The daily living experience of nursing woman-workers that display work related musculoskeletal disorders (WRMD) at optical heideggerian existential phenomenology
O cotidiano de trabalhadoras de enfermagem acometidas por distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho (DORT) sob a luz da fenomenologia heideggeriana
Patricia Campos Leite1; Miriam Aparecida Barbosa Merighi2; Arlete Silva3
1 Centro Universitário Nove de Julho e Centro Universitário Ítalo Brasileiro . São Paulo (SP); 2 Escola de Enfermagem da Universidade São Paulo (EEUSP). São Paulo (SP); 3 Universidade Guarulhos (UnG). Guarulhos, São Paulo (SP).
ABSTRACT: In this qualitative study of phenomenologic approach, I have searched for understanding the living experience of nursing woman-workers that display work related musculoskeletal disorders (WRMD). The interviews were carried out with six women who were living the WRMD, four being auxiliary and two technicians in nursing. In order to disclose the essence of the phenomenon being a nursing woman-worker living the WRMD, I have developed the following guiding question: I would like you to tell me about your experience such as what it means to you to be a woman, worker in nursing enduring a work related musculoskeletal disorders? All questions were analyzed under the enlightenment of the philosophical referential of Martin Heidegger. The results of this study display the trajectory went through by the woman-workers that became sick due to WRMD, and so glimmering ways to an authentic care by a chronic and incapacitating disease of preoccupying character public health in Brazil.
Keywords: women’s health, cumulative trauma disorders, occupational health, qualitative research, women, working (nursing).
RESUMO: Este estudo qualitativo de abordagem fenomenológica, buscou desvelar o cotidiano de mulheres trabalhadoras de enfermagem que apresentam distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho (DORT). Participaram seis mulheres trabalhadoras de enfermagem (quatro auxiliares e duas técnicas de enfermagem) portadoras de DORT, cujas entrevistas foram analisadas segundo o referencial de Martin Heidegger. Para desvelar a essência do fenômeno ser mulher trabalhadora de enfermagem vivenciando os DORT foi elaborada a seguinte questão norteadora: Gostaria que você me contasse a sua experiência, como é para você ser mulher, trabalhadora de enfermagem convivendo com um distúrbio osteomuscular relacionado ao trabalho? Os resultados desvelaram o cotidiano vivido pelas trabalhadoras que adoecem por DORT, mediado pela trajetória da doença em suas vidas, vislumbrando assim caminhos para um cuidado autêntico às mulheres acometidas por uma doença crônica e incapacitante, de caráter preocupante à saúde pública no Brasil.
Palavras-chave: saúde da mulher, transtornos traumáticos cumulativos, saúde ocupacional, pesquisa fenomenológica, trabalho feminino (enfermagem)
INQUIETAÇÕES E OBJETIVO DO ESTUDO
A organização do trabalho tem sido marcada por uma série de situações próprias advindas das novas formas de produção do mundo capitalista, as quais se instalaram em toda a prestação de serviços, caracterizadas especialmente por fragmentação e automatização de tarefas associadas às exigências relativas à qualidade. O advento dos novos processos de produção desencadeia não apenas a maior sobrecarga de trabalho originária da redução de postos e número de pessoal empregado, mas o aviltamento das tarefas e intensificação do próprio ritmo de trabalho(1).
As mudanças ocorridas nos postos de trabalho atingem também as instituições hospitalares, onde é possível observar que embora seja o local onde mais da metade dos trabalhadores relacione-se diretamente com o público, educando e cuidando dos aspectos de sua saúde, o hospital não exime os seus trabalhadores do adoecimento(2,3).
As experiências advindas da nossa trajetória profissional nos aproximaram do processo saúde-doença de mulheres trabalhadoras de enfermagem que vivenciam manifestações dolorosas do aparelho osteomuscular, evidenciadas por suas queixas e incapacidade misturadas à sofrimento e desilusão com a profissão.
Vale destacar que embora muitas destas doenças estejam relacionadas ao trabalho de enfermagem, nem sempre são reconhecidas ou apontadas como tal, já que na maioria das vezes as atividades desempenhadas por essas mulheres no lar, ou seja, as tarefas domésticas, também demandam um desgaste do aparelho osteomuscular, dificultando a comprovação da relação da doença com o trabalho.
No Brasil, desde o início da década de 1980, alguns sindicatos de trabalhadores da área de processamento de dados começaram a denunciar a ocorrência de lesões por esforços repetitivos (4).
Em 1992, a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo publicou a Resolução SS197/92, introduzindo a terminologia LER (lesões por esforços repetitivos), após amplo processo de discussão entre os mais variados segmentos sociais(5).
A mudança de denominação da doença para Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (DORT), só ocorreu em 1997, proposta pelo Instituto Nacional de Seguridade Nacional (INSS), na revisão da Norma Técnica de avaliação para incapacidade de 1993, introduzindo novos elementos na análise da perícia médica do INSS, permitindo o reconhecimento de maior variedade de entidades mórbidas, bem definidas ou não, causadas pela interação dos mais diversos fatores laborais, retirando a falsa idéia de que o quadro clínico se deve apenas a um fator de risco, ou que haja necessariamente uma lesão orgânica restrita a uma só localização (5,6).
Os DORT são um conjunto de disfunções que atingem os músculos, nervos e ligamentos dos membros superiores, região cervical e mais raramente membros inferiores, relacionados às atividades laborais que se caracterizam por repetitividade e excesso de movimentos, pressão por parte das chefias para manter a produtividade, mobiliário e equipamentos inadequados, representando quase 70% do conjunto de doenças profissionais registradas no Brasil, o que os torna um problema grave de saúde pública(7).
Nos EUA, os DORT alcançaram vulto nos primeiros anos da década de 1980, sendo que em 1998 o número de acometidos chegava a 650 mil, representando 50% de todas as doenças do trabalho notificadas e 1/3 das ausências anuais, gerando um custo aproximado entre 15 e 20 bilhões de dólares por ano (8).
Atualmente, são as patologias mais freqüentes no mundo dos trabalhadores, embora sua prevalência seja muito superior aos dados apontados nas estatísticas oficiais, pois, além da dificuldade de diagnóstico, muitos casos não são incorporados nessas estatísticas como os indivíduos portadores da lesão que são trabalhadores autônomos, portanto, não sujeitos às legislações específicas (9).
No âmbito hospitalar, ressalta-se que os problemas osteomusculares têm assumido grande relevância no modo de adoecer das mulheres trabalhadoras, constituindo-se uma das queixas mais freqüentes e maior causa de afastamento das profissionais de enfermagem do trabalho (10-14).
As precárias condições de trabalho, a sobrecarga de serviço decorrente das jornadas duplas, com atividades profissionais e domésticas, o número insuficiente de pessoal de enfermagem, assim como os baixos salários representam algumas das condições inadequadas no trabalho presentes no cotidiano dos profissionais de enfermagem.
No tocante ao gênero, vale salientar que aspectos anatômicos, tais como a reduzida massa muscular, fatores hormonais, o uso de contraceptivos, podem colaborar para que os DORT incidam predominantemente nas mulheres. Porém, mesmo que vários fatores intervenham na formação dos DORT, o seu acometimento quantitativo maior se expressa, sobretudo, pela mulher trabalhadora, fato diretamente relacionado, não a uma suposta propensão biológica, mas ao papel e à forma de inserção da mulher nas divisões social e sexual do trabalho (1,5).
As considerações acima mencionadas, a prática profissional das pesquisadoras, e a aproximação com a temática deste estudo, trazem-nos algumas inquietações: Como as mulheres trabalhadoras de enfermagem portadoras de DORT vivem o processo de doença? De que maneira elas enfrentam a dor, a incapacidade e os afastamentos do trabalho decorrentes dos DORT ? Essas trabalhadoras sentem-se realmente amparadas quanto à legislação e quanto aos tratamentos?
A preocupação com a mulher trabalhadora de enfermagem enquanto ser humano que experiencia o adoecimento, a dor, a incapacidade, foi motivação para a realização desta pesquisa. Baseando-se no respeito não somente à profissional da equipe de enfermagem, mas à pessoa humana, a mulher que experiencia o DORT, desenvolvemos o presente estudo que teve como objetivo: compreender como é ser mulher trabalhadora de enfermagem vivenciando os distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho.
APRESENTANDO O REFERENCIAL TEÓRICO METODOLÓGICO
Para compreender o fenômeno ser mulher trabalhadora de enfermagem vivenciando os DORT, optamos pelo método qualitativo fenomenológico, pois acreditamos que somente indo em busca deste fenômeno, ao considerar o ser que a experiencia, seja possível compreender o significado real da experiência, traduzindo-o em sua verdadeira essência. A pesquisa fenomenológica representa um método de pesquisa muito adequado aos estudos na área de enfermagem, pois nos convoca a retomarmos o caminho qualitativo da existência, a redescobrirmos o sentido de ser humano no mundo, o sentido de nossa existência, possibilitando a compreensão do significado das experiências relativas ao processo saúde-doença vividas nas diversas fases do ciclo vital, ou seja, a compreensão do homem em sua totalidade existêncial (15,16)
Considerando o fenômeno a ser desvelado, partimos da premissa que a mulher trabalhadora de enfermagem que vivencia os DORT, enfrenta inevitáveis transformações no seu mundo vida, explicitadas pela dor, pelas dificuldades de movimentação, pela incapacidade, características inerentes ao processo fisiopatológico da doença. Ao desejar compreender como é para a mulher trabalhadora de enfermagem vivenciar os DORT, percebemos que seria necessário compreendê-la, olhando para a sua forma de ser e de interagir com o mundo e com as coisas do mundo.
Optamos pelo referencial da Fenomenologia Existencial de Martin Heidegger por acreditarmos que seria o melhor caminho para iluminar esta descoberta, pois as estruturas existenciais por ele desenvolvidas convidam-nos a repensar na existência do ser, revendo os significados atribuídos à saúde, ao adoecimento, às limitações e à própria vida, considerando que nos momentos de maior fragilidade, o ser humano pode resgatar o seu projeto de ser-si-mesmo ou abandoná-lo, recusando as possibilidades que a existência humana lhe reserva.
PERCORRENDO O CAMINHO METODOLÓGICO
A pesquisa teve como sujeitos mulheres trabalhadores de enfermagem que estavam vivenciando os DORT, independente da idade, área de atuação e tempo de experiência profissional, por acreditar que os mesmos não teriam influência na experiência de conviver com a doença. A escolha dos sujeitos foi definida pelo conhecimento de uma das pesquisadoras sobre a existência de trabalhadoras que em ocasião anterior trabalharam com a mesma em uma determinada instituição hospitalar e também pelo acesso aos dados do Serviço de Assistência Médica e Social ao Servidor (SAMSS) de um hospital escola situado na região oeste do município de São Paulo.
Para a coleta de dados deste estudo não se fez necessário definir um local, pois a região de inquérito foi a própria situação em que o fenômeno estava ocorrendo, ou seja, o mundo vida de mulheres que trabalham na enfermagem e vivenciam os DORT.
Entrevistamos quatro auxiliares e duas técnicas de enfermagem. Três das auxiliares de enfermagem atuavam em um hospital escola situado na zona oeste do município de São Paulo e as demais trabalhadoras de enfermagem em um hospital particular da zona sul do mesmo município. As áreas de atuação das trabalhadoras eram clínicas cirúrgicas de ortopedia, geriatria, maternidade e central de material e esterilização. Julgamos importante elucidar esses dados para melhor caracterização dos sujeitos estudados, no entanto, esses fatores não interferiram nos resultados do estudo .
Antecedendo a coleta dos discursos, o projeto desta pesquisa foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (Protocolo 405/2004) e pela Comissão de Ética para Análise de Projetos de Pesquisa da Diretoria Clínica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Protocolo 499/2005).
Considerando o que preconiza a Resolução 196/96, sobre as Diretrizes e Normas Regulamentadoras que trata de pesquisa com seres humanos, as mulheres entrevistadas foram esclarecidas sobre o objetivo da pesquisa bem como sobre a manutenção do sigilo, o anonimato de sua pessoa e do direito de participar ou não do estudo. Após tais esclarecimentos foi solicitado a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
As entrevistas foram agendadas de acordo com a disponibilidade das mulheres e foram realizadas no período compreendido entre julho de 2004 e julho de 2005, possibilitando maior liberdade e o mínimo de interferência na realização dos encontros, fatores essenciais na pesquisa fenomenológica. A identidade das mulheres foi preservada, utilizando-se nomes fictícios para a identificação de cada discurso colhido. Para a realização das entrevistas utilizamos a seguinte questão norteadora: Gostaria que você me contasse a sua experiência, como é para você ser mulher, trabalhadora de enfermagem convivendo com um distúrbio osteomuscular relacionado ao trabalho?
Os discursos foram gravados em fita cassete e imediatamente após as entrevistas, realizou-se a transcrição dos discursos, onde procuramos preservar a seqüência das idéias, a linguagem, as pausas e as repetições realizadas pelas mulheres trabalhadoras. Demo-nos por satisfeitas no momento em que os discursos delinearam a vivência das mulheres, mostrando sinais do desvelamento do fenômeno ser mulher trabalhadora de enfermagem vivenciando os DORT.
Para proceder a análise dos discursos percorremos o caminho preconizado por Josgrilberg(17), que propõe uma seqüência de etapas para “trabalhar com os discursos”, permitindo uma melhor compreensão do fenômeno a ser desvelado. Este autor propõe que os discursos de cada sujeito sejam transcritos na íntegra, para que posteriormente seja feita uma leitura e re-leitura, em busca das Unidades de Sentido (US), ou seja, dos trechos relevantes que aparecem em cada um dos discursos, que apresentam significado acerca do fenômeno investigado. Em seguida, o agrupamento e categorização prévia das US a partir dos aspectos semelhantes ou seja, da convergência das vivências. Finalmente procede-se uma re-leitura a partir de categorias existenciais contidas no referencial filosófico adotado, as chamadas Unificações Ontológicas, exigindo, portanto, um domínio prévio do referencial filosófico adotado, o qual servirá de pano de fundo para a sua análise compreensiva.
Com esse olhar, partindo das categorias existenciais elucidadas por Heidegger, foram identificadas quatro Unificações Ontológicas, que desvelaram o ser mulher trabalhadora de enfermagem vivenciando os DORT: O ser-no-mundo vivenciando os DORT, a trabalhadora de enfermagem vivenciando a ambiguidade da solicitude, a angústia por vivenciar os DORT e a transcendência da trabalhadora de enfermagem vivenciando os DORT. Destacaremos neste momento, a unificação ontológica "O ser-no-mundo vivenciando os DORT", que desvelou o cotidiano de mulheres trabalhadoras de enfermagem vivenciando a doença e que será apresentada e discutida tendo como fio condutor o pensamento do filósofo e fenomenólogo Martim Heidegger.
O ser-no- mundo vivenciando os DORT
Procuramos compreender em cada uma das mulheres, de que forma elas buscaram o sentido do ser durante o processo de adoecimento. Percebemos que, embora a trajetória da doença seja muito semelhante para todas elas, o enfrentamento e as estratégias para conviver com a doença representam um processo peculiar de cada ser, que envolve o seu ser-no-mundo e todas as relações estabelecidas no seu mundo-vida.
Para Heidegger (18), o ser-no-mundo é uma constituição necessária da presença, na qual a presença nunca é primeiro um ente que algumas vezes tem gana de assumir uma relação com o mundo; esse assumir relações com o mundo só é possível porque a presença, sendo-no-mundo, é como é, ou seja, ser-no-mundo é a estrutura essencial da presença.
À medida que a trabalhadora de enfermagem vivencia os DORT, depara-se com uma multiplicidade de transformações no seu cotidiano, que revelam nova forma de ser-no-mundo, especialmente pela maneira singular de reagir às diversas situações do mundo.
A vivência dos DORT representa uma alteração no processo saúde-doença da mulher trabalhadora de enfermagem, trazendo-lhe novas experiências, pois, no momento em que surgem os primeiros sintomas da doença, ou mesmo com o seu agravamento, a trabalhadora estabelece novas relações com o mundo:
... então a partir do momento que eu descobri, que foi diagnosticado essa dor, essa doença, nunca mais eu fiquei sem dor ... [ ] ... Quando você levanta de manhã, é muito ruim, você tem a sensação de que seu braço vai cair, é uma dor assim que você não consegue dobrar, não consegue esticar, a mão fica inchada, os dedos ... não consegue fechar, principalmente o polegar e o indicador que é o meu caso, polegar e indicador, o punho, você não consegue dobrar o punho... (Eliete)
...E quando eu soube o diagnóstico, eu expliquei para ele, mas me dói tanto, mas é uma dor violenta...Ô dorzinha viu, dá vontade... parece que tem uma cãibra, fica aquela dor, aquela dor...(Inês)
Ser-no-mundo vivenciando os DORT é, sobretudo experimentar a dor, que nem sempre está relacionada à execução de uma atividade, já que com o agravamento da doença tende a apresentar-se de forma mais intensa e diária, inclusive durante o repouso, fazendo com que o mundo dessas mulheres seja visto e vivido sob outro olhar em decorrência das transformações ocorridas no seu corpo e na sua maneira de existir.
Este mundo, no qual o ser humano existe, é anterior ao mundo espacial, topográfico, são as múltiplas maneiras que o homem vive e pode viver, os vários modos como ele se relaciona e atua com os entes que encontra e a ele se apresentam (18).
Ao vivenciar os DORT, as mulheres não convivem apenas com a dor, que é um processo complexo de reações bioquímicas, mas vivenciam também alterações nos padrões de sono e repouso, já que freqüentemente elas apresentam insônia como conseqüência da dor:
...eu passei assim também muitas noites sem dormir, de noite não sei o que acontecia, esfriava o sangue, mas me doía, mas me doía...eu não conseguia dormir de um lado, não conseguia dormir do outro, as costas doía, eu cheguei num ponto assim que estava tudo doendo, tudo pra mim doía, aí eu tomava medicamentos... e dormia com dor, amanhecia, levantava da cama meus ossos estralavam ...(Inês)
O cotidiano das mulheres trabalhadoras de enfermagem acometidas por DORT revela intensas mudanças na forma de ser-no-mundo. Essas mudanças decorrem primeiramente das manifestações dolorosas acentuadas que interferem na vida das mulheres causando-lhes muito sofrimento. As dores intensas, as noites sem dormir, a irritabilidade e o mau-humor surgidos pelas dores intensas e pelas noites sem dormir, a dificuldade encontrada em relação a tratamentos efetivos que amenizem os sintomas, afetam o cotidiano vivencial das trabalhadoras, desencadeando muita irritabilidade, o que interfere na convivência das trabalhadoras especialmente com as pessoas mais próximas, no caso seus familiares, como relata Laura:
...você fica irritada, eu fico num nervoso que eu acabo descontando no marido, descontando no meu filho..e fico irritada (Laura)
...eu amanhecia e anoitecia falando tô com dor, tô com dor, dói aqui, dói ali, choramingando, o tempo todo né. Amanhecia, dormia, gemia a noite toda (risos). Eu me tornei uma canseira...(Marília)
Chamou atenção nos discursos das mulheres que a dor possui extrema relevância no mundo vida das trabalhadoras de enfermagem, portanto, é evidente que o uso de medicamentos faz-se necessário para que seja possível conviver melhor com as manifestações dolorosas. No entanto, embora utilizem um arsenal medicamentoso, dificilmente a dor cessa completamente e ainda, a cronificação da doença e o uso diário de fármacos ocasionam inúmeras alterações físicas relacionadas aos efeitos colaterais dos medicamentos, tais como ganho de peso, epigastralgia, entre outros, como evidenciam as verbalizações que seguem:
...É difícil, é difícil porque tem dias que eu acordo cheia de dor, então aquele dia pra mim é assim terrível, porque você toma a medicação, não alivia e sabe aquela dorzinha assim fina, enjoada... (Laura)
... eu tomo muito muito antiinflamatório para poder resistir...cada médico que você vai é um antiinflamatório diferente com isso você acaba ficando doente do estômago...(Eliete)
Para as trabalhadoras, a vivência dos DORT é experimentar um mundo novo, um mundo repleto de alterações físicas, marcadas pela dor, por efeitos colaterais dos medicamentos e mais, por dificuldades físicas próprias do aparelho osteomuscular. Após o início da sintomatologia e à medida que a doença se agrava, a rotina de vida dessas mulheres apresenta uma série de modificações, caracterizadas principalmente por limitações nos movimentos e por sensação de incapacidade para inúmeras atividades do seu dia-a-dia.
...e depois da lesão aqui estabelecida, né, eu já não podia fazer quase nada mais, eu não podia pegar uma caixa, erguer uma caixa, descer caixas de prateleira [ ]...eu já não conseguia exercer quase mais nada na Central de Materiais... (Marília)
As limitações geradas pelos DORT também modificaram a rotina nas atividades domésticas, como percebemos a seguir:
...eu não posso mais fazer faxina na minha casa em hipótese nenhuma...passar roupa...nem pensar, nunca, porque o ferro é pesado...(Inês)
[ ]....o sentimento assim, de incapacidade, que você não tá conseguindo mais fazer aquelas atividades tão normais, que eram tão corriqueiras e de repente você não consegue fazer, não consegue esfregar um pano, não consegue fazer nada... (Eliete).
Heidegger (18) menciona que na cotidianidade, o significado de muitas coisas só aparece para o ser quando algo lhe falta, ou seja, observei nos relatos que, estando doente e vivenciando todos os comprometimentos físicos, as mulheres trabalhadoras de enfermagem iniciam um processo de se perceberem no mundo assim como estão, convivendo com suas diversas impossibilidades.
Cada mulher experimenta a perda das habilidades físicas de forma peculiar, porém ficou evidenciado a dimensão das limitações físicas, decorrentes dos DORT, que as tornaram incapacitadas não somente para o trabalho, como também para realização de atividades mais simples relacionadas ao seu próprio auto-cuidado:
...Eu não me sinto mais a mesma pessoa, até para vestir uma roupa eu sinto dificuldade, então seria fácil, eu saio deste trabalho e arrumo outro, mas não é bem assim, não tem mais jeito, e eu nunca tive nenhum problema de saúde, adquiri isso aqui, mas você vai fazer qualquer tipo de força ou peso e você sente então é uma coisa horrível, não tem condições, então é difícil...(Inês)
...pois até pentear o cabelo dói o braço... muitas vezes você não consegue nem tomar banho direito, você quer lavar o cabelo, você não consegue levantar o braço de tanto que dói... Outras vezes, você quer calçar um sapato, se você precisa fazer alguma força, você não consegue, não consegue carregar até uma sacola que você, coisa que nem um livro, nada você consegue carregar de tanta dor...(Eliete)
Os discursos revelaram uma procura tardia por tratamento, nos quais as mulheres relatam a preocupação de que o seu afastamento do trabalho pudesse prejudicar a dinâmica da unidade hospitalar, sobrecarregando os colegas da equipe de enfermagem e muitas vezes interferindo na qualidade da assistência prestada aos clientes.
...eu acho assim, não quero ser melhor que ninguém, mas a gente faz falta no setor, né, a escassez de funcionário, a gente faz falta...(Júlia)
...eu continuei trabalhando, fazia fisioterapia, usava a órtese e continuava trabalhando, tanto é que daí que a menina falou: -Mas, Neide, como é que você vai continuar trabalhando assim?...(Neide)
O cotidiano das trabalhadoras acometidas por DORT revela a luta para manterem ao menos a sua rotina de trabalho, onde mesmo sentindo dor, percebendo-se impossibilitada para trabalhar, elas permanecem no setor, fazendo o uso de fármacos para resistir e atuar junto à equipe de enfermagem:
...mas se são coisas iguais a de hoje, hoje eu to de plantão 12 horas, eu vou tomar um remédio e a dor vai desaparecer, aí eu tomo outro à noite e amanhã eu entro à tarde eu sei que vou estar bem melhor... (Júlia)
...mas não tinha funcionário e a gente sabe que aqui no hospital tem desfalque de funcionário, então...fica difícil. Então, a gente vai se sobrecarregando com o tempo, não é culpa da chefia...(Inês)
O corpo é instrínseco à presença, pois, enquanto um ser-no-mundo, é por intermédio do corpo que são estabelecidas as relações. Por meio do corpo, dos gestos, atitudes, é possível aproximar-se ou afastar-se dos outros (18).
Na verdade, por menor esclarecimento que as trabalhadoras de enfermagem possam ter em relação aos DORT, no íntimo elas vão se dando conta de que a sua atuação profissional, o seu desempenho e a relação que elas estabeleciam com o trabalho possam ter sido o fator mais importante no surgimento da doença:
... assim, para mim, meu dia-a-dia, eu sabia que eu tinha adquirido de alguns movimentos na Central de Materiais, como pinçar na primeira cremalheira, aquele movimento e a passagem do elástico para prender o jogo de pinças e depois da lesão aqui estabelecida, né, eu já não podia fazer quase nada mais, eu não podia pegar uma caixa, erguer uma caixa, descer caixas de prateleira...(Marília)
O convívio com a doença possibilita à trabalhadora reflexões sobre a sua existência no mundo e o seu mundo de relações. O ser-no-mundo da trabalhadora de enfermagem modifica-se intensamente com as alterações advindas dos DORT, pois implacavelmente as manifestações se instalam e essa mulher vê-se obrigada a conviver com as mudanças e as limitações:
.... eu assim vou levando assim, vou tomando os remédios e vou me controlando, para não trazer problemas, então, eu procuro assim, não reclamar muito e vou levando.... (Júlia)
As mulheres que vivenciam os DORT estabelecem uma relação especial com o mundo, já que elas desenvolvem uma “certa intimidade” com as suas limitações. Aprendem a identificar os riscos a que elas se submetem tanto no trabalho, quanto na realização de outras atividades, fazendo com que por intermédio desta convivência, tão cúmplice com a doença, elas se tornem capazes de interagir com o mundo e com as coisas deste mundo de maneira singular, revelando-se no processo de existir.
Desse modo, as trabalhadoras de enfermagem aqui trazidas sob a forma de discursos, vão se redescobrindo a partir das transformações acarretadas em suas vidas, pela convivência com os DORT. O ser-no-mundo se revela para elas juntamente com as experiências que elas desenvolvem, com as possibilidades e impossibilidades advindas do processo de adoecimento, onde as relações estabelecidas com os entes permeiam a existência de ser-no-mundo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao compreender o ser-no-mundo vivenciando os DORT, percebemos que elas experienciam muitas modificações explicitadas pela dor crônica, pela ineficácia do tratamento, pelas limitações e pela incapacidade tão cruel desencadeada por uma doença aparentemente invisível. Considerando que na maioria das vezes essas mulheres têm uma vida ativa, respondendo pelas atividades profissionais e domésticas, a nova situação as obriga a tomar consciência de que a vida mudou. As transformações acarretadas pela doença revelam um cotidiano repleto de incertezas e sofrimento, no qual a mulher necessita resgatar em sua essência uma maneira autêntica de existir, que não permita apenas um replanejamento do seu cotidiano, mas sua relação consigo mesma. Re-planejar seu cotidiano inclui rever seus papéis sociais, como mulher e profissional, adequando o ambiente físico, o cumprimento de tarefas e sua relação com o mundo.
Faz-se necessário repensar sobre o cenário do adoecer por DORT na enfermagem, pois à medida que avança o arsenal tecnológico, infelizmente cria-se a falsa idéia de que as pessoas doentes e incapacitadas possam ser facilmente substituídas, sem prejuízos à empresa e aos trabalhadores. No entanto, quando a rotatividade de recursos humanos torna-se uma constante surgem novos problemas, já que o ser-no-mundo caracteriza-se pelas relações que são estabelecidas no mundo e com as coisas do mundo.
Ademais, percebemos que a temática de saúde do trabalhador necessita de estudos que não contemplem apenas os dados estatísticos, embora os mesmos sejam imprescindíveis para elucidar os perfis de morbimortalidade dos trabalhadores, pois vislumbramos na pesquisa qualitativa de abordagem fenomenológica, a possibilidade de que sejam apreendidas novas maneiras de "olhar" para a trabalhadora que adoece, assim como para o cotidiano das relações de trabalho que são estabelecidas atualmente no contexto hospitalar.
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18 Heidegger M. Ser e tempo. Trad. de Marcia Sá Cavalcante Schuback. 13a ed. Petrópolis: Vozes; 2004.
Endereço para correspondência: Patrícia Campos Leite. Alameda Franca, 1034 apto. 22. CEP:01422.001 – São Paulo(SP). Email: pavanpati@hotmail.com
Nota: Este estudo é parte da Tese de Doutorado apresentada à Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EEUSP), em 2006.
Contribuição das autoras: todas as autoras contribuíram para este estudo, tendo Arlete Silva participado como orientadora, Miriam Aparecida Barbosa Merighi como co-orientadora e Patrícia Campos Leite como orientada, responsável pela realização de todo o processo de pesquisa.
Received
Aug 6th, 2007
Accepted: Aug 25th 2007