Coluna: Saúde da Mulher Negra

Prevenindo a violência (inclusive a simbólica) contra a mulher negra

Para uma melhor compreensão do problema racial e de gênero no Brasil, julgamos importante frisar a existência do fator extrínseco histórico-sociológico caracterizado por quatro séculos de escravidão e um século de exclusão, sob o arcabouço do patriarcado. Por meio da análise crítica da história brasileira, incluindo a contemporânea, observamos que as condições de escravização, colonização, patriarcado e exclusão moldaram uma realidade e cristalizaram estruturas que são inadequadamente entendidas como legítimas e impuseram às mulheres negras, no que tange à sua saúde, fatores de risco extra-biológicos. Realizar ações que neutralizem o sexismo e o racismo é o desafio que se apresenta aos profissionais de saúde.

Concordamos com Barsted[i] quando considera que o conceito de “violência contra a mulher” deve basear-se na Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), aprovada pela Organização dos Estados Americanos - OEA, em 1994, e ratificada pelo Brasil, em 27 de novembro de 1995. A expressão define distintos aspectos da violência e dá visibilidade a um sujeito específico que a sofre - a mulher. Neste sentido, outras situações também devem ser consideradas como violência contra a mulher, tais como: assédio sexual, violência racial, violência contra mulheres idosas, revista íntima, dentre outras. Por esta Convenção, tanto o Estado como as instituições, as famílias e os indivíduos podem ser perpetradores de violência.

Deslandes et al[ii] evidenciaram que o setor de emergência é a porta de entrada e também, na maioria das vezes, o único contato da mulher vítima de violência com o Sistema de Saúde. Não havendo nem o acompanhamento posterior e nem mesmo o registro da ocorrência. O que caracteriza a discriminação nestes casos é que dependendo da idade da vítima, criança, por exemplo, a atenção é outra.

Diante desta cruel realidade, avaliamos que a prestação de um cuidado de saúde, com a devida qualidade para mulher negra, deve acontecer num contexto que tenha como referenciais a equidade e a emanipação, visando desconstrução dos conceitos mulher e negra definidos desde sempre como relacionados à subalternidade. É necessário, portanto, desconstruir esta relação de desigualdade também no setor saúde para que se promova a emancipação da da mulher negra, cliente, usuária do Sistema Único de Saúde, e assim poder se estabelecer a construção de relações interpessoais profissional-cliente baseadas na liberdade.

Um resultado óbvio que um único sistema de opressão produz é extração da cidadania. Mais de um sistema de opressão pode produzir a completa desumanização. Ainda que a pessoa cumpra com todos os seus deveres sociais e pague todos os seus impostos, ela não é considerada (subjetiva ou objetivamente) como uma pessoa com direitos ou com os mesmos direitos daquela que pertence ao grupo hegemônico ( no nosso caso: masculino e de origem européia). Os sistemas de opressão são sustentados por ideologias e é preciso que a sociedade se mantenha atenta e vigilante para que eles não se tornem verdadeiras políticas públicas ou para que sejam neutralizados, caso predominem nos sistemas legais. Um dos mecanismos de neutralização ou minimização dos sistemas de opressão é a ação afirmativa.

Mello[iii], juiz do Supremo Tribunal Federal, define a ação afirmativa como um dos instrumentos possibilitadores da superação do problema do não-cidadão (ou da não-cidadã), daquele (a) que não participa política e democraticamente como lhe é na letra da lei fundamental assegurado, porque não se lhe reconhecem os meios efetivos para se igualar com os demais. Cidadania não combina com desigualdade. República não combina com preconceito. Democracia não combina com discriminação. (...).

Muitas são as ações possíveis de serem realizadas no âmbito da saúde[iv], avalio como uma importante ação afirmativa a aprovação da Lei 4493/01, da deputada Socorro Gomes (Pará), que exige a Notificação Compulsória da Violência Contra a Mulher atendida em serviços de urgência e emergência, e a criação da Comissão de Monitoramento da Violência Contra a Mulher no Ministério da Saúde e nas Secretarias Estaduais de Saúde. Contudo, para que lei não se torne letra morta, é necessário sensibilizar, capacitar e monitorar os profissionais e instituições de saúde quanto ao tema. É preciso que o profissional de saúde, em geral, e a enfermeira em particular, reconheça as diversas manifestações da violência contra a mulher no âmbito do lar e fora dele e, admita que este é um problema de saúde também, não só da polícia. As instituições precisam estruturar as equipes multiprofissionais e capacitá-las quanto aos métodos de abordagem da mulher em situação de violência, quanto aos modelos de entrevistas, de documentação das lesões, dos sofrimentos psíquicos,  e encaminhamento, dentre outros aspectos.

Assim como existe o Comitê de Monitoramento da Mortalidade Materna, no município de Santos/SP, a Conferência Municipal de Saúde aprovou a criação da Comissão Municipal de Monitoramento da Violência contra a Mulher e de um programa na área de saúde mental do município para estudar os danos psíquicos causados pela violência  de gênero e  violência étnico/racial[v]. Esta ação deve ser multiplicada em outros municípios da União.

Uma outra ação afirmativa foi a criação do Dia Internacional da Não Violência Contra as Mulheres, 25 de novembro. Uma data serve não só para lembrar um fato histórico, mas também para mobilizar a sociedade civil em torno de um tema. As (os) profissionais de saúde, em especial as enfermeiras, devem se mobilizar e mobilizar as organizações feministas da região para que se pronunciem sobre a aplicação da Convenção; para exigir dos governantes e gestores um trabalho conjunto quanto à prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher, assim como a proposição de uma atenção integral nos serviços de saúde às mulheres agredidas.

Cabe ressaltar que uma importante ação afirmativa em saúde, no sentido de promover a atenção integral, compreende a criação de um processo de monitoramento que avalie regularmente o acesso e a qualidade do cuidado prestado nas instituições de saúde, visando identificar e prevenir a violência institucional, do próprio sistema de saúde e seus profissionais, assim como detectar o desenvolvimento rotineiro de cursos de capacitação dos profissionais de saúde para o atendimento das mulheres que sofrem violência.

Em síntese, seja a violência real ou simbólica contra a mulher, na nossa avaliação, a prevenção passa pelas ações de “empoderamento” da mulher. As (os) profissionais de saúde podem (e devem) contribuir efetivamente capacitando ou instrumentalizando a mulher, cliente, usuária do SUS, para que ativamente identifique e rechace qualquer conduta que atente contra seus direitos e integridade corporal e psíquica.

Referências

[i] .Barsted, L.  Violência contra a mulher: Conceito. Disponível em: http://www.prossiga.br/bvmulher/cedim Acesso em 26/06/03

[ii] Deslandes, S. et al caracterização dos casos de violência doméstica contra a mulher atendidos em dois hospitais públicos do Rio de Janeiro. Cadernos de Saúde Pública 16(1):129-37, 2000

[iii] Mello, L. Ação afirmativa. Boletim Eletrônico Eparrei, SP, Casa de Cultura
da Mulher Negra, março, 2002

[iv] Cruz, Isabel. "Column: Black Woman Health - Gender and race institutional discrimination. How the nurse can prevent these violations?." Online Brazilian Journal of Nursing [Online], 5.2 5 Aug 2006 Available: http://www.uff.br/objnursing/viewarticle.php?id=499.

[v] Casa de Cultura da Mulher Negra. Notificação compulsória sobre violência contra
a mulher. Boletim Eletrônico Eparrei, SP, Casa de Cultura da Mulher Negra, setembro, 2002