Reflections on equality, justice and allocation of resources in health: the bioethical point of view to the inequitable society's dilemmas.
Reflexões sobre igualdade, justiça e alocação de recursos na saúde: O olhar da bioética para os dilemas de uma sociedade iníqua.
Evelise Ribeiro Gonçalves1 Gelson Luiz de Albuquerque2 Alacoque Lorenzini Erdmann3 Flavia Regina Souza Ramos4 Felipa Rafaela Amadigi5
1,2,3,4 Universidade Federal de Santa Catarina, SC, Brasil; 5 Universidade do Vale do Itajaí, SC, Brasil
Abstract: This article brings a reflection about the dilemma of the allocation of resources to health in a society, as the Brazilian one, marked by severe social inequalities among its citizens. For that, the concepts of equality and justice proposed by Amartya Sen (2001) are discussed and the bioethical point of view is proposed for the searching of an equitable sanitary justice. The conclusion is that this search demands a hard fight which must embrace a thoughtful process towards the construction of public health policies compromised with the interests of the social excluded and seeking for national policies which guarantee the efficacy of the health systems.
Key Words:Public Health; Bioethics; Equity
Resumo: O artigo propõe uma reflexão sobre o problema/dilema da alocação de recursos para a saúde em uma sociedade como a brasileira, marcada por severas desigualdades sociais entre seus cidadãos. Para tal, discute os conceitos de justiça e igualdade propostos por Amartya Sen (2001) e propõe o olhar da bioética para a busca pela justiça sanitária. A conclusão é que essa busca requer uma luta árdua e um processo que objetive a construção de políticas públicas de saúde comprometidas com os interesses dos socialmente excluídos e com políticas nacionais que garantam a eficácia social dos sistemas de saúde.
Palavras-Chave: Saúde Pública; Bioética; Eqüidade
Resumen: El artículo propone una reflexión sobre el problema/dilema de la alocación de recursos para la salud en una sociedad como la brasilera, marcada por severas desigualdades sociales entre sus ciudadanos. Para eso, discute los conceptos de justicia e igualdad propuestos por Amartya Sen (2001) y propone el mirar de la bioética en la búsqueda de la justicia sanitaria. La conclusión es que esa búsqueda requiere una batalla ardua y un proceso que tenga como objetivos la construcción de políticas públicas de salud, comprometidas con los intereses de los excluidos socialmente y con políticas nacionales que garantizan la eficacia social de los sistemas de salud.
Palabras-Clave: Salud Publica – Bioética - Equidad
Introdução
Na sua obra Desigualdade Reexaminada, o economista indiano Amartya Sen1 rompe com o senso comum do lema ‘Igualdade para Todos’ e nos desafia com a inquietante pergunta: Igualdade de quê? Ele nos faz refletir sobre o porquê dessa busca incessante (e com certeza frustrante), expondo questões que deveriam fazer parte da análise ética da igualdade.
O que intriga o autor, e a nós também, é o fato de várias teorias de ordenamento social sempre exigirem a igualdade de algo. Um dos exemplos citados é a importante obra de John Rawls2, Uma Teoria da Justiça, que indica a igualdade de liberdade e de distribuição de bens primários a todos os indivíduos, sugerindo certo caráter igualitário e único, tal como a igualdade de oportunidades. A intriga vem justamente do fato de que, para o autor, boa parte dessas teorias exige a igualdade sem levar em consideração um fato incontestável: a incrível diversidade humana.
As realidades que nos fazem diferentes, e que explicitam essa diversidade, são inúmeras: nascemos e vivemos em ambientes distintos, as sociedades e comunidades das quais fazemos parte nos fornecem possibilidades diferentes - limitando mais ou menos nossas ações -, temos diferentes aptidões físicas e mentais, etc. O que podemos (e devemos) então concluir dessa realidade? Que certamente ser igualitário não é, como já dizia Sen, uma característica unificadora, ou seja, tratar a todos como iguais objetivando, em um âmbito maior, a justiça, não passa de uma tarefa decepcionante, infértil, e por que não dizer, injusta.
Trazendo essa reflexão para o cenário nacional, temos a problemática e o dilema trazido pela escassez de recursos para a saúde e a necessidade de alocá-los de forma “justa” para todos os cidadãos brasileiros. Essa distribuição “justa” se traduziria no respeito aos três princípios morais e políticos norteadores do Sistema Único de Saúde - SUS, que preconizam a universalidade de acesso aos serviços de saúde e a integralidade e igualdade na assistência à saúde para todos. Mas como ser “justo”, com destinações orçamentárias que nem sempre tornam possível atender às demandas da sociedade nesta área?
Por um lado, essa situação nos parece, no mínimo, contraditória: como alcançar uma distribuição “justa” de recursos através de um sistema de saúde que ignora as desigualdades de uma população tratando-a como igual? Por outro lado, também refletimos sobre a escassez de recursos e nos perguntamos se eles seriam mesmo escassos ou tal escassez seria na verdade uma escolha política.
Esse artigo tem como objetivo refletir criticamente sobre o dilema da alocação/priorização de recursos para a saúde, em uma sociedade como a nossa, marcada por severas desigualdades sociais. Para tal, iremos discutir os conceitos de igualdade e justiça propostos por Amartya Sen (2001), fazendo um paralelo entre eles e a tensão existente entre alguns princípios norteadores do SUS. A discussão propõe o olhar de alguns estudiosos da bioética na busca por uma justiça sanitária equânime, sempre tendo em mente a inserção de nosso país na ‘periferia do capitalismo’ e nos questionando, como fez Elias3 (p.291): “será o grande problema a escassez de recursos ou a falta de comprometimento político com o destino dado às verbas existentes?”.
Igualdade x Justiça: Um paralelo feito por Amartya Sen
Siqueira-Batista & Schramm4 (p.132) apresentam a seguinte citação de Aristóteles:
[...] a mesma igualdade será observada entre as pessoas e entre as coisas envolvidas, pois do mesmo modo que as últimas são relacionadas entre si, as primeiras também o são. Se as pessoas não são iguais, não receberão coisas iguais; mas isso é origem de disputas e queixas (como quando iguais têm e recebem partes desiguais, ou quando desiguais recebem partes iguais).
Concordamos com os autores quando apontam a tensão entre justiça vista como igualdade e como eqüidade, ou seja, tratamentos desiguais podem ser aceitos com o intuito de corrigir injustiças. Para Sen1, uma das conseqüências das teorias que pressupõem a igualdade como caminho para alcançar justiça é justamente a desigualdade, porque a igualdade num espaço tende a andar junto com a desigualdade noutro, em decorrência da diversidade humana.
De fato, no seu trabalho, ele deixa claro que todas as diferenças entre os seres humanos (nos ambientes naturais e sociais, nas características externas, nas características pessoais) são primordiais para avaliar a desigualdade interpessoal. Dessa forma, para ele, a igualdade pode ser interpretada de várias maneiras diferentes, e exigir a igualdade, sem especificar de quê, não pode ser considerado uma real exigência. A questão não deveria então ser tratada apenas pela exigência de igualdade, mas através de discussões sobre as diferenças.
Sen considera que o caminho na busca pela justiça passa pelo reconhecimento e respeito das capacidades (capabilities) dos indivíduos (capacidades estas muito diferentes entre si) o que incluiria a sua liberdade efetiva em realizar ou não determinada escolha. Como aponta Kerstenetzky5 (p.117), “a igualdade se complexifica no repertório teórico de Sen, abrindo a possibilidade de respeito às escolhas pessoais autênticas – não “turvadas” pelas desigualdades impingidas pelas assimetrias da realidade social”. Compreende-se então que são as capacidades dos indivíduos que deveriam ser igualadas para que todos pudessem usufruir da mesma autonomia na tomada de decisão e se expressar de forma igual.
Fica claro, a partir desse posicionamento, que uma sociedade justa seria uma sociedade livre, e que a “boa vida” seria alcançada por escolhas verdadeiras não obrigando ninguém a viver de uma forma que não deseje. Nas palavras de Sen6 (p.307): [...] “a liberdade pode ser vista como intrinsecamente importante para uma boa estrutura social. Uma boa sociedade também é, nesta concepção, uma sociedade de liberdade”.
Voltando nossa reflexão ao cenário nacional, mais especificamente ao Sistema Único de Saúde (SUS) e a suas diretrizes, tentamos discutir brevemente a problemática que se configura ao se tentar criar um sistema justo considerando justiça como igualdade, neste caso, de oportunidade de acesso.
Sistema Único de Saúde: Diretrizes justas ou utópicas?
Vale lembrar o surgimento do SUS no Brasil no final dos anos 80, instituído por uma legislação universalista, a Lei Orgânica da Saúde7, que define, entre outras coisas, as diretrizes norteadoras do SUS, tanto do ponto de vista moral quanto político. São algumas delas: a universalização de acesso ao serviço, e a integralidade e igualdade na assistência. O acesso universal e igualitário aos serviços de saúde fundamenta-se no princípio da justiça, entendida aqui como igualdade de oportunidade de acesso a eles8,9.
Entendendo a justiça do ponto de vista de Sen1,6, torna-se um grande desafio fazer com que a atual proposta do Sistema Único de Saúde do Brasil resulte em assistência justa a todos os cidadãos. Como assegurar tratamento igual a tantos indivíduos com inserções sociais e capacidades (usando a terminologia de Sen) tão desiguais?
Medeiros10 (p.12) afirma que a discussão sobre distribuição de recursos para a saúde é relevante, visto que no Brasil:
os recursos disponíveis são escassos e há uma pobreza massiva que leva à dependência em relação aos serviços prestados pelo Estado, fazendo com que os resultados da alocação tenham impactos muito relevantes na vida dos cidadãos. Se não houvesse escassez de recursos, poucos discordariam dos princípios de universalidade no acesso e uso limitado, que permitiriam a todos o direito de utilizar os serviços de saúde tanto quanto desejassem. Porém, diante da escassez, é preciso definir quem tem direito ao acesso e quanto cada indivíduo pode utilizar os bens coletivos.
Amartya Sen contribui para essa busca de um ideal mais amplo de justiça trazendo nas suas reflexões a ‘diferença’ no âmago da ‘igualdade’. Pensando dessa forma, é inevitável levar em consideração que é crescente as desigualdades entre ricos e pobres na saúde (e em outros aspectos) e que essas desigualdades são na verdade, iniqüidades, ou seja, desigualdades injustas e não inerentes aos seres humanos. Apresentando tal característica, essas desigualdades entre a população brasileira acabam por afetar consideravelmente as capacidades (e por que não dizer a liberdade) desses indivíduos impedindo-os de realizar as ações mais elementares para um ser humano: alimentar-se adequadamente, ter condições dignas de moradia, ter direito ao trabalho e horas de lazer, etc. 4. E é importante notar, que essas desigualdades se reproduzem. Segundo dados do Datafolha11, 83% dos pobres na faixa da miséria têm menos de quatro anos de estudos e são considerados “analfabetos funcionais”, o que na nossa sociedade implica em não ter praticamente chance de trabalho, o que reproduz o ciclo da desigualdade e da miséria12. Portanto, não existe autonomia para escolher situações e circunstâncias que promovam o bem-estar, não existe escolha entre comer ou não comer, ou ainda, entre conviver com a violência urbana ou não.
A diferença entre a desigualdade e a iniqüidade passa pela falta de oportunidade, pela exclusão social. Assim, deve ficar claro que existe um longo caminho entre a afirmação de que a saúde é um direito de todos, assegurado pela Constituição Brasileira (1988) e a garantia do seu cumprimento de forma justa. Clamar pelas mesmas bases sanitárias para todos os cidadãos brasileiros é insuficiente ou mesmo utópico, uma vez que, como salientado por Sen1, as demandas pessoais são muito díspares e abrangentes, podendo haver nesse caso até uma acentuação das iniqüidades.
O dilema da alocação de recursos na saúde em um país iníquo: Um olhar da Bioética
Pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) revela que 13.921 milhões de pessoas passaram fome no Brasil em 200411. O dado faz parte do suplemento sobre Segurança Alimentar da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2004, feito pelo instituto com recursos do Ministério de Desenvolvimento Social. Dos 52 milhões de domicílios particulares estimados pela Pnad naquele ano, em 6,5% deles residiam pessoas com insegurança alimentar grave, ou seja, que passaram fome com freqüência ou em alguns dias nos três meses que antecederam a data da pesquisa. Considerando a insegurança alimentar moderada e grave – pessoas que ficaram preocupadas em não ter alimentos e aquelas que passaram fome, o número sobe para 39,5 milhões de pessoas11.
Essa situação torna ainda mais dramática à alocação de recursos para a saúde que objetive a eqüidade ou justiça sanitária, como se pressupõe que seja o caso do SUS, a saber, pelas suas diretrizes norteadoras. Assim, fica a questão: como lidar com a distribuição justa de recursos na saúde, em uma sociedade onde uma parcela tão grande de cidadãos ainda passa fome ou vive um estado de “insegurança alimentar”, como nos diz os dados do IBGE?
Esse cenário é no mínimo intrigante e faz refletir sobre como é possível um país, que reconhecidamente tem no momento uma economia estável, e é considerado, junto com China, Rússia e Índia, a maior aposta de sucesso econômico das próximas décadas13, não conseguir alimentar seus próprios cidadãos?
Quando trazemos o debate para o financiamento da saúde conclui-se que o panorama atual é bastante desfavorável ao SUS, onde o montante total de recursos alocados na saúde se mostra insuficiente diante das necessidades derivadas da proposta feita pela Constituição, isto é, a construção de um sistema de saúde universal e igualitário em um país com os problemas já mencionados. Fazemos então nossos, os questionamentos de Diego Gracia14: Como fazer para distribuir de forma justa recursos insuficientes? E o que fazer quando os recursos disponíveis são menores do que os necessários?
Esse tema tão polêmico tem sido objeto de estudo e reflexão de vários estudiosos da Bioética, que têm tentado utilizá-la como um instrumento legítimo e eficiente de análise crítica da moralidade das políticas públicas de saúde, sempre lutando para que elas garantam uma distribuição equânime e socialmente justa dos recursos disponíveis.
Garrafa15 faz uma reflexão clamando pela ética pública no que diz respeito à responsabilidade social do Estado no funcionamento do Sistema Único de Saúde. Para o autor, essa responsabilidade passa pela definição de prioridades na alocação e distribuição de recursos comprometida com a população, envolvendo-a em todo o processo. Além disso, os recursos humanos deveriam ser preparados de forma mais adequada, transformações curriculares nas universidades teriam que ser iniciadas e concluídas, etc... Enfim, são várias mudanças que, para o autor, contribuiriam diretamente para a melhoria do funcionamento de todo o setor de saúde no país. A questão ética, portanto, adquiriu identidade pública. Não pode mais ser considerada apenas uma questão de consciência a ser resolvida na esfera privada ou particular, de foro individual e exclusivamente íntimo. A saúde é então sinônimo de cidadania e o desafio ético a ser vencido é a compreensão e aplicação prática do princípio da responsabilidade, não somente técnico-científico, mas principalmente social e moral. Para ele, a consolidação do SUS só será alcançada através de um processo comprometido com a população mais necessitada e através de uma ação conjunta dos setores educacionais e sanitários, rompendo com o atual quadro de distanciamento.
Fortes16,17 posiciona-se favoravelmente a adoção do princípio de eqüidade nas políticas públicas de saúde que não devem, para ele, se ater exclusivamente a considerações de ordem econômica, e sim buscar o bem-estar das pessoas, respeitando as diferenças entre elas e dando-lhes oportunidade de se manifestar e participar das decisões. Prioridade deveria ser dada aos mais necessitados, sem, no entanto, focalizar as políticas exclusivamente nesse grupo - excluindo as classes médias e outros trabalhadores formais – configurando, o que ele coloca como, mais uma ação de caridade do que de inclusão social. O autor partilha com Garrafa da opinião sobre a responsabilidade pública na alocação e priorização de recursos na saúde, mas acredita que o Estado não necessita ser o único executor das ações ou detentor de todos os serviços de saúde, podendo atuar mediante incentivos e parcerias com a iniciativa privada, regulamentando, avaliando e fiscalizando o desempenho das ações e metas identificadas como condizentes com a diminuição das desigualdades sociais levando em consideração o princípio da eqüidade.
Um novo olhar dentro da Bioética foi proposto por Schramm & Kottow18: o Princípio da Proteção. O objetivo é o de apresentar um novo caminho para as políticas públicas na saúde norteando ações pragmáticas que visem resultados efetivos, garantidos pelo Estado. Este princípio moral é, segundo os autores, ao mesmo tempo abrangente para que as condições básicas de sobrevivência sejam garantidas (segundo a visão de Justiça de John Rawls), levando em consideração a grande diversidade humana e as desigualdades sociais (segundo a visão de Amartya Sen). Dessa forma, a sugestão dos autores é que os problemas da saúde pública sejam abordados através de ações direcionadas a partir da priorização de demandas que partam dos cidadãos menos favorecidos. Essas mesmas ações deveriam passar por um controle social, que averiguaria se o que está sendo executado contempla as necessidades sanitárias de interesse comum, e isso tudo, no contexto da pluralidade das necessidades humanas e de valores da sociedade atual.
Para Berlinguer19,20, o fundamento ético do princípio da justiça é o de permitir e ajudar cada um dos seres humanos a ser verdadeiramente autônomo e, por meio de suas decisões livres, melhorar a si mesmo e multiplicar a riqueza moral e material da sociedade. Segundo o autor, a questão da alocação de recursos passa por três perguntas: a quem destiná-los? Quem decide? Quais recursos e para quais ações? Cada uma delas tem recebido diversas respostas baseadas em critérios discutíveis, como a idade, a gravidade da doença ou a preferência dos que têm poder de escolher. Ele se aprofunda mais no quesito ‘quais recursos e para quais ações’ levantando uma questão interessante: será que os recursos para a saúde são inevitavelmente escassos ou tal escassez é na verdade apenas reflexo de escolhas políticas? Para o autor, vivemos em uma sociedade onde o lucro domina as prioridades na pesquisa, e em conseqüência, no sistema de assistência em saúde, do qual a prevenção representa hoje uma parte mínima. Ele faz um intrigante paralelo com a atenção dispensada pelos países às despesas militares, apontando que na maioria deles são essas despesas as prioritárias. O problema moral levantado nesse caso é o de que a ameaça à vida dos cidadãos causada por “inimigos estrangeiros”, que pode justificar as despesas militares, é futura e teórica, ao passo que as mesmas vidas correm freqüentemente risco imediato por falta de tratamentos adequados. Assim, os perigos ‘reais e imediatos’ deveriam ser enfrentados primeiro que os teóricos, ou seja, o orçamento sanitário deveria ser sempre priorizado em relação ao orçamento destinado à defesa da nação.
Conclusões
Há certo consenso em praticamente todas as sociedades de que a saúde é um bem a ser preservado e promovido entre os cidadãos. Na sociedade brasileira não é diferente, e isso fica claro no artigo 196 da Constituição Federal que expressa: “A saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
A questão da justiça ocupa um lugar de destaque nos aspectos relacionados à saúde, especialmente no caso brasileiro, onde a constituição garante acesso universal e igualitário às ações e serviços. A questão a ser respondida passa a ser: como pode o Brasil proporcionar o que a constituição garante sendo um país de desigualdades tão extremas entre os cidadãos e sendo os recursos cada vez mais escassos, como declaram as autoridades?
Amartya Sen apresenta uma proposta para reflexão do conceito de igualdade que busca o reconhecimento do ser humano como ele é: diferente e único. A partir da assimilação dessa verdade, a busca pela justiça sanitária dá um salto em direção ao respeito pela autonomia dos cidadãos e a legitimação das individualidades, o que necessariamente deveria resultar em políticas equânimes e não igualitárias. Como o próprio Sen colocou, políticas igualitárias não são unificadoras. Poderíamos nos arriscar a dizer então que políticas que clamem pela universalidade de acesso muito provavelmente não marcharão em direção à justiça sanitária. Para Lucchese21, o caminho traçado pelo autor, embora situado no campo de interfaces entre a ética, a economia e a filosofia política, constitui uma boa referência para uma mudança de foco da análise sobre as desigualdades econômicas e sociais que visem à formulação e implementação de políticas públicas orientadas à eqüidade no campo da saúde.
Até 1998, a Bioética trilhou caminhos que apontavam muito mais para temas/problemas/conflitos individuais do que coletivos, o que tornou o princípio da Justiça um mero coadjuvante de menor importância, ou seja, o individual sufocou o coletivo16. A partir de então, as discussões e reflexões têm incorporado temas políticos da atualidade, principalmente sobre as agudas discrepâncias sociais e econômicas existentes entre ricos e pobres, entre as várias nações do mundo, etc. Assim, vários bioeticistas de prestígio nacional e internacional têm voltado seus estudos para temas como o da alocação de recursos para a saúde e alguns deles são citados neste artigo.
De uma forma geral, as propostas levam em consideração as teorias da Justiça de Amartya Sen e de John Rawls, e propõem outros olhares para a construção de políticas públicas para a saúde. Essas políticas devem mostrar um comprometimento político e social com a construção de um sistema de saúde fundado no princípio da justiça e preocupado com a desigualdade social, ainda que os desafios sejam inúmeros, tanto os teórico-conceituais, quanto os colocados para os centros produtores de conhecimento e gestores da saúde.
Em meio a tantos problemas, não devemos fazer do ceticismo e do pessimismo nosso lema. A busca por uma justiça sanitária equânime em um país iníquo como o Brasil pressupõe uma luta árdua e repleta de percalços. O mais importante é a construção de políticas públicas de forma crítica e sempre com o olhar no resultado final, comprometido com os interesses dos socialmente excluídos e primando pela implementação de políticas de Estado que garantam a eficácia social dos sistemas de saúde.
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Received Ago 28th, 2006
Revised Oct 28th, 2006
Accepted Nov 8th, 2006