Taking care of children´s family on sexual abuse situation considering the humanistic theory

Cuidado à família de crianças em situação de abuso sexual baseado na teoria humanística

 Lygia Maria Pereira  da Silva 1, Marli Terezinha Gimeniz Galvão 2, Thelma Leite de Araújo 2, Maria Vera Lúcia Moreira Leitão Cardoso 2

1 Universidade de Pernambuco, PE, Brasil; 2 Universidade Federal do Ceará, CE, Brasil.

 RESUMO: O abuso sexual é violência interpessoal, em que crianças ou adolescentes são utilizadas para gratificação sexual de adulto ou adolescente mais velho. O estudo objetivou aplicar a Teoria Humanística no cuidado aos familiares de uma criança em situação de abuso sexual. Com abordagem qualitativa, fenomenológica, os sujeitos foram cuidadoras de crianças, atendidas em uma entidade não governamental em Fortaleza-CE. Dados colhidos em novembro de 2005 e analisados à luz dos pressupostos da Teoria Humanística de Enfermagem de Paterson e Zderad. As cuidadoras demonstraram pouco preparo para enfrentar os desdobramentos da revelação, pouco conhecimento sobre os efeitos do abuso sexual sobre as crianças, bem como a maneira de ajudá-las. Conclui-se que a teoria permite captar as necessidades do sujeito e contribui para atender as demandas geradas pela vivência do abuso sexual intrafamiliar. Os cuidadores devem ser alvo da atenção dos profissionais de saúde.

Palavras-chave: Maus-tratos sexuais infantis; Cuidados de Enfermagem; Teoria de Enfermagem. 

ABSTRACT: The sexual abuse is interpersonal violence practised against children or teenagers for an adult’s or older teenager’s sexual gratification. The research has aimed to apply the Humanistic Theory on the care of sexual abused children’s family. Phenomenological and qualitative approach was considered on the assistance of the children’s caregivers and it was carried on in a non-governmental organisation situated at the county of Fortaleza, Ceara. The data was collected in November 2005 and analysed with reference to the presuppositions of Paterson & Zderad’s Nursing Humanistic Theory. The caregivers have demonstrated little preparation to face the other aspects derived from the revelation; little knowledge about the effects of the sexual abuse upon the children and the way to help them as well. It can be concluded that the theory is able to realize the client’s needs and contributes to assist the demands produced by the intrafamiliar sexual abuse experience. The caregivers must be the target of the health prefessionals’ assistance.

Keywords: Child abuse sexual; Nursing care; Nursing Theory. 

INTRODUÇÃO

O abuso sexual é um fenômeno de difícil abordagem para toda a sociedade, incluindo os profissionais de saúde, haja vista as dificuldades emocionais e culturais que suscita nas pessoas que com ele se deparam1,2,3. Considerado uma violência interpessoal, o abuso sexual ocorre quando uma criança ou adolescente é utilizada para gratificação sexual de um adulto ou mesmo de um adolescente mais velho. Baseado nas relações de poder, o abusador obriga ou induz a vítima a realizar práticas sexuais para as quais não está preparada por seu estágio de maturidade, não podendo avaliar as conseqüências4, 5.

O abuso sexual se apresenta nas seguintes formas: sem penetração, toques impudicos (manipulação dos órgãos genitais), beijos, masturbação, pornografia, produção de fotos, exibicionismo, telefonemas obscenos, que dificilmente deixam vestígios no corpo da vítima; com penetração: coito oral, coito vaginal ou coito anal. Na exploração sexual comercial de crianças e adolescentes são utilizadas as várias formas descritas anteriormente e se dá através de um abusador ou de uma rede de abusadores6,5.

Sendo um fenômeno complexo, o abuso sexual é causador de danos de gravidade variável, que freqüentemente dependem do grau de parentesco entre a vítima e o abusador (quanto mais próximo maior o dano), do tempo do abuso (se ocasional ou crônico, insidioso) e ainda se ao ser revelado, a vítima foi acreditada e recebeu os cuidados necessários7. O abuso sexual tem sido relacionado às alterações imediatas, a médio e longo prazo, como: baixa auto-estima, baixo rendimento escolar, atraso no desenvolvimento psicossomático, comportamentos auto-destrutivos, lesões genitais, doenças sexualmente transmissíveis, etc6, 4, 8, 5, 9.

Estudos realizados em serviços especializados na assistência a crianças em situação de violência mostram que são imprescindíveis o atendimento emergencial e o acompanhamento das vítimas e suas famílias. Destacam a necessidade de se investir no ambiente familiar, tomando a família como alvo dos cuidados do profissional, por seu importante papel na recuperação das vítimas1,10. O alto índice de abandono do acompanhamento e a negligência às suas necessidades expõe a vítima a novos episódios de abuso1,10,11.

O Estatuto da Criança e do Adolescente12 no Artigo 4 atribui à família em primeiro lugar, o dever de assegurar os direitos fundamentais à criança e ao adolescente. A importância da família se deve principalmente por ser o primeiro núcleo de socialização da pessoa, que transmite primeiramente os valores, usos e costumes que estruturarão a personalidade e a bagagem emocional do indivíduo13,2. É na família que se desenvolve a auto-estima, se aprende a amar a si e ao outro (ou a não amar), e onde se desenvolve as noções de cuidado ou descuido, consigo e com o outro.

Portanto é visível a urgência de educar para o cuidado valorizando o papel da família nas ações que contribuem para o bem-estar das crianças e adolescentes. O cuidado aqui é um ocupar-se do objeto de cuidados visando torná-lo mais que um objeto, um sujeito de direitos, ainda que continue sendo objeto (alvo) do amor de quem cuida14.

Para colocar em prática tal concepção utilizamos a Teoria Humanista de Enfermagem, de Paterson e Zderad15, que implica um encontro entre seres humanos em resposta às necessidades percebidas16. O cuidado da Enfermagem deve levar à nutrição do bem-estar e estar-melhor da pessoa, ajudando-a a tornar-se o melhor possível em sua situação particular. Buber17 apresenta três dimensões da relação: a relação Eu-Tu (sujeito-sujeito), a relação Eu-Isso (sujeito-objeto) e a relação Nós.

Paterson e Zderad15 elaboraram cinco fases para o desenvolvimento do processo da Enfermagem Fenomenológica descritas a seguir.

Na primeira fase, a preparação para o vir a conhecer é pré-requisito para a investigação. Na segunda fase, a enfermeira conhece intuitivamente o outro na relação Eu-Tu que é a base da Enfermagem fenomenológica e considera a singularidade do outro. Na terceira fase a enfermeira conhece cientificamente o outro, a partir da reflexão, análise, classificação, comparação, visualização de contrastes, estabelecimento de relações entre os componentes, interpretação e categorização. As fases ocorrem simultaneamente ou se intercalam e o conceito ao-mesmo-tempo explica a idéia de simultaneidade, na qual ao mesmo tempo em que cuidamos, aplicamos o conhecimento científico. A síntese complementar das realidades conhecidas é a quarta fase, quando há a comparação e síntese das múltiplas realidades conhecidas, para chegar a uma visão ampliada18. Então, estabelece relações entre as realidades, as interpreta, seleciona e classifica. A enfermeira observa aspectos presentes ou ausentes podendo alguns deles estar em realce. Na quinta e última fase, amplia o conhecimento e expande sua visão, buscando a comunhão das diferentes idéias.

Na enfermagem humanística a meta do bem-estar é atingida pelo diálogo e ação concomitantes, caracterizando um relacionamento terapêutico. Importa o significado da experiência para o cliente e a mudança na perspectiva dele, de sua própria experiência19,20. Por seus pressupostos básicos, essa teoria revela-se adequada à abordagem da família que vivencia uma situação de abuso sexual.

Diante de tais considerações lançamos o seguinte questionamento: o que sabem os cuidadores de crianças acerca das necessidades das mesmas, enquanto sexualmente vitimizadas e como essas crianças são cuidadas? Para responder a esta questão, o presente estudo foi realizado tendo como objetivo aplicar a Teoria Humanística no cuidado aos familiares de uma criança em situação de abuso sexual.  

ESTRATÉGIA METODOLÓGICA

Desenvolveu-se um estudo de caso, que é um tipo de pesquisa que coleta dados de um caso particular, a fim de organizar um relatório ordenado e crítico de uma experiência, ou avaliá-la analiticamente objetivando tomar decisões a seu respeito ou propor uma ação transformadora21. Utilizamos a Teoria Humanista de Enfermagem, de Paterson e Zderad para nortear esse estudo.

Realizado em novembro e dezembro de 2005, o estudo se deu a partir de uma Organização Não Governamental, em Fortaleza-CE, que atende crianças com história de abuso sexual. Os sujeitos foram as cuidadoras (madrinha e mãe), de duas crianças do sexo feminino de 10 e 11 anos que sofreram abuso sexual, perpetrado pelo padrasto. Foi realizada entrevista semi-estruturada com as seguintes questões norteadoras: 1- O que a criança significa para você? 2- Como se sentiu após a revelação do abuso? 3- Você percebeu mudanças no comportamento da criança após o abuso? 4-Quais os cuidados que a criança precisa nesse momento? As falas foram analisadas à luz dos pressupostos da Teoria Humanística de Enfermagem, de Paterson e Zderad15.

O estudo atendeu aos princípios éticos da pesquisa com seres humanos, estabelecidos pelo Conselho Nacional de Saúde, através da Resolução 196/96. O projeto foi submetido à apreciação do Comitê de Ética de Pesquisa da Universidade Federal do Ceará, tendo sido aprovado com protocolo de número 294/05. Para manter o anonimato e facilitar a descrição do caso optou-se pela denominação de sujeito 1, a madrinha e sujeito 2, a mãe das crianças. 

ANÁLISE DOS DADOS

Conhecendo a história através das falas dos sujeitos

Através da descrição da história a seguir, é possível perceber a profundidade do envolvimento das cuidadoras e como a situação de abuso de crianças na família afeta o sistema familiar.

Sujeito 1

Sexo feminino, 32 anos de idade, vive em união consensual, dona de casa. É madrinha de uma das crianças e após a situação de abuso assume vários cuidados à mesma. A criança é do sexo feminino, 10 anos de idade. Nas entrevistas com a madrinha percebemos a necessidade de proteger a criança e proporcionar para ela os cuidados que considera necessários. Diz tratar sua afilhada como filha, já que só têm filhos do sexo masculino e que a criança atualmente passa várias horas do dia sob seus cuidados. Sobre o abuso sexual refere: “...no dia que aconteceu, tive um choque. A mãe dela (da criança) chegou em minha casa dizendo aquilo, mas que eu ficasse calada. Acho que era para não denunciar. A mãe disse que quando entrou em casa ele estava tocando ela, lá naquele lugar. Levaram para o IML e  nunca me falou se teve estupro, não conversou mais nada”.

Questionada se a criança conversa sobre o que aconteceu, respondeu: “...não sei se ela tem vergonha ou medo. Quando eu pergunto, ela muda de assunto”.

A entrevistada percebe mudanças no comportamento da criança e diz que: “...a vida dela não ficou a mesma. (...) às vezes fica triste, parada, isolada. Antes era mais alegre, conversava mais, hoje é recolhida”. Durante a entrevista manifestou o desejo de assumir a criação da menina, alegando que a mãe é usuária de drogas ilícitas e por isso não cuida bem dos filhos. Revelou que a criança também deseja morar com ela. Questionada sobre a possibilidade de recorrência do abuso, responde que acredita que cessou e “se continua é secreto”. Acrescenta: “...ela (sua afilhada) é a mais tímida pra falar disso. A outra não, falou e contou os detalhes (...) que ele chamou pra brincar debaixo do lençol, de pegar lá”. Desse modo tomei conhecimento que há outra criança na mesma família em situação de abuso sexual. A entrevistada revela que a família era provida pelo agressor e atualmente se encontra sem renda fixa, considera, também, a necessidade de carinho para que a criança supere o trauma.

Sujeito 2

Genitora das crianças, 35 anos de idade, mãe de oito filhos com idade entre 6 e 18 anos, dona de casa. Reside com os filhos, em casa de cinco cômodos em um bairro da periferia de Fortaleza. Não admite o abuso como realidade, apenas tentativa, revelando desconhecimento das formas do abuso sexual. Entretanto, no serviço onde as crianças foram atendidas constata-se que o tipo de acompanhamento que receberam é padronizado para os casos de abuso confirmado.

Sobre o significado das filhas para ela, respondeu: “...é o que me faz viver. Elas não pediram pra nascer, pra vir ao mundo. Quem tem que assumir sou eu...”. À pergunta como se sentiu ao descobrir o abuso, respondeu: “...eu não vi nada, nem ele pegando nela, nem colocando o dedo nela”. Entretanto, ao longo da entrevista revelou: “...quando eu vi foi um choque. Porque ele tava pegando nela. Se eu não tivesse chegado podia acontecer coisa pior”. Com essa afirmação contraditória, revela o conflito em admitir a situação vivida. “Fiquei transtornada porque era uma pessoa que eu confiava muito” (batendo no peito). Revela que o agressor ainda contribui com as despesas da família e lamenta não poder mais conviver com o ex-parceiro. “...ele não pode mais viver com a gente”.

Ao ser indagada sobre as mudanças no comportamento das filhas em decorrência do abuso afirma que “...não mudou nada, não ficaram com trauma”. Quanto aos cuidados às crianças entende que necessitam “...de mais cuidado, vigilância...”. “Agora quem toma conta delas é o meu filho mais velho, mas quando eu tenho que sair, ficam sós”. Falou do serviço onde as crianças são assistidas, dos atendimentos realizados e que não puderam continuar por falta de recursos para as passagens de ônibus. Refere-se aos atendimentos como se fossem “conversas com as moças” e conta que essa entidade a encaminhou para a delegacia especializada e ainda a orientou para afastar o abusador do convívio com as crianças.

A respeito dos cuidados com as filhas responde que ”...nada mudou, só fico mais tempo com elas”. Afirma que sua decisão de se separar do parceiro a faz sentir mais próxima das filhas. Sobre o que ficou da vivência, diz: ”...ficou a marca da traição. Isso é uma coisa que não sai da minha cabeça e não consigo esquecer”. Diz acreditar que o agressor cometeu o abuso sob efeito de drogas. “...ele não estava normal”. À pergunta se percebe a necessidade de algum apoio, tratamento, diz não precisar e que suas filhas estão bem e também não precisam de tratamento. A criança de 11 anos não estuda por não ter registro de nascimento. Segundo a entrevistada, a criança nasceu em casa e no parto sua mãe a auxiliou, não tendo a declaração de nascido vivo para realizar o registro. 

Processo da Enfermagem Fenomenológica da Teoria Humanística: Aplicação no Estudo

Explanamos a seguir, as etapas da Teoria Humanística de Paterson e Zderad vivenciadas junto às participantes do estudo. Enfatizamos, conforme as teóricas, que as fases são momentos que se entrelaçam, ora podemos vivenciar a relação EU-Tu, ora a relação EU-ISSO caracterizando as relações interpessoais entre  seres humanos.

O primeiro momento do processo, a preparação para o vir a conhecer, que corresponde a primeira fase da Teoria Humanística, se deu com a aproximação com a ONG e com o estudo da Teoria Humanística e do tema abuso sexual intrafamiliar.

Na segunda fase, conhecendo o outro intuitivamente, na aproximação com os sujeitos, estabelecemos uma relação Eu-Tu, nos colocando como presença, respeitando a singularidade do outro. Estabelecemos o diálogo, respeitando o tempo, a disponibilidade e a vulnerabilidade dos sujeitos. Percebemos o chamado e a resposta, com abertura para o conhecimento e discussão das percepções dos sujeitos sobre a situação de abuso sexual intrafamiliar e seu conhecimento acerca das necessidades da criança em decorrência do abuso e como as crianças são cuidadas. Percebemos como o ambiente, os vínculos afetivos e os mitos interferem nos cuidados prestados e ainda o sofrimento que a situação de abuso sexual causa em toda a família. O sentimento de culpa, a dúvida se poderia ter evitado o abuso e ainda, porque não descobriu imediatamente, são experimentados pelo sujeito 2 e relatados na literatura1,10.

O diálogo vivido permitiu a orientação sobre as necessidades decorrentes do abuso. Diante das falas encontramo-nos em uma relação Eu-Isso, que possibilita o conhecimento científico do outro. As falas foram o objeto de investigação para conhecer através da ótica dos sujeitos, como eles cuidam das crianças vitimizadas. O distanciamento do objeto permitiu o conhecimento científico do fenômeno a partir da reflexão, análise, comparação e visualização de contrastes, caracterizando a terceira e quarta fases da teoria.

A reflexão, a partir da leitura repetida das falas, fez-nos perceber a cada apreciação um aspecto novo, que se revela através do olhar científico para o fenômeno. À análise, identificamos os sentimentos de indignação, compaixão (sujeito 1) e de desamparo e impotência (sujeito 2). Percebemos a existência de idéias baseadas nos mitos e a carência de informações fundamentadas nas verdades a partir de estudos científicos.

A comparação das falas permitiu a percepção dos contrastes do sujeito 1 e do sujeito 2. O primeiro demonstra seu interesse no bem estar e estar melhor da afilhada, através do relato de cuidados com alimentação e saúde e o acolhimento de suas queixas, visando atender suas necessidades. O segundo, não admitindo o abuso, negligencia as necessidades das crianças, inclusive a necessidade de expressar seus sentimentos1,7.

Outro aspecto que emerge nas falas é o maior conhecimento do sujeito 1 em relação aos traumas e ao risco de revitimização. São aspectos importantes para os cuidadores, pois os levam a nutrir o “bem estar” e o “estar melhor” daqueles de quem cuidam e que está relacionado ao próprio conceito de saúde15. Outro contraste é a percepção maior de manifestação de afeto no sujeito 1 que no sujeito 2, sendo a primeira madrinha e a segunda mãe das crianças.

Para a síntese complementar do conhecimento do outro, quinta fase da teoria, consideramos dois aspectos ausentes nas falas. Os sujeitos percebem a importância do afastamento do agressor do convívio com as crianças, o que diminui a exposição à revitimização e aumenta o sentimento de proteção nas vítimas6. Por outro lado, ambos os sujeitos demonstram não perceber a necessidade de assistência à saúde das crianças vitimizadas.

Considerando a importância dos sujeitos como cuidadores, torna-se urgente educar para o cuidar, a partir do conhecimento do significado da experiência vivida. Percebe-se nos sujeitos a perplexidade pelo contato com o novo, inesperado, indesejado, o que é relatado em estudos diversos1,6. As mudanças no cotidiano das cuidadoras, em decorrência da revelação do abuso, as tornam vulneráveis, temerosas em relação ao futuro. Diante de experiências traumáticas, cada sujeito busca mecanismos próprios para lidar com a situação15. Falar sobre a experiência abertamente ou de maneira velada são contradições que denotam os mecanismos utilizados por cada cuidadora. 

Intervenções: orientações

Considerando o caráter terapêutico do relacionamento estabelecido, foram fornecidas orientações baseadas na literatura específica, no sentido de levar à compreensão de que:

1. O abuso sexual apresenta-se de várias formas, com ou sem contato físico. Nas formas com contato físico, além do estupro existem práticas que geralmente não deixam marcas no corpo, mas interferem na estruturação da personalidade da criança e trazem sofrimento emocional6, 2, 1.

2. O abuso sexual causa prejuízos imediatos para a auto-estima, afetividade, socialização, desempenho escolar, etc4, 5, 7.

3. Os danos à vítima não se limitam ao momento, à época do abuso, podendo se estender por toda a vida, com prejuízos para as relações afetivas, profissionais, sociais, etc1, 6, 7.

4. O apoio dado por pessoas afetivamente significativas fortalece a vítima, auxiliando-a a lidar com a situação e defender-se de novos abusos1, 20, 22.

5. As pessoas submetidas ao abuso sexual têm maior tendência à adição, como álcool e outras drogas4, 6.

6. Existem abordagens diversas no tocante ao apoio psicossocial, que podem ajudar às crianças e suas famílias a planejarem suas vidas a partir da situação vivida, mas se percebendo mais e maior do que essa situação1, 2, 22, 23, 24.

7. Os familiares de crianças abusadas sofrem e necessitam de suporte terapêutico para enfrentarem a situação1, 22.

8. É possível que crianças sejam abusadas novamente pelo mesmo abusador ou por outros. A baixa auto-estima da vítima, ocasionada pelo abuso e a negligência dos cuidadores contribuem para a maior vulnerabilidade. Deve-se tomar cuidado em relação ao abusador conhecido e a todas as pessoas com quem as crianças convivem ou têm contatos esporádicos1, 10.

9. A denúncia de um familiar provoca sofrimento na família, refletindo no cuidado à criança. Por isso, os familiares precisam de suporte, como uma rede social de apoio1, 20.

Percebendo a necessidade de uma atuação mais prática e direta no caso estudado, algumas medidas foram tomadas, como:

1. Encaminhamento da mãe para atendimento psicológico;

2. Encaminhamento para o Centro de Apoio Psicossocial, para atendimento em relação às necessidades psicossociais, devido a drogadição e a providência de recursos visando o retorno aos atendimentos realizados pelo serviço especializado que atendeu as crianças;

3. Notificação do caso da criança de 11 anos ao Conselho Tutelar para providência do registro de nascimento e matrícula na escola, para o ano letivo de 2006. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo partiu da necessidade de conhecer o que sabem os cuidadores de crianças acerca das necessidades das mesmas enquanto sexualmente vitimizadas e como essas crianças são cuidadas. É imprescindível a compreensão das relações estabelecidas nas famílias de crianças sexualmente abusadas e o conhecimento da visão destas acerca da situação vivida. Para tanto, a Teoria de Enfermagem Humanística de Paterson e Zderad mostrou-se adequada.

O desenvolvimento do estudo permitiu a reflexão sobre o ser cuidador de crianças em situação de abuso sexual. Torna-se evidente a necessidade de uma maior aproximação entre os profissionais de saúde e os familiares das vítimas, considerando o sofrimento causado pela perplexidade, indignação e conflitos resultantes dessa vivência. Os familiares devem ser tomados como alvo dos cuidados dos profissionais de saúde, com vistas ao bem estar e o estar melhor do cuidador, que por sua vez se refletirá no bem estar e no estar melhor da criança.

No processo de Enfermagem da Teoria Humanística, a meta é o bem estar e o estar melhor, que pode ser observado através da mudança do comportamento dos sujeitos, sugerindo uma mudança no significado da experiência relatada. É possível a percepção imediata da compreensão das orientações oferecidas e da adesão aos encaminhamentos realizados. Outras repercussões da aplicação desse processo podem ser avaliadas a médio e longo prazo.

O caso estudado apresenta várias semelhanças com a descrição da literatura, como a forma do abuso, a relação do abusador com as vítimas e os desdobramentos através do sistema de garantia de direitos. As condições sócio-econômicas constituem-se aspecto agravante, que demandam mais do que orientações, são necessárias medidas protetivas que requerem ações multiprofissionais e intersetoriais, só possíveis com uma atuação em rede.

Realizamos reuniões com membros da ONG para discussão da forma de encaminhamento das entrevistadas, quando foi identificada a necessidade de ampliar o atendimento para outras famílias da localidade. A repercussão do estudo no serviço gerou a formação de um grupo terapêutico com familiares de crianças em situação de abuso sexual. 

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Contribuição dos autores:
-Concepção e desenho:
Lygia Maria Pereira da Silva, Maria Vera Lúcia Moreira Leitão Cardoso.
 O artigo foi elaborado a partir de um estudo de caso realizado na disciplina Enfermagem Clínico-cirúrgica, durante o mestrado em Enfermagem Clínico-cirúrgica, cursado na Universidade Federal do Ceará. 
-Análise e interpretação:  :
Lygia Maria Pereira da Silva, Marli Terezinha Gimeniz Galvão, Maria Vera Lúcia Moreira Leitão Cardoso.
-Escrita do artigo: Lygia Maria Pereira da Silva
-Revisão crítica do artigo:
Lygia Maria Pereira da Silva, Marli Terezinha Gimeniz Galvão, Thelma Leite de Araújo, Maria Vera Lúcia Moreira Leitão Cardoso.
-Aprovação final do artigo: :
Lygia Maria Pereira da Silva, Marli Terezinha Gimeniz Galvão, Thelma Leite de Araújo, Maria Vera Lúcia Moreira Leitão Cardoso.
-Colheita de dados: Lygia Maria Pereira da Silva
Provisão de pacientes, materiais ou recursos: Não se aplica
Expertise em Estatística: Não se aplica (estudo qualitativo)
Obtenção de suporte financeiro: Autofinanciado
Pesquisa bibliográfica: Lygia Maria Pereira da Silva
Suporte administrativo, logístico e técnico: Não se aplica

Endereço para correspondência: Rua Nogueira de Souza, 80, Pina - Recife, Pernambuco. CEP: 51110-110. E-mail: lygiapera@yahoo.com.br                                                

Received: Nov 25th, 2007
Revised:
Jan 24th, 2007
 Accept Mar 17th, 2007