Subjectivity Production of a Day-hospital Users: an sociopoetic experience

A produção de subjetividade dos usuários de um hospital-dia: uma experiência sociopoética

La producción de subjetividad de los usuarios de un hospital-día: una experiencia sociopoética

Lia Carneiro Silveira Violante Augusta Bastista BragaSandra Haydeé Petit*

 * Universidade Estadual do Ceará, CE, Brasil

ABSTRACT - We present part of a research developed with users of a mental health day-hospital of Fortaleza, Ceará with the objective of knowing the possibilities of subjectivity production for the person that lives the mental suffering in the current historical context. We used the sociopoética method that made possible, through the accomplishment of workshops, the approach of creativity and the sensibility aspects. The results show the concepts produced by the group and how this production provided the construction of new subjectivation spaces. We concluded making some considerations on the importance of establishing new possibilities to notice and to act towards the experience of madness.

Keywords - Mental health. Methods. Creativeness.

 RESUMO - Apresentamos parte dos dados relativos a uma pesquisa desenvolvida junto a usuários de um hospital-dia da rede pública de Fortaleza, Ceará com o objetivo de conhecer as possibilidades de produção de subjetividade para a pessoa que vivencia o sofrimento mental no atual contexto histórico. Utilizamos a abordagem sociopoética que nos possibilitou, através da realização de oficinas, trabalhar aspectos relativos a criatividade e a sensibilidade. Os resultados mostram os conceitos produzidos pelo grupo e como esta produção proporcionou a construção de novos espaços de subjetivação. Concluímos fazendo algumas considerações sobre a importância de se instaurar novas possibilidades de se conceber e agir diante da experiência da loucura.   

Unitermos: Saúde Mental. Métodos. Criatividade.

RESUMEN – Presentamos parte de los datos relativos a una investigación desarrollada junto a usuarios de un hospital-día de la red pública de Fortaleza, Ceará con el objetivo de conocer las posibilidades de producción de subjetividad para la persona que vivencia el sufrimiento mental en el actual contexto histórico. Utilizamos el abordaje sociopoética que nos permitió, a través de la realización de talleres, trabajar aspectos relativos a la creatividad y a la sensibilidad. Los resultados muestran los conceptos producidos por el grupo y como esta producción proporcionó la construcción de nuevos espacios de subjetivización. Concluimos haciendo algunas consideraciones sobre la importancia de instaurar nuevas posibilidades de concebir y actuar frente a la experiencia de la locura.   

Palabras – clave: Salud mental. Métodos. Creatividad .

1. Introdução: contextualizando a proposta

Atualmente, a assistência em saúde mental vem passando por grandes transformações em decorrência das propostas da reforma psiquiátrica brasileira. Inspirada na reforma psiquiátrica italiana e no seu marco conceitual de desinstitucionalização, a reforma brasileira propôs não só uma reorganização dos serviços de atenção em saúde mental. Vai muito além disso ao nos lembrar que, mudar os muros físicos do manicômio não é suficiente, se isso não vier acompanhado de uma mudança no nosso modo de perceber e, conseqüentemente, agir perante o sofrimento mental. O foco da atenção passa a ser deslocado da doença mental para a ênfase na produção de subjetividade das pessoas a quem prestamos assistência.

O conceito de produção de subjetividade utilizado por nós parte do princípio de que nossa forma de existir no mundo não é única nem imutável, mas, ao contrário, é produzida constantemente numa relação direta com a realidade social, política, histórica e social em que vivemos. Sendo assim, quando nos referimos à “subjetividade”, não estamos falando de um fato psicologizado, individualizado e natural.  Falamos, antes, de uma "subjetividade maquínica", a qual não apenas está relacionada com o meio social onde os sujeitos encontram-se inseridos, mas é responsável, inclusive, por sua produção: “o desejo produz o real, ou a produção desejante mais não é do que a produção social”. (1:34)

Um outro cuidado a ser tomado ao mergulharmos nestes espaços destinados a trabalhar a produção de subjetividade é o de evitar desembocar exclusivamente numa “produção de subjetividade capitalística".(2) Este tipo de produção de subjetividade é o mecanismo através do qual o “capitalismo produz exatamente indivíduos normalizados, articulados uns aos outros segundo sistemas hierárquicos, sistemas de valores, sistemas de submissão”.(2:16) Entretanto, é possível desenvolvermos modos de produção singulares, numa recusa a esta serialização de indivíduos. Este “processo de singularização” leva a construção de uma subjetividade singular através da produção de novos modos de sensibilidade, modos de criatividade e de relação com o outro.

  Partindo desse ponto de vista procuramos, durante a construção de nossa tese de doutoramento, desenvolver uma pesquisa junto aos usuários de um serviço tipo hospital-dia, objetivando conhecer suas possibilidades de produção de subjetividade naquele momento, a partir das experiências de vida que ficaram marcadas em seus corpos.

2. Desenvolvimento: apresentando os caminhos percorridos

Para podermos operacionalizar nossa pesquisa recorremos à utilização das ferramentas disponibilizadas pelo método da sociopoética. Esta abordagem se propõe a uma análise crítica da realidade social, buscando “proporcionar a expressão da transversalidade dos desejos e poderes que agem, de maneira inconsciente, na vida social”.(3:13) Para alcançar seus objetivos, uma pesquisa sociopoética precisa resguardar alguns princípios como, por exemplo, a participação dos sujeitos da pesquisa como co-pesquisadores, a valorização do corpo todo na produção do conhecimento e a utilização da criatividade de tipo artístico no processo de pesquisa. Dentre estes princípios, destacamos aquele que diz respeito à valorização do corpo na produção do conhecimento, pois foi exatamente através dele que operacionalizamos nosso estudo.

A produção de dados na pesquisa sociopoética ocorre a partir da realização de oficinas que, através de técnicas artísticas, procuram criar espaços para que emirjam os aspectos relativos a produção de subjetividade. Nesta pesquisa utilizamos técnicas/dispositivos elaborados tomando por base os cinco sentidos – visão, audição, paladar, olfato e tato. A idéia era proporcionar, através do corpo e da sensibilidade, uma forma de produção do conhecimento que não fosse apenas racional.  Para apresentação neste artigo, destacamos apenas os dados referentes à produção através do tato, devido à riqueza de dados produzidos nesta oficina.

O local escolhido foi um hospital-dia da rede pública de assistência em saúde mental da cidade de Fortaleza, Ceará. O primeiro passo para a realização da pesquisa foi a formação do grupo co-pesquisador, pois, na sociopoética, os sujeitos da pesquisa são reconhecidos como pesquisadores co-responsáveis pelo conhecimento produzido. No nosso caso, o grupo-pesquisador foi composto por 12 (doze) usuários assistidos pelo hospital-dia. Em seguida, passamos à segunda etapa do método sociopoético que é a negociação do tema. Nessa fase levamos até o grupo nosso problema de pesquisa – conhecer a produção de subjetividade dos usuários – e perguntamos qual a relevância do tema para os mesmos, fazendo um contraponto das nossas inquietações com as do próprio grupo. A partir da discussão que se estabeleceu, o grupo decidiu que o tema da pesquisa seria o relacionamento da família com a pessoa doente mental.

Posteriormente, no desenrolar das oficinas, percebemos uma inquietação no grupo com relação ao termo “doente mental”, provavelmente devido a grande carga de preconceitos que ele envolve. Realizamos uma nova discussão sobre o tema da pesquisa, sugerindo ao grupo a criação de um novo conceito para esta experiência. Sendo assim, em substituição ao termo “doença mental” o grupo criou o conceito de “Bicofonia” e o descreveu da seguinte forma: “Bicofonia é uma situação em que todo mundo brinca e acaba se machucando. Ela é carnaval, brincadeira, mas é também o contrário da alegria, pois não conseguimos ficar alegre quando estamos com ela, queremos morrer. É um trauma psicológico porque o que fazem com a gente na infância não dá para esquecer. Os problemas existem, mas não fazem parte dela, pois são as pessoas que criam os problemas e acham que ela é a causa de tudo, quando na verdade essa é uma crença que as pessoas tem e acabam levando isso adiante. Ela também se chama indiferença. Ela parece com a pessoa quando está doente, com a cara triste, triste mesmo. O problema da bicofonia é também o problema do desemprego. Ela traduz tudo aquilo que é capaz de gerar a depressão, um problema mental, psicológico, transtorno mental, tristeza, angustia e solidão. Como passar por isso e não se tornar um louco? Um assassino, um revoltado? É o fantasma da bicofonia.”

Vale ressaltar que a palavra “bicofonia” sequer existe na língua portuguesa e, portanto, trata-se de um neologismo criado pelos co-pesquisadores. Entretanto, como nosso interesse era exatamente o de desconstruir o significado pronto, nada melhor para alcançar este objetivo do que uma palavra nova. Dessa forma, o tema da nossa pesquisa foi re-delimitado e passou a ser As relações entre a família e a Bicofonia.

Ressaltamos que o desenvolvimento da pesquisa se deu de acordo com os princípios da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, garantindo a beneficência, a não-maleficência, justiça e autonomia aos envolvidos. Os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido e o projeto de pesquisa foi submetido à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Ceará sendo aprovado em 24 de abril de 2003 com número de protocolo 73/03. 

2.1. A produção de conhecimento através do tato

A oficina do tato foi elaborada tomando por base alguns elementos da experiência desenvolvida pela artista plástica Lygia Clark, por volta dos anos sessenta e, posteriormente, adotada pelo psiquiatra Lula Wanderley na clínica com psicóticos.(4) A proposta inicial de Lygia era o desenvolvimento de uma produção artística que saísse do âmbito exclusivo da contemplação passiva e puramente óptica do espectador e passasse a se constituir numa experiência corpórea e participante na criação da linguagem artística:

 “Lygia Clark percebe a mútua ruptura e incorporação objeto-corpo, o que torna a experiência intensa e perturbadora, pois tende a abolir tanto a arte (objeto) quanto o corpo ( imagem do corpo), fazendo-os ressurgir como espaço potencial de criação no interior de cada criatura. Experiência que dilui a noção de superfície, supera a dicotomia sujeito-objeto e se projeta para mais além do “eu” que determina a individualidade.”  (4:20)

Posteriormente, a artista começa a trabalhar a perspectiva da relação corpo-arte num enfoque terapêutico através da proposição dos objetos relacionais. Os objetos relacionais são formados de matérias surpreendentemente simples e, ao serem apenas vistos, não apresentam nenhum valor estético: pequenas almofadas de tecido recheadas com terra, sementes, bolinhas de isopor; sacos de plástico com água ou ar; meias femininas com pedras ou bolinhas, etc. A especificidade destes objetos está na potencialidade sensorial que eles contêm em suas texturas, pesos e temperaturas. Quando experimentados em conjunto, os objetos têm certa semelhança com o ambiente primário que envolve o corpo, ou seja, “às qualidades plurissensoriais gravadas numa memória pré-verbal do corpo”. (4:35) Esta experiência vai constituir uma espécie de linguagem do corpo.

Entendemos que essa proposta vai ao encontro das nossas expectativas com a sociopoética em vários pontos, apesar de não termos um enfoque terapêutico. Primeiro por utilizar a criatividade artística na produção dos dados, segundo, por valorizar a utilização do corpo como força criativa e, finalmente, por proporcionar uma relação corpo/objeto extremamente produtora de estranhamento, já que parte de uma experiência com objetos despidos de significados a priori. Sendo assim, elaboramos alguns objetos relacionais para a realização da oficina do tato, os quais descrevemos a seguir:

Quadro 1 – Objetos relacionais utilizados na oficina

        Antes de iniciarmos o contato com os objetos, solicitamos a todos que deitassem em colchonetes dispostos em círculos em posição confortável e com os olhos vendados. Durante o contato com os objetos os participantes deviam associar as sensações despertadas ao tema da pesquisa.

Após termos alternado todos os objetos por todos os co-pesquisadores, finalizamos retirando os objetos e pedimos que eles sentassem. Sem quebrar o momento de introspecção que havia se criado, disponibilizamos argila e água para que eles elaborassem, através desse material, algo relacionado ao nosso tema e à experiência com os objetos. Em seguida, cada um foi convidado a apresentar sua produção e falar um pouco sobre todo o processo vivenciado. Além da apresentação individual os co-pesquisadores realizaram também uma análise coletiva do material produzido. O conjunto desta produção (esculturas em argila, gravação das apresentações e discussões do grupo e o texto da análise coletiva) foi considerado como os dados da pesquisa. Na sociopoética é a partir deles que o facilitador da pesquisa vai produzir suas próprias análises.

2.2 Análise dos dados: experimentando com a sociopoética

A análise dos dados na pesquisa sociopoética se dá de maneira particular, seguindo algumas etapas. Primeiramente, vale ressaltar que nessa etapa a participação do grupo-pesquisador é a chave do processo. O grupo iniciou a análise comentando os dados produzidos e trazendo à tona todos os elementos que eles possam utilizar como referencial de análise. Certamente, não se trata de um referencial teórico, mas sim, um referencial de experiências composto por tudo aquilo que foi capturando ao longo da sua vida. Foi muito importante o fato de que o grupo tenha se permitido “experimentar” os dados sempre utilizando seu próprio corpo para entrar em contato com o universo da pesquisa: olhar, cheirar, tocar, ouvir, provar.

Paralelamente às análises do grupo-pesquisador, a sociopoética requer, ainda, a realização da análise do material por parte do facilitador da pesquisa segundo algumas etapas propostas pela sociopoética: categorização das falas; transversalização e momento filosófico. Esta última é a etapa onde buscamos as relações entre a produção do grupo e as correntes filosóficas adotadas pelo facilitador, estabelecendo uma comunicação que nos permita perceber suas convergências, complementaridades ou oposições. Optamos por apresentar neste artigo apenas o material referente a esta etapa.

3.3. Análise filosófica: quando conhecimento e subjetividade se cruzam na sociopoética

A análise filosófica na sociopoética parte do princípio de que, ao produzir e analisar seus dados, o grupo-pesquisador passa a entrar numa espécie de devir-filósofo e a criar seus próprios conceitos. Essa forma de pensar a produção de conhecimento tem suas raízes na concepção dos filósofos franceses Gilles Deleuze e Felix Guattari, segundo a qual a filosofia não pode ser associada nem à reflexão, nem a contemplação, nem à comunicação:

“Ela não é contemplação, pois as contemplações são as coisas elas mesmas enquanto vistas na criação de seus próprios conceitos. Ela não é reflexão, porque ninguém precisa de filosofia para refletir sobre o que quer que seja. (...) E a filosofia não encontra nenhum refúgio último na comunicação, que não trabalha em potência a não ser de opiniões, para criar o consenso e não o conceito”.(5:14)

Além disso, segundo esta concepção de filosofia, não podemos conhecer nada por conceitos que não tenham sido criados por nós mesmos. Essa é a tarefa da filosofia: criar conceitos. Nesse caso, passamos a nos perguntar o que é um conceito e, antes de mais nada, já descobrimos que ele não tem nada a ver com a definição, com a delimitação de uma verdade última sobre algo: o conceito é da ordem do acontecimento, não da essência. Sendo assim, ele tem sempre a verdade que lhe é possível, em função das condições de sua criação e, portanto, não se pode afirmar que haja um conceito melhor do que um outro. Mas, um detalhe se faz necessário: eles “devem estar em relação com problemas que são os nossos, com a nossa história e, sobretudo com os nossos devires”. (5:40)

Para que possamos entender a importância da produção de conceitos, precisamos distinguir, inicialmente algumas noções propostas pela filosofia deleuze-guattariana:  o plano de imanência, o conceito e o plano de consistência. O plano de imanência, é anterior ao conceito, mas, ao mesmo tempo, é o que possibilita a sua criação: “Os conceitos são acontecimentos, mas o plano é o horizonte dos acontecimentos, o reservatório ou a reserva de acontecimentos puramente conceituais”. (5:52) Já o plano de consistência é a superfície onde os conceitos compõem-se e insistem. Eles traçam linhas de fuga saindo do seu contexto de nascimento para constituírem o pensamento abstrato. O que a sociopoética faz é criar dispositivos que possibilitem ao grupo-pesquisador, partindo do plano de imanência, inventar novos conceitos e instaurar um plano de consistência.

Muitas vezes, nessa passagem do plano de imanência para o plano de consistência, o grupo produz também metáforas. Apesar de não ser propriamente um conceito, a importância dessas produções no pensamento do grupo é que elas promovem uma tensão produtiva num mundo que se apresentava pacífico e desproblematizado. Isso vai fazer com que o grupo realize um deslocamento no pensamento em direção a novas possibilidades de criação. Além disso, ela envolve elementos poéticos e artísticos que fazem com que ela se situe no entre-dois do saber e do sentir. (6)

A criação do conceito se diferencia da metáfora porque ele já não está ligado a uma idéia. O problema já se instaurou e somos forçados a encontrar novas formas de dar conta dele. È aí que nasce o conceito. Ele vai se formando a partir de pedaços vindos de outros conceitos que respondiam a outros problemas, mas já não dão conta do que se apresenta agora: um conceito é uma heterogênese, isto é, uma ordenação de seus componentes por zonas de vizinhança. (5: 32) Para entendermos melhor o que é o conceito podemos perguntar, ainda: e qual a importância de se criar conceitos? Ela reside na possibilidade de confrontar conceitos já instituídos, nos permitindo fazer surgir novas variações, operar vibrações, multiplicar possibilidades e suscitar novos acontecimentos. Dessa forma, aquilo que estava cristalizado começa a tomar movimento. E o mais surpreendente que Deleuze e Guattari nos mostram com relação ao conceito é que, neste movimento, não estão em funcionamento apenas objetos, mas, envolve consigo a própria conformação do sujeito: “O movimento infinito é duplo, e não há senão uma dobra de um ao outro. É neste sentido que se diz que pensar e ser são uma só e mesma coisa. Ou antes, o movimento não é imagem do pensamento sem ser também matéria do ser.” (5:54)

É exatamente nesse ponto que encontramos a interseção entre os objetivos de nosso estudo e a proposta da sociopoética. O objetivo de nossa pesquisa é o de conhecer as possibilidades de produção de subjetividade para pessoas em sofrimento mental que recorrem a um serviço da rede pública. Quando propusemos ao grupo-pesquisador que escolhesse o tema da pesquisa, estávamos começando a nos aproximar desse objetivo, pois, essa é uma forma de perguntar exatamente: o que gera problemas para esse corpo? Quais são suas inquietações, suas convicções e seus devires? Em seguida, ao trabalharmos sobre esse tema, não estávamos pedindo ao grupo que refletisse sobre o mesmo ou que nos comunicasse suas experiências em relação a ele.  Antes, a proposta era a de criar um espaço onde pudesse ocorrer a produção de sentidos, de acontecimentos ou de conceitos, mas, que é, ao mesmo tempo, produção de subjetividade: pensar e ser são uma só e mesma coisa.

Sendo o conceito um acontecimento, não pode existir sem ser perpassado de afetos.  Vale lembrar que esses “afetos” não são emoções individuais nem sentimentos, mas sim intensidades que percorrem os corpos. A sociopoética se utiliza do neologismo “confeto”, mistura de conceito e afeto, para mostrar que na atividade do grupo-pesquisador, os afetos não só existem, como são o próprio motor da criação. É esse diagrama que se forma entre metáforas e confetos que passamos a apresentar agora.

Inicialmente, o grupo cria o confeto de Bicofonia. Ele nasce da necessidade de reinventar a forma de nos referirmos à experiência pela qual passa esse corpo. A psiquiatria, ao tomar como domínio seu essa experiência, a qual se refere como “doença mental”, procurou circunscrevê-la dentro da mesma lógica aplicada às doenças orgânicas. Nessa visão, imperam, com grande freqüência, as versões funcionalistas como a da tríade ecológica de Leavell e Clark.  Na visão da epidemiologia social este modelo coloca: “num mesmo plano natural-a-histórico todos os elementos da natureza (sociedade humana incluída) e sujeitando a interpretação de seu desenvolvimento à aplicação dos princípios neo-positivistas das teorias de sistemas (isto é, homeostase: fluxo harmônico de energia; retroalimentação por meio das conexões externas dos elementos; etc.)” (7:108)

Sendo assim, O modelo de Leavell e Clark ficou conhecido como “história natural da doença”. Nele converte-se o homem (e também o meio e o agente) num elemento da categoria “natural” e só admite-se que ele apresente diferenças que estejam dentro das variantes puramente naturais. Essa conclusão é extremamente útil ao modelo capitalista, pois, além de esconder as profundas diferenças de classe, permite centrar as medidas de atenção à saúde apenas na restauração das condições biológicas eximindo-o, portanto, de enfrentar os problemas de organização social.(7)

Ao invés de traçar essa história natural da doença, podemos afirmar que apresentamos uma “história artificial” da bicofonia. Artificial no sentido de que ela é produzida, inventada dentro de uma estética não generalizável e que também não é a única possível. Ela é apenas aquela que foi produzida nas condições dos encontros daqueles momentos. Dessa forma, através do confeto de bicofonia saímos do registro da doença mental – definida cientificamente segundo um padrão de normalidade e a aplicação de diagnósticos – e passamos para um espaço onde, além dos componentes orgânicos, circulam múltiplos afetos extremamente significativos.

O grupo apresenta a relação entre a família e a bicofonia através de suas texturas e consistências. Aqui, as metáforas mostram que essa relação é leve e quentinha, lugar de paz e segurança, mas, também é dura, pesada e fria como o carrasco que bate, agride e até põe em risco a segurança da pessoa. Para além dessa polarização, entramos no terreno ambíguo da brincadeira. Ele possui uma face voltada para a família, mas, também, tem outra voltada para a bicofonia, situando-se na fronteira tênue que separa as duas. Na família, a brincadeira se faz entre conchas e bolhas, pois a família gosta de se divertir, de brincar. Na bicofonia também existe uma brincadeira. Ela começa quando colocam em você coisas geladas. Começa, então, um jogo de adivinhar: o que é isso? O que não é? Mas, essa tentativa de descobrir o que tem no seu corpo tem que ser feita com cuidado para não machucar.

E assim, aquilo que era claramente delimitado, começa a se misturar, dando origem a híbridos que não podem mais ser classificados: coisas geladas na família, a frieza que pode acalmar a dor ou machucar, passam a fazer parte da brincadeira da bicofonia. O tato também revela a geografia da bicofonia, onde podemos encontrar o confeto de “Muro”. O muro da bicofonia marca uma separação entre os que são aceitos e os que devem permanecer no outro lado. Separação imposta por classe social, raça ou cor que parece vir sempre de fora. Ele é também o muro da separação da família, visível ou invisível. Entretanto, a posição desse muro não é necessariamente externa. Existe também o muro de Berlim interno, que separa dentro de nós mesmos o lado que temos acesso e aquele que nos é negado. Ambos habitados por povos separados e impossibilitados de se conhecer. Entretanto, deve-se lembrar que toda ação induz uma reação e o poder repressivo, também, provoca a potência de achar saídas. Pular o muro pode ser uma das saídas possíveis. Nesse caso, aquele mesmo elemento que deveria separar, passa a servir de passagem para o outro lado, pois, de outra forma, como poderia a criança mergulhar na piscina? Ou então investir na força e derrubar a machadas esse muro e ganhar a liberdade de conhecer as pessoas do outro lado.

A experiência através do tato, também, revela que, na relação da família com a bicofonia, também está presente o confeto de “Algemas dos escravos”. Elas existem e são tudo aquilo que serve para manter os escravos de hoje em dia sob controle: camisas–de-força, troncos e pés de mesa. Como se vê, a escravidão, apesar de abolida historicamente, não deixa de continuar existindo. As práticas repressoras e punitivas também são as mesmas: trabalho forçado, violência física, contenção e, principalmente a falta de liberdade. Mas apesar da repressão, a bicofonia-escravidão também tem suas resistências. Assim como os escravos faziam, é à noite, longe das luzes, nos espaços escuros que ainda restam, que se pode inventar e dançar a capoeira.

Outro conceito construído no plano de consistência da relação da família com a bicofonia é o de “corpo-seco”. Ele é o estado do corpo que passa por muitas agressões. Pode ser característico da pessoa que não se alimenta bem, não estando ligado somente à necessidade da fome, mas também, ao próprio desejo desse corpo, pois ele pode ate não sentir fome e ser um corpo-seco.  Ele existe lá na Etiópia, mas, a Etiópia também é aqui, ela está em todo lugar onde não existe nada. Pode ser decorrência de alguma droga como o cigarro, mas também é o efeito da falta de alimentação, de educação, de respeito, etc.

3. Conclusão: considerando possíveis finais

Sabemos que, historicamente, a atuação da enfermagem na assistência aos chamados “doentes mentais”, construiu-se principalmente sobre as bases da repressão e da docilização dos corpos para que o saber médico pudesse ser exercido (8). As ações frequentemente limitavam-se à vigilância, controle e supervisão/execução de tratamentos prescritos(9). Entretanto, vivemos um momento em que as propostas da reforma psiquiátrica buscam situar as relações entre o saber científico e a experiência da loucura numa outra ordem, onde se busque valorizar a produção de vida, ao invés de diagnósticos e sintomas. Procuramos mostrar através deste estudo que as possibilidades de encontros entre a enfermagem e as pessoas que vivenciam o sofrimento mental (principalmente na radicalidade da experiência psicótica), podem se dar noutros planos bem diferentes daquele que marcou essa atuação nos espaços asilares. Para isso, precisamos fazer uso de ferramentas que nos permitam resgatar nossas potências criadoras. Na pesquisa, os referenciais qualitativos têm despontado como uma forte tendência na enfermagem (10), abrindo espaço para o enfoque em aspectos da pesquisa historicamente considerados “menores” dentro da tradição positivsta como a sensibilidade, a intuição e a sensualidade. A sociopoética se apresenta como uma ferramenta de potencialização destes aspectos, possibilitando a descristalização de conceitos já instituídos e a invenção de novos modos de subjetivação.

Apresentamos aqui alguns confetos e metáforas que surgiram na produção sociopoética sobre as relações da família e a bicofonia. Certamente não são os únicos possíveis, pois a todo instante estes elementos são articulados e entre a família e a bicofonia o sentido não para de ser produzido. Lembramos, ainda, que, por habitarem o mesmo plano de consistência, esse confetos se interpenetram, provocam vibrações que vão de uns aos outros e incitando a criação de novos conceitos por quem vier a entrar em contato com eles.

Entendemos que este duplo movimento em direção à valorização dos sujeitos na produção do conhecimento e das possibilidades de realizar esta produção através de outros mecanismos que não se fechem exclusivamente na razão, abre novas perspectivas para o profissional de enfermagem, notadamente para aquele que se dedica à saúde mental.

Em primeiro lugar, porque permite aos sujeitos do cuidado apropriar-se de suas questões, identificando “seus” mecanismos de desejo e não mais recebendo um cuidado baseado em necessidades preestabelecidas por outrem. Em segundo lugar, por que permite ao profissional de enfermagem resgatar o aspecto artístico (ético-estético), tão preterido em sua prática em função da biologização de todos os processos.            

5. Referências Bibliográficas

1           Deleuze G, Guattari F. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Lisboa: Assírio Alvim; 1968.

2           Guattari F, Rolnik S. Micropolítica: cartografias do desejo. 5. ed. Petrópolis: Vozes; 1999.

3           Gauthier JHM. Sociopoética: encontro entre arte, ciência e democracia na pesquisa em ciências humanas e sociais enfermagem e educação. Rio de janeiro: Editora Escola Ana Nery/UFRJ; 1999

4           Wanderley L. O Dragão Pousou no Espaço: arte contemporânea, sofrimento psíquico e o objeto relacional de Ligia Clark. Rio de Janeiro: Rocco; 2002.

5           Deleuze G, Guattari F. O Que é a Filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34; 1992.

6           Gauthier J. Trilhando a Vertente Filosófica da Montanha Sociopoética: a criação coletiva de confetos. In: Prática da pesquisa nas ciências humanas e sociais: aplicação da abordagem sociopoética. São Paulo: Atheneu; 2004.

7           Breilh J. Epidemiologia: economia, política e saúde. São Paulo: HUCITEC; 1991.

8           Miranda CML. O parentesco Imaginário: história e representação social da loucura nas relações do campo asilar. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ; 1997.

9           Cavalcante TF, Guedes NG, Moreira RP, Guedes, TG, Araújo MAM. Nursing care at new mental health services - experience report. Online Brazilian Journal of Nursing [Online], 5.1 22 Apr 2006 Disponível: http://www.uff.br/objnursing/viewarticle.php?id=153.  

10        Silveira lc, Dias msa, Chagas mio, Damasceno mmc, Fraga mno. Tendências das teses de doutoramento em enfermagem produzidas na Universidade Federal do Ceará. Texto Contexto Enferm 2003Jul/Set; 12 (3): 314-22. 

Contribuição dos autores:
-Concepção e desenho: Lia carneiro Silveira, Violante Augusta Batista Braga
-Análise e interpretação: Lia carneiro Silveira, Sandra Haydée Petit
-Escrita do artigo: Lia carneiro Silveira
-Revisão crítica do artigo: Sandra Haydée Petit
-Aprovação final do artigo: Lia Carneiro Silveira
-Colheita de dados: Lia Carneiro Silveira
-Provisão de pacientes, materiais ou recursos: Lia Carneiro Silveira
-Pesquisa bibliográfica: Lia Carneiro Silveira
 

-Endereço para correspondência: Av. Barão de Studart, 1891 ap 304 A. Aldeota. Fortaleza-CE. CEP 60120-001
-Apoio da
CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

Notas: O material publicado é parte da tese de Doutorado intitulada “Do Corpo Sentido aos Sentidos do Corpo: sociopoetizando a produção de subjetividade” defendida em fevereiro de 2004 no Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Ceará.

 Received: Dec 28th, 2006
Accept Mar 17th, 2007