjugal, exacerba os efeitos negativos desse fenômeno na vida das mulheres. Os sentimentos de decepção, perda, fracasso, mágoa e desgosto são conseqüências emocionais que repercutem na saúde mental, portanto, na vida dessas mulheres. A violência conjugal em si mesma constitui um fenômeno contraditório, uma vez que é uma relação de agressão no contexto de uma relação afetiva. Essa contradição gera sentimentos negativos e  é  reconhecida e revelada nos textos que seguem:

“É uma sensação horrível. Você achar que está dormindo com seu próprio inimigo, a pessoa que você só quer o bem, só quer encaminhar, você só quer que ele seja feliz junto com você e ele não quer! Ser tratada como um objeto, ser humilhada e no final das contas...(choro)”. (Vitória).

“Eu me magoei bastante, eu ficava pensando que ele gostava de mim e ao mesmo tempo gostando ele queria bater” (Márcia)

“Amor não existe, porque quem ama não faz isso, quem ama não maltrata de jeito nenhum” (Vitória)

As participantes do estudo reconhecem as contradições presentes na violência conjugal, porém, por estarem envolvidas afetivamente nessa relação contraditória, muitas delas têm dificuldades de compreender o fenômeno, o que constitui um obstáculo para seu enfrentamento. Essa dificuldade de compreensão foi mais uma vez revelada no depoimento de Rosa, que expressa uma complexa confusão de sentimentos, fazendo-a associar a violência a um comportamento patológico, para justificar sua permanência junto ao agressor e assim manter a relação:

“[...] Eu fico pensando: ‘meu Deus, amor não é! Paixão, piorou!’ Então, pra mim, isso é como se fosse uma doença. Eu não sei o que é isso e o porquê de eu estar agüentando isso. Às vezes eu tenho vontade de deixar ele, as vezes eu tenho pena, acho que por ter pena é que eu sofro ainda muito mais”.( Rosa)

O depoimento de Rosa também revela aspectos da construção da identidade de gênero feminina como cuidadora familiar, responsável pela felicidade e pelo bem-estar de todos, em detrimento de si própria.  O afeto que perpassa as relações e a manutenção da estrutura familiar em  função dos filhos se revelaram como fatores que justificam, influenciam fortemente a permanência das mulheres na convivência com seu agressor, como podemos observar nos depoimentos a seguir:

“Voltei pelo meu menino, não porque eu morro de amores por ele, porque vai acabando. Você vai tentando, sabe, tentando achar que você não acha um melhor do que ele. Tem hora que você diz assim ‘Não, ele tá mudando então eu vou dar uma chance’. Mas, também, é tanto homem ruim no mundo, mas pelo menos ele  é o pai do meu filho. A gente pensa assim: ‘não vou dar padrasto pro menino e tal’. Aí voltei. Ah! Quando eu voltei não mudou muita coisa não”. (Rosália).

Vou tentar. É a ultima chance da minha vida, porque eu poderia denunciar ele, mandar um camburão: ‘vá e tire ele da minha vida’, mas eu estou dando uma chance, porque eu quero que dê certo, que eu tenho uma filha. Se eu disser que eu vivo esses anos todinhos e não gosto dele eu tô mentindo, eu vou tentar”. (Rosa).

A construção social da identidade feminina prepara as mulheres para o casamento e a maternidade, desde a infância, como, socialmente, a principal responsável por garantir o equilíbrio e a manutenção da família nuclear ideologizada socialmente. Essa visão permanece veiculada pelas diversas instituições sociais, de modo que, nos discursos que emergem dos depoimentos acima, as mulheres permanecem na relação onde ocorre a violência ou retornam a ela, na busca de garantir a família nuclear, o equilíbrio emocional dos filhos, bem como a realização feminina através do casamento.

Autores confirmaram em seus estudos que a violência que se estabelece nas relações conjugais é recorrente , multifacetada e tende a se agravar com o tempo. Essa interpretação pode ser confirmada nos depoimentos que seguem2.

“Ele me agredia com cabo de vassoura, tora de pau, faca peixeira, pegava tudo pra me furar. Uma vez ele me deu um murro que eu fiquei virando meus olhos! Outra vez deu um murro nos meus ouvidos que eu passei três dias com eles doendo. E hoje eu vim aqui dar queixa, mas eu já venho sofrendo com ele aqui há muito tempo ”. (Socorro)

“Fiquei vivendo isso durante três anos” (Márcia)

“Não é de hoje. São 18 anos que eu venho tentando, lutando, batalhando e, pra uma pessoa não me valorizar, pra querer tá me esculhambando, me maltratando” (Rosa)

 Através dos depoimentos acima apresentados, podemos confirmar que a opressão das mulheres pela violência conjugal é recorrente. Além dos fatores já citados anteriormente, a relação violenta é também mantida, invisibilizada e silenciada pelos sentimentos de medo e vergonha perante os estereótipos culturais e atitudes sociais negativas a respeito da violência.

“E é a primeira vez que eu venho pra delegacia, porque às vezes a gente tem vergonha de dizer ... de viver em porta de delegacia, de chegar uma viatura na casa da gente.” ( Rosa).

“A primeira vez que você é agredida, você tem vergonha de dizer que você foi agredida. Aí da segunda vez você tem mais vergonha ainda, porque você já foi agredida a primeira vez, aí pensa que a segunda e a terceira não vai mais acontecer e sempre fica na mesmice”. (Atena).

Os depoimentos revelam sentimentos que permeiam a vida das mulheres em situação de violência, alimentando e agravando a opressão. A primeiras conseqüência da violência contra as mulheres, seja qual for sua forma de manifestação, é a vergonha e a culpabilidade. Vergonha do que sofreram, como a invasão de sua privacidade e negação de sua liberdade e integridade, e culpabilidade por não terem sido capazes de resistir suficientemente8.

Os discursos das participantes revelaram, nos temas afeto e medo, fatores que dificultaram sua libertação da relação de opressão, sendo que, após sua conscientização é reconhecida a necessidade de reação por parte das mulheres. Vitória reconhece a tentativa de manutenção do modelo idealizado de mulher como fator que permite e invisibiliza a violência, fazendo com que as mulheres permaneçam na relação. As desigualdades de gênero existentes na sociedade e na relação conjugal são reconhecidas pela mulher, sujeito desse discurso, que afirma ser a igualdade um direito do ser humano, que não é posto em prática na realidade das mulheres. Vitória também revela um discurso sobre a necessidade de conscientização das mulheres, necessária para se combater a desigualdade de gênero, apontando a  educação como caminho para que essa transformação ocorra:

“Eu acho que a culpa é nossa! Falta diálogo. Nós, mulheres, a gente tem mania de querer maquiar a coisa. Às vezes você acha  que representa uma coisa que não é, pra ser boa, porque a gente quer ser a mulher ideal. Nem sempre é isso que eles procuram. A gente tem que se impor, a gente tem que ter mais segurança, a gente tem que saber o que quer, esse negócio de ‘mulher nasceu pra ser esposa e aceitar tudo’, não! Por que direitos iguais só pra eles, né? A gente não tem. Os direitos iguais que a gente tem agora é pagar pensão pra eles, se matar de trabalhar, porque é o que acontece e, no final das contas. Eles podem fazer o que quer, mandar em casa, ter duas, três mulheres... e a gente não pode. A gente tem que tá ali pertinho. A educação da mulher brasileira tem que melhorar”. (vitória).

Diferentemente do discurso de Vitória, os depoimentos que seguem, revelam a naturalização da violência e da agressividade como fatores inerentes ao sexo masculino. Observamos que, apesar do abandono da relação, a violência e a desigualdade não são compreendidas pelas das mulheres, sendo associadas a sentimentos negativos da personalidade do homem, sentimentos, que, no depoimento de Socorro, manifestam um discurso sobre a desigualdade  em relação às mulheres, que nos remete à misogenia.

“Ele dava em mim porque é ruim e cachaceiro e violento  pro lado de mulher, ele só é violento pro lado de mulher [...]. É porque ele é violento mesmo. Ele é violento pra o meu lado mesmo. Não sei porque ele tem raiva de mim, não sei...” (Socorro).

“Geralmente acontece isso. Eu acho que é ruindade do homem mesmo”.(Suelen)

Através dos depoimentos que veicularam os discursos até aqui apresentados, podemos confirmar que a violência conjugal é recorrente na vida das mulheres, que suportam a opressão durante muito tempo, na esperança de transformação e tentativa de manutenção do modelo idealizado de mulher. As exigências sociais em torno do casamento, da maternidade e da família; os sentimentos afetivos próprios da relação conjugal e a vergonha devido à atitude social negativa em torno da violência se revelaram como temas e como fatores que dificultam o seu enfrentamento por parte das vítimas. Algumas mulheres, em seus discursos, reconheceram a desigualdade de gênero e as contradições decorrentes da relação conjugal que resulta em violência. Outras, identificaram a violência como um fenômeno “natural”, decorrente da agressividade própria do sexo masculino, por isso mesmo, sem condições para sua compreensão enquanto mulher.

 Sendo assim, confirmamos a relação conjugal como relação contraditória da qual fazem parte a agressividade, os afetos e as idealizações. Identificamos que a necessidade de conscientização, compreensão e superação dessas contradições pelas mulheres é um caminho fundamental para a libertação feminina e para o enfrentamento dessa batalha que elas travam no cotidiano de sua relação conjugal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 A violência contra a mulher pode ser explicada como um fenômeno que se constitui a partir da naturalização da desigualdade entre os sexos, que se assenta nas categorias hierárquicas, historicamente construídas como um dos mecanismos ideológicos, capaz de legitimar o status quo, entre os quais encontram-se as classificações sociais e, aqui, a classificação sexual.

A classificação sexual permite que uma das partes do contrato conjugal exerça a dominação sobre a outra parte. Na dominação entre os sexos, na cultura sobretudo latino-americana, o sexo masculino exerce a dominação física e psíquica, com legitimidade social. Essa dominação, a princípio imposta pela maior força física, é ampliada para as dimensões psicológicas e tem o reconhecimento cultural manifesto no respeito ao espaço privado das relações conjugais que se expressa até nos provérbios populares, como o que afirma: “Em vida de marido e mulher, ninguém deve meter a colher”. Contudo, essa dominação inferioriza as mulheres desqualificando o “outro” da relação como algo “natural” e insuperavelmente inferior, porque biologicamente diferente.

Nesse sentido, a violência contra a mulher, não apenas a violência física, é algo que não se revela, à primeira vista, porque se reveste de significados subjetivos, sobretudo porque, como mecanismo ideológico, parece não estar diretamente ligado à vontade humana, mas ligado a uma “natureza” que impossibilita a transformação do fenômeno. Contudo, o exame do problema tem revelado que a igualdade humana, bem como a desigualdade são construções sociais e humanas que podem ser transformadas e que, por seu alto teor qualitativo, fazem parecer algo que não pode ser mudado.

A construção social da identidade feminina definiu e impôs, por meio da ideologia, o modelo idealizado de mulher, que afirma suas realizações no casamento, lugar social onde lhe é destinado o papel de cuidadora familiar. Esse estudo revelou que este ideal é significativamente reproduzido pelas instituições e introjetado pelas mulheres, mas, ao mesmo tempo, a realidade do cotidiano da violência tem contribuído para a desconstrução do modelo idealizado de família e da relação conjugal, que gera sentimentos traduzidos como decepção, pela maioria das participantes.

Assim, a violência conjugal, nesse estudo, pôde ser compreendida como um pólo oposto de um fenômeno contraditório, por ocorrer em uma relação permeada também por afetos. Os sentimentos afetivos, juntamente com o modelo idealizado de mulher, esposa e mãe, revelaram-se nos discursos como fortes contradições que dificultam a libertação das mulheres da relação violenta e de sua situação de opressão, assim como sua compreensão desse fenômeno. Tais contradições permitem que as mulheres permaneçam na convivência com seus agressores, o que justifica ser a violência conjugal um fenômeno recorrente e multifacetado, característica que nos foi confirmada nos depoimentos das participantes. A violência na relação conjugal foi reconhecida, por algumas participantes, como fator resultante de uma cultura machista, que requer seu enfrentamento através da conscientização das mulheres. Por outro lado, algumas participantes se referiram à violência como um fenômeno natural, inerente à identidade masculina.

Finalmente, no sentido de contribuir para repensar o modo de cuidar da mulher em situação de violência doméstica, é importante que os profissionais que lidam com essas mulheres produzam novas categorias e apropriem-se das já existentes nas diversas áreas do conhecimento, sobretudo nas ciências sociais, para que o princípio da integralidade da assistência à saúde do SUS possa ser um produto que possa ser alcançado, também, pelas mulheres vítimas de violência doméstica. Isso significa pensar o cuidado em saúde, não apenas como aplicação de um saber instrumental ou técnico especializado da razão tecnológica instrumental hegemônica, que não permite uma compreensão do fenômeno, mas, uma explicação limitada do processo de viver, adoecer e morrer. A possibilidade de um cuidado de saúde ampliado para as mulheres em situação de violência conjugal implica considerar a saúde-doença como um processo dinâmico relacionado aos diferentes universos de significação9, além da valorização de qualidades como solidariedade, confiança, transformação dos valores hegemonicamente defendidos, relações sociais igualitárias e reconhecimento das diferenças, para que as práticas profissionais possam ser instrumentos com possibilidades de contribuir para a emancipação social.

REFERENCIAS

1 Organizacao Panamericana de Saúde. Informe mundial sobre la violência y la salud: resumem. Organizacion Mundial de la Salud, Washington, DC; 2002.

2 Dantas-berguer SM , Giffin K. A violência nas relações de conjugalidade: invisibilidade e banalização da violência sexual? Cad de saúde pública. Rio de Janeiro ; 2005; 21: 417-425.

3 Fiorin JL. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática; 2006

 4 Guedes RN. Violência conjugal: problematizando a opressão das mulheres vitimizadas sob olhar de gênero. In: Revista Eletrônica de Enfermagem [ serial on line] 2007, vol 2. Avaliable in: http://www.fen.ufg.br/revista/v9/n2/sumario.htm.

5 Heise L. Gender-based abuse: The global epidemic. Cadernos de saúde pública, Rio de Janeiro, v.10.135-145. 1994. Suplemento.

6 Guedes RN, Silva ATMC, Coelho EAC. Woman life and health: arguing the problems of the reality with professionals of the care. In: Online Brazilian Journal of Nursing [online] 2007; 6:2. Available in: http://www.uff.br/objnursing/index.php/nursing/article/view/j.1676-4285.2007.712/200.

7 Holanda AB. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

8 Gomes R, Minayo MCS, Silva CFR.Violência contra a mulher: uma questão transcultural e transnacional das relações de gênero. In: Ministério da Saúde. Impacto da violência na saúde dos brasileiros. Brasília, DF, 2005. p.118-140.

9 Fonseca RMGS. Equidade de gênero e saúde das mulheres. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, 2005; 39 suppl 4: 450-459. 

Contribuição dos autores:
-Concepção e desenho: Rebeca Nunes Guedes
-Análise e interpretação: Rebeca Nunes Guedes, Ana Tereza Medeiros Cavalcanti da Silva, Edméia de Almeida Cardoso Coelho
-Escrita do artigo: Rebeca Nunes Guedes, Ana Tereza Medeiros Cavalcanti da Silva
-Revisão crítica do artigo: Ana Tereza Medeiros Cavalcanti da Silva, Edméia de Almeida Cardoso Coelho, César Cavalcanti da Silva
-Aprovação final do artigo: Ana Tereza Medeiros Cavalcanti da Silva
-Colheita de dados: Rebeca Nunes Guedes, Waglânia de Mendonça Faustino e Freitas
-Provisão de pacientes, materiais ou recursos: Rebeca Nunes Guedes, Ana Tereza Medeiros Cavalcanti da Silva
-Pesquisa bibliográfica: Rebeca Nunes Guedes, Ana Tereza Medeiros Cavalcanti da Silva, César Cavalcanti da Silva, Edméia de Almeida Cardoso Coelho, Waglania de Mendonça Faustino e Freitas
 

Endereço para correspondência : Rebeca Nunes Guedes, Rua Severino Nicolau de Melo, 582 Apto 1201 B/ Bessa 58036260; rebecanunesguedes@gmail.com
Apoio: CAPES
Notas : O artigo trata-se de um desdobramento do estudo:
Guedes RN. Violência conjugal: problematizando a opressão das mulheres vitimizadas sob olhar de gênero. [Dissertação de Mestrado] João Pessoa: Enfermagem/ Universidade Federal da Paraíba; 2006. Defesa e Aprovação em 17 de Novembro de 2006.

 Received Aug 28, 2007
Revised Oct 2, 2007
Accepted Oct 15, 2007