ORIGINAL

 

Repercussões da pandemia da COVID-19 na configuração das relações interpessoais da Enfermagem: abordagem qualitativa

 

Carla Aparecida Spagnol1, Jéssica Gabrielle Rossi Silva Rocha1, Cecília Moreira Torres1

 

1Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil

 

RESUMO

Objetivo: identificar as repercussões da pandemia da COVID-19 nas relações interpessoais no ambiente laboral, relatadas pelos profissionais da Enfermagem de um hospital universitário do estado de Minas Gerais. Método: estudo descritivo de abordagem qualitativa com entrevista semiestruturada realizada com a equipe de Enfermagem de um hospital universitário de Belo Horizonte. Os dados foram organizados a posteriori, a partir da Análise de Conteúdo temática. Resultados: as respostas evidenciaram medo do desconhecido e vulnerabilidade dos profissionais da Enfermagem; sobrecarga de trabalho e estresse que interferem de forma paradoxal nas relações de trabalho; impessoalidade e relações de poder, além das normas institucionais versus as relações afetivas que permeiam o trabalho. Conclusão: as repercussões da pandemia na configuração das relações interpessoais dos profissionais de Enfermagem no ambiente de trabalho, podem impulsionar reflexões sobre as relações mais horizontais e dialogadas, com base na interprofissionalidade para a prestação de um cuidado integral, afetivo e humanizado.

 

Descritores: Enfermagem; COVID-19; Relações Interpessoais.

 

INTRODUÇÃO

No início do ano de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) caracterizou como pandemia a Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 (SARS-Cov2), uma doença causada pelo novo coronavírus, que ficou conhecida como COVID-19(1).

Por se tratar de uma nova doença, a COVID-19 modificou a dinâmica dos serviços de saúde para atender a excessiva demanda de pacientes infectados. Houve a necessidade de se estabelecer novos fluxos para o processo de trabalho, elaborar protocolos de segurança do paciente e do trabalhador, realizar capacitações constantes, entre outras ações. Isso resultou em uma sobrecarga física, psicológica e emocional nos profissionais de saúde. No contexto hospitalar, as equipes de Enfermagem, constituem-se como protagonistas atuando no cuidado prestado aos usuários nas 24 horas, o que leva ao esgotamento profissional, que em tempos de pandemia é acentuado devido à exposição, desconhecimento e insegurança no trabalho, gerando sentimentos como: medo, estresse, ansiedade e exaustão. Estes e outros fatores impactam diretamente nas relações interpessoais estabelecidas no ambiente laboral(2-3).

Assim, além do desgaste físico e mental, outro aspecto que precisa ser considerado são as relações que podem causar sofrimento no trabalho, sendo que um dos elementos que pode contribuir para superar essas questões é o investimento em tecnologias relacionais.

Nessa perspectiva, destacam-se as tecnologias leves, relacionadas a tudo que é utilizado para favorecer o encontro entre os indivíduos, tais como: “escuta, empatia, reconhecimento, porosidade, conhecimentos produzidos a partir da experiência e agenciados pelo encontro, entre outros”(4).

Pode-se dizer que são nas enfermarias, nos postos de Enfermagem, nas salas de reuniões e outros locais em que atuam os profissionais no hospital que acontecem os encontros entre os gestores, os trabalhadores, os usuários e seus familiares, e se constitui em um locus de potência criativa do trabalho em saúde, que propicia a produção do conhecimento, inovações e constantes transformações nas relações e no processo de trabalho.

Assim, no cotidiano dos serviços a micropolítica do trabalho em saúde se dá a partir de uma “dinâmica processual em que há forças que estabelecem as relações com as outras forças e com ela mesma, produzindo processos de subjetivação; forças em relação”(5). Portanto, “as forças que estão operando no cotidiano constituem campos de disputa, que se instauram nos atos relacionais do campo da micropolítica, nas relações de poder, nas relações intersubjetivas”, ou seja, nas relações que se estabelecem entre os gestores, os trabalhadores e os usuários que se instauram os campos de força, constituindo os processos de subjetivação(4).

O desejo é fundamental nos processos de subjetivação. Na corrente teórica da esquizoanálise este não é entendido como falta ou carência, como na psicanálise. Assim, não se produz desejo para suprir algo e não se precisa de nada para se preencher, ele é algo que apenas transborda. Nessa ótica, é o desejo que produz a realidade e constitui as relações. Deleuze propôs estabelecer uma política, elaborar a cartografia dos desejos humanos, traçando os mapas das forças que os circundam e os atravessam, forças essas que se precisa lidar para construir as formas de subjetividade ou existência, as quais os constituem(6).

Na área da saúde, os processos de subjetivação são marcados pelos efeitos mútuos que gestores, trabalhadores e usuários produzem entre si em seus encontros, são processos transitórios, que estão em contínuo movimento e, portanto, propensos às mudanças constantes. Dessa forma, torna-se necessário fazer uma análise micropolítica do cotidiano dos serviços de saúde, devido a essa “dinâmica mutante, de constante disputa e produção [...]. Isso porque o acontecimento não é um dado, mas um acontecendo, singular a cada encontro e situação”(4).

Nesse contexto, tem-se como cenário, deste estudo, um hospital público e universitário, que se tornou referência para o município de Belo Horizonte (MG), no atendimento de média e alta complexidade para os pacientes suspeitos ou infectados pelo novo coronavírus. A partir da experiência das autoras, como docente e estagiárias de Enfermagem, elas consideraram este serviço de saúde como um campo de forças e de disputas, constituído a partir dos diferentes encontros entre os professores, os profissionais de saúde, os gestores, os usuários e seus familiares, onde estão presentes as relações de poder, diversos conflitos e tensões que são fabricados e merecem ser analisados na medida em que são desvelados.

Além disso, a pandemia da COVID-19 trouxe sentimentos como; medo, angústia, incertezas e evidenciou ainda mais a precarização do trabalho(7), o que reforçou a motivação para realizar este estudo, ou seja, que pode trazer à tona as contradições vivenciadas no cotidiano do hospital universitário, a partir de uma análise micropolítica.

Dessa forma, a “análise micropolítica se propõe a pensar os vários acontecimentos no cotidiano do mundo do cuidado”(4). Assim, a micropolítica é entendida como o “agir cotidiano dos sujeitos, na relação entre si e no cenário em que eles se encontram”(8).

Portanto, estudar como as relações interpessoais têm se configurado na prática profissional entre a equipe de Enfermagem, os demais profissionais de saúde, pacientes e seus familiares, no contexto da pandemia, permite mapear os processos de subjetivação a partir das relações de poder, e que na área da saúde torna-se ainda mais evidente, visto ser um processo que se produz em ato.

O poder constitui-se como uma relação e, por isso, Foucault ao tratar deste tema utilizava a expressão - relações de poder. Para esse autor, o poder não é um lugar que se ocupa, nem um objeto que se possui, mas sim uma relação de força que se disputa(9).

Neste sentido, o poder pensado como relações de poder traz a ideia de força, visto que ele é “[...] precisamente o elemento informal que passa entre as formas de saber, ou por baixo delas. Por isso ele é dito microfísico. Ele é força, e relação de força, não forma. E a concepção das relações de forças em Foucault, prolongando Nietzsche, é um dos pontos mais importantes de seu pensamento”(10:112).

A partir dessas considerações, e de um olhar específico para a equipe de Enfermagem, emergiu o seguinte questionamento: no contexto da pandemia da COVID-19 quais repercussões foram identificadas pelos profissionais da Enfermagem nas relações interpessoais no hospital universitário?

O objetivo deste estudo foi identificar as repercussões da pandemia da COVID-19 nas relações interpessoais no ambiente laboral, relatadas pelos profissionais da Enfermagem de um hospital universitário do estado de Minas Gerais.

Este estudo é relevante, pois, investigar como as relações interpessoais estão se configurando no cenário da pandemia, a partir da micropolítica do cotidiano de trabalho pode descortinar as fragilidades e as potencialidades dos encontros, a fim de produzir o cuidado em saúde de modo integral, compartilhado e interprofissional. Além disso, os seus resultados podem provocar reflexões e trazer outras questões que apontam os aspectos para as intervenções e as pesquisas futuras.

 

MÉTODO

Esta é uma pesquisa descritiva realizada dentro de uma abordagem qualitativa. A pesquisa descritiva permite caracterizar um determinado grupo ou fenômeno, e tem como um dos seus objetivos, identificar opiniões, atitudes e crenças de uma população(11). E a abordagem qualitativa consiste em aprofundar uma realidade em que o objeto de estudo não pode ser quantificado, tendo em vista que busca significados, aspirações, crenças e valores dos indivíduos, que fazem parte de determinada realidade social, a ser explorada pelos pesquisadores(12).

O cenário da pesquisa foi um hospital geral, público e universitário, localizado em Belo Horizonte, Minas Gerais, que possui aproximadamente 504 leitos para atender exclusivamente os usuários do Sistema Único de Saúde (SUS).

Os participantes do estudo foram profissionais de Enfermagem que atenderam ao seguinte critério de inclusão: ser enfermeiro, técnico ou auxiliar de Enfermagem, que estava atuando em um dos setores de referência para o atendimento de pacientes infectados ou suspeitos de COVID-19, sendo estes: um Ambulatório de Especialidade, a Unidade de Clínica Médica, o Pronto Atendimento e o Centro de Tratamento Intensivo Adulto. Os critérios de exclusão foram: trabalhadores que estavam de férias ou afastados das atividades na época da coleta de dados.

Para preparar a entrada dos pesquisadores no campo, realizou-se uma reunião com os coordenadores de Enfermagem dos referidos setores, para apresentar o projeto de pesquisa e solicitar a colaboração dessas chefias na divulgação do estudo entre os membros da equipe de Enfermagem. Além disso, utilizou-se um cartaz e um vídeo que foram enviados em grupos de WhatsApp para convidar as equipes a participarem da pesquisa.   

Assim, todos os 319 trabalhadores da Enfermagem, distribuídos da seguinte forma nos setores pesquisados: 15 profissionais no Ambulatório; 96 na Unidade de Clínica Médica; 119 no Pronto Atendimento e 89 no Centro de Tratamento Intensivo Adulto foram convidados a participarem da pesquisa, mediante as diversas formas de divulgação utilizadas.

A participação na pesquisa foi voluntária e a partir de um contato realizado por e-mail ou por telefone foi agendada a entrevista. Participaram do estudo 15 trabalhadores da Enfermagem, sendo 10 enfermeiros e cinco técnicos de Enfermagem, contemplando os profissionais que atuavam nos quatro setores pesquisados.

Apesar de nos referirmos ao longo do texto à equipe de enfermagem, que é composta pelas três categorias profissionais (enfermeiro, técnico e auxiliar de enfermagem) nos resultados foram analisadas somente as respostas dos enfermeiros e dos técnicos de enfermagem, uma vez que nenhum auxiliar de Enfermagem se voluntariou para participar da pesquisa.

As entrevistas foram semiestruturadas e todas conduzidas pela coordenadora do estudo, que contou com a colaboração de uma enfermeira ou de acadêmicas de Enfermagem, as quais faziam parte da equipe da pesquisa. Para conduzir a entrevista foi utilizado um roteiro, contendo as questões relacionadas ao perfil dos participantes e a seguinte questão norteadora: sendo integrante da equipe multiprofissional como as relações interpessoais têm se configurado na sua prática profissional no contexto da pandemia? Essa questão permitiu explorar junto aos participantes como as relações interpessoais estavam se configurando na prática profissional, entre a equipe de Enfermagem, os demais profissionais de saúde, pacientes e familiares no cotidiano dos serviços supracitados.  

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (COEP), sob o Parecer nº 4.500.629 e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi enviado aos participantes por e-mail, para que eles dessem o seu consentimento antes de iniciar as entrevistas.

As entrevistas foram realizadas de forma virtual por meio de uma plataforma digital, no período de junho a novembro de 2021, e teve uma duração média de aproximadamente 70 minutos, as quais foram gravadas e, posteriormente, transcritas. Mesmo os participantes sendo de setores diferentes, observou-se certa repetição das informações, obtendo-se a saturação dos dados, critério utilizado neste estudo para encerrar a coleta de dados.

O critério da saturação dos dados é amplamente utilizado nas pesquisas qualitativas como determinante para a interrupção da coleta de dados e a definição do tamanho da amostra(13).

Para garantir o anonimato, as entrevistas foram codificadas com a letra “E” acompanhada de um número que variou de 1 a 15. Além disso, para diferenciar a categoria profissional da equipe de Enfermagem e o setor de atuação dentro do hospital, foram utilizadas as letras “ENF” para enfermeiro e “TE” para técnico de Enfermagem, acompanhado das letras “CTI” para Centro de Tratamento Intensivo Adulto, “CM” para Clínica Médica, “PA” para Pronto Atendimento e “AMB” para Ambulatório.

A análise dos dados apreendidos ocorreu por meio da técnica de Análise de Conteúdo temática. A Análise de Conteúdo foi organizada em três etapas: pré-análise, exploração do material e tratamento dos dados(14). Na etapa de pré-análise, destacaram-se as frases mais significativas, a partir da leitura flutuante das entrevistas na sua totalidade, aplicando os princípios de exaustividade, representatividade, homogeneidade e pertinência; na etapa, de exploração do material, foram organizadas as categorias de discursos similares e recorrentes apreendidos por meio dos relatos dos entrevistados; e na etapa de tratamento dos resultados, inferência e interpretação foram construídas as unidades temáticas. Assim, foram elaboradas quatro categorias temáticas, definidas a posteriori, emergindo do conteúdo das respostas.

 

RESULTADOS

Dos 15 trabalhadores pesquisados, seis atuavam no Centro de Tratamento Intensivo Adulto (CTI), seis na Clínica Médica (CM), dois no Pronto Atendimento (PA) e um no Ambulatório de Especialidades (ABM). A idade variou entre 34 e 55 anos; 11 eram do sexo feminino e quatro do sexo masculino. O tempo médio de formação foi de 14,13 anos e a data de admissão no hospital variou entre o ano de 1998 e 2020. A carga horária de trabalho que prevaleceu (oito participantes) foi a escala 12x36, com uma jornada semanal de 36 horas.

A seguir, apresentam-se as quatro categorias temáticas que emergiram a partir da organização dos dados coletados por meio das entrevistas, permitindo identificar as repercussões nas relações interpessoais no hospital universitário, relatadas pelos profissionais de Enfermagem.

 

Medo e vulnerabilidade dos profissionais da Enfermagem: fatores que repercutiram nas relações interpessoais com os pacientes e seus familiares  

Diante da pandemia, os profissionais entrevistados relataram ter insegurança e medo, por lidarem com um vírus pouco estudado, com sentimentos que marcaram e influenciaram suas relações interpessoais, principalmente, com os usuários. Ao prestarem os cuidados, os profissionais da Enfermagem se depararam com o medo iminente da finitude das suas vidas, mediante os índices alarmantes de contaminação e de mortalidade, principalmente dos pacientes internados.

 

A paciente estava tossindo muito, ela não estava tendo mais força para tossir, até que decidiu intubar ela, e aquilo foi muito marcante para mim. Eu tive muito medo da morte daquela paciente, eu tive muito medo de voltar para casa naquele dia, por causa dos meus pais, da minha filha. [...] foi uma noite péssima, foi a pior noite de Natal que eu tive, e aquilo me marcou muito. (E5 ENF CTI)

 

Nesse contexto, os profissionais da Enfermagem também se perceberam tão vulneráveis quanto os pacientes que eles prestavam cuidados, pois, eram considerados pela sociedade e por eles mesmos, uma espécie de vetor de contaminação do novo coronavírus. Isso repercutiu diretamente nas relações interpessoais com as suas famílias, uma vez que necessitaram se isolar dos seus pais, filhos, esposas, maridos e outros familiares.

 

A gente vivenciou um momento de muitas angústias, de muitos medos, inseguranças, no que diz respeito, ao manejo com esse paciente COVID versus um medo de se contaminar e contaminar os nossos, né!? (E6 ENF CTI)

 

Ao perceberem a sua vulnerabilidade, os profissionais da Enfermagem, em alguns momentos, se colocaram no lugar do paciente e dos seus familiares, apontando a necessidade de também precisarem de cuidados, diante da possibilidade de se contaminarem com o novo coronavírus. Ao mesmo tempo que os profissionais da Enfermagem queriam proteger sua própria família da doença, eles precisavam cumprir com os deveres de sua profissão, mesmo com a insegurança que sentiam pelas poucas informações que tinham a respeito do vírus.

 

A gente sentiu na pele pela primeira vez que a doença do paciente estava entre nós, antes era uma coisa que o paciente tem e nós não temos. Nos aproxima, né, do outro, por que antes por mais sensível que você fosse ‘ah ele está com câncer, está com DPOC, não vai me atingir’, mas agora ele está com algo que eu posso ter a qualquer momento, acho que mesmo com todas essas dificuldades, os profissionais ficaram mais sensíveis, e olharam mais tanto para o paciente, quanto para o funcionário. (E3 ENF CTI)

 

O cenário da pandemia possibilitou que os profissionais da Enfermagem pesquisados, olhassem para seus medos e admitissem suas vulnerabilidades, o que pode contribuir para novos processos de subjetivação, ancorados na ideia de que o cuidado é produzido por “gente que cuida de gente”, e não por super-heróis que são inatingíveis, e que estão prontos para “salvar o mundo”.

 

[...] o principal nessa pandemia trabalhando na linha de frente é essa insegurança de voltar para casa. Essa insegurança de ser infectado e levar para outras pessoas, esse medo mesmo, a insegurança mesmo de estar ali, ao mesmo tempo você sabe que é sua missão estar ali fazendo isso, mas isso interfere demais na qualidade de vida das pessoas que está ali na linha de frente. (E5 ENF CTI)

 

Ressalta-se que uma técnica de Enfermagem apesar de compreender as dificuldades e os medos dos usuários, ela percebeu que nem sempre eles entendem os problemas que a equipe também vivencia, querendo que suas necessidades fossem atendidas rapidamente e não se colocando no lugar do profissional.

 

A porta de entrada do serviço deixa a gente extremamente estressado [...], por exemplo tem pessoas que omitem que está com estado gripal e a gente pode se contaminar né, então isso dá um certo temor na gente sim, a gente fica num grau de estresse muito grande [...] eles querem ser consultados rapidinho né, só que eles esquecem que quem cuida deles, precisam do cuidado também[...]. (E15 TE AMB)

 

A missão de cuidar atribuída aos profissionais da Enfermagem construída historicamente de forma abnegada e submissa foi colocada em xeque. Nessa perspectiva, a aposta das autoras é de se pensar em formas mais autônomas e coletivas de produção do cuidado, a partir de encontros mais afetivos e com sensibilidade junto aos pacientes e demais profissionais, e atender às necessidades dos usuários no processo de saúde-doença, bem como dos profissionais no processo de trabalho.

 

Sobrecarga de trabalho e o estresse ocupacional: fatores que repercutiram de forma paradoxal nas relações interpessoais da equipe de Enfermagem

A partir do relato dos participantes evidenciou-se que a sobrecarga de trabalho e o estresse laboral foram fatores que repercutiram de forma paradoxal nas relações interpessoais na equipe de Enfermagem. Por um lado, houve o aumento dos conflitos devido à tensão do cenário pandêmico, mas por outro, identificou-se uma maior união entre os trabalhadores por estarem enfrentando dificuldades semelhantes, representando a equipe como se fosse uma “grande família”.

 

A Enfermagem com a Enfermagem, no início foi muito difícil, era briga, parecia briga de irmãos, de dar patada um no outro, quando via você dava uma má resposta, estava todo mundo muito estressado, então foi muito complicado. Com o passar do tempo, virou amor de irmão, sabe, de todo mundo se abraçar, hoje em dia, tenho muito orgulho de estar nessa equipe, porque a gente passou muitas dificuldades e tudo nos uniu muito, então essa nossa equipe, hoje, de Enfermagem se uniu muito, está muito legal. (E4 ENF CTI)

 

Eu percebi assim que a pandemia deu uma unida mais sabe, assim, aproximou mais os profissionais [...]. Mas os profissionais estão exaustos, todo mundo cansado, então quando a gente está cansada, estressada, os momentos de estresse, de discussões podem até ser mais intensos. (E14 ENF PA)

 

Na maioria das vezes, o cotidiano de trabalho da Enfermagem é marcado por relações hierárquicas e disputas entre as três categorias profissionais (enfermeiros, técnicos e auxiliares de Enfermagem). No entanto, os entrevistados relataram que esses momentos de crise e dificuldades vivenciados no contexto da pandemia foram considerados como potenciais formadores de vínculos e união da equipe. Além disso, houve reconhecimento e valorização da importância do papel do enfermeiro gestor para a condução da assistência de Enfermagem e do trabalho em equipe, como uma estratégia para superarem juntos as adversidades encontradas.

 

Em relação ao técnico de Enfermagem com enfermeiro a gente virou tipo parceirão, sabe, enfrentando uma guerra. Chegou um momento que a gente não tinha delimitado qual era o serviço do enfermeiro e qual era o serviço do técnico de Enfermagem mesmo com a descrição de autonomia, de submissão e todas essas coisas, mas, o vínculo aumenta muito a partir do momento que você está passando por uma dificuldade e tem apoio. A condução da coordenação foi muito importante [...] foi conduzido com muita sabedoria. (E10 TE CM)

 

Sentimento de impotência e relações de poder: fatores que repercutiram nas relações interpessoais entre a Enfermagem e os demais profissionais de saúde  

O sentimento de impotência vivenciado pelos profissionais da Enfermagem entrevistados, contribuiu para que suas relações interpessoais com os demais profissionais de saúde se tornassem mais próximas, diante do entendimento de que todos precisavam se unir para juntos enfrentarem o desconhecido e as dificuldades encontradas no contexto da pandemia.

O cenário vivido por eles mostrou a necessidade de os profissionais da Enfermagem construírem coletivamente outras formas de se relacionar e produzir o cuidado, substituindo a forma hierárquica das relações de trabalho e fragmentada de assistir os pacientes, instituída no hospital. Para os entrevistados, uma estratégia que propiciou a união das equipes e buscou fortalecer o trabalho interprofissional para a prestação de uma assistência integral aos usuários foram as capacitações realizadas, a partir de encontros coletivos, para discutir o processo de trabalho e capacitar os profissionais para atuarem no novo contexto.

 

Em relação à equipe multiprofissional, as relações se fortaleceram no sentido de que no início da pandemia todos se viram naquele pensamento, assim: “ninguém sabe nada então nós temos que construir juntos”. Então foi muito bom porque todos os treinamentos eram para todo mundo. No treinamento de intubação tinha técnico, tinha enfermeiro, tinha fisioterapeuta, a equipe multiprofissional toda do CTI estava ali. Tinha informação específica para o médico, para o enfermeiro, para o fisioterapeuta, mas todo mundo estava sabendo o que era função de todo mundo. Eu vi o tanto que nós nos aproximamos e foram diversos treinamentos desse tipo. E a construção realmente foi conjunta. (E2 ENF CTI)

 

Em contrapartida, os profissionais entrevistados mencionaram que as relações de poder ganharam força no cotidiano de trabalho durante a pandemia, pois tiveram que disputar, sobretudo, com os médicos, as diversas decisões relacionadas à (re) organização do processo de trabalho para atender aos pacientes com a COVID-19. Assim, alguns participantes da pesquisa afirmaram que as relações conflituosas se intensificaram neste cenário, devido ao corporativismo médico, que contribuiu para que as principais decisões fossem tomadas essencialmente por estes profissionais, sem a participação dos demais trabalhadores da saúde.

Uma das decisões tomadas, por exemplo, no CTI Adulto, um dos setores que mais modificou a sua estrutura física e o seu processo de trabalho para atender aos pacientes com a COVID-19, estava relacionada ao lugar “privilegiado” destinado aos médicos durante o plantão. A partir do relato dos participantes, identificou-se que, após a corrida de leitos, que se dava no início do plantão, ficou decidido que os médicos ficariam em uma sala do lado de fora do setor, aguardando serem chamados para alguma intercorrência com os pacientes. Dessa forma, permanecia dentro da unidade somente a equipe de Enfermagem para atender aos pacientes com as complicações da COVID-19.

Diante dessa decisão sustentada nas relações do poder médico, os profissionais da Enfermagem se sentiram abandonados, desencadeando um sentimento de solidão. Além disso, eles não concordaram com essa decisão, pois, estaria expondo com maior frequência ao vírus toda a equipe de Enfermagem e os enfermeiros tiveram que gerenciar os diversos problemas que não estavam na sua governabilidade.

 

Eu comecei a ficar com muito medo mesmo nesse começo, de ficar lá dentro o tempo todo, dá uma revoltazinha sabe ‘por que que é só a gente, porque que o médico não tem que ficar aqui dentro também, o tempo todo? Por que não tem um fisioterapeuta aqui o tempo todo? se a equipe é multidisciplinar?’, mas até hoje não tem. A equipe médica é bem assim ‘nós queremos isso e pronto’. É um poder muito grande, isso me incomoda muito, muito, muito mesmo [...] Então, com a equipe médica eu acho que a relação piorou, eles estão lá e a gente está aqui. Eu acho que ficou muito ruim; com a diretoria, a sensação da Enfermagem também é assim, que é imposto, tipo “eu sou o chefe e vocês o empregado, aceitem, engole’, para todo mundo é isso. (E4 ENF CTI)

 

A partir dos relatos, que nos permitiram fazer uma análise da micropolítica dos setores pesquisados e em específico do CTI Adulto, pode-se dizer, que a Enfermagem é uma profissão que historicamente tem um poder de mobilização frágil e precário para se posicionar perante aos demais profissionais, para construir outras formas de gestão do cuidado, em que as decisões sejam tomadas de forma descentralizada e colegiada.     

 

Impessoalidade e o rompimento com as normas institucionais: fatores que repercutiram nas relações interpessoais com os pacientes e familiares

O distanciamento social e os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), inclusive o vestuário, necessários para a prevenção da disseminação da COVID-19 e importantes para a segurança do trabalhador, contribuíram para que os profissionais se sentissem como “robôs”, ausentes de sentimentos e emoções, interferindo de forma significativa na prestação do cuidado, em que a base é relacional. Mas, essa constatação não os impediu de, no cotidiano de trabalho, estarem preocupados uns com os outros, o que reforça a necessidade de se produzir coletivamente o cuidado de Enfermagem, a partir de um efetivo trabalho em equipe.

 

A gente ficou mais robotizado, a gente ficou meio mecânico, então diminuiu essa qualidade, essa relação interpessoal [...]. Então, por mais que a gente esteja um pouco mais frio, não podendo né ter esse contato tão próximo, ao mesmo tempo a gente está se preocupando mais um com o outro. (E3 ENF CTI)

 

Com a pandemia da COVID-19, foram estabelecidos alguns protocolos para normatizar o processo de trabalho e prevenir a disseminação do novo coronavírus, porém, em diversos momentos as normas entraram em conflito com os processos de subjetivação dos trabalhadores, trazendo à tona a importância do vínculo, do desejo e do afeto nas relações profissionais.

 

[…] nós não podemos colocar uma pessoa exposta ao ambiente contaminado, mas é direito da família reconhecer o corpo do seu ente querido […], a gente, por exemplo, separou a porta para a família entrar, capacitava o familiar para usar os EPIs e ele ficava dois metros de distância do corpo; e, quem que vai respeitar esses dois metros?! Você já orientou, mas, a família quer abraçar, e ele (paciente) está todo contaminado de COVID. Então, foi muito angustiante, porque eu tinha que atender as exigências legais na instituição, que não poderia contaminar outros e, teria que lidar também com as questões humanitárias e afetivas. Entre o prescrito e o real, aí tem uma divergência muito grande quando você está na linha de frente, né!? (E6 ENF CTI)

 

Os trabalhadores da Enfermagem se preocuparam com os usuários por não poderem receber visitas, buscando estratégias para acolhê-los e até fazerem muitas vezes o papel do familiar. Isso fez com que estes profissionais, em alguns momentos, rompessem com as normas que estavam instituídas, por exemplo, as visitas presenciais dos familiares, buscando outras formas de cuidado, pautadas inclusive na associação entre a tecnologia leve e as tecnologias duras.

 

E nesse quadro de pandemia, requer muito mais da gente uma proximidade com ele (o paciente), pois teremos que fazer o papel além de técnico de Enfermagem, fazer o papel de familiar dele, vai ter que estar próximo e auxiliando em tudo o que for preciso. (E8 TE CM)

 

Eu tenho que dar um jeito, tem que dar uma melhorada para o paciente, então a gente escreveu um projeto, eu mandei lá para a ouvidoria [...] meu projeto é ter um celular no setor para o familiar mandar áudio, coisas que possam estimular o paciente, fotos dos familiares, tudo mais, e aí a gente pegar o celular e colocar para o paciente ouvir, e o paciente que tenha condições de gravar um áudio para a família também, que mande pelo celular para a família. (E13 ENF PA)

 

Com o advento da pandemia, os relacionamentos interpessoais passaram a ser fortemente mediados pelas tecnologias digitais, possibilitando, por exemplo, por meio de um celular estar acessível ao outro, o que minimiza o sentimento de abandono ou solidão dos pacientes que estão em isolamento.

 

DISCUSSÃO

Os resultados mostraram a configuração das relações interpessoais no contexto da pandemia no hospital universitário em estudo, a partir das relações micropolíticas e dos processos de subjetivação.

Nos processos de subjetivação, Deleuze e Guattari, apontam três tipos de linhas que constituem as relações: as de segmentaridades duras; as de segmentaridades maleáveis e as linhas de fuga(6).

As linhas de segmentaridades duras são aquelas que estipulam os grandes conjuntos molares, as dualidades como por exemplo: o dominante e o dominado, mas, também são aquelas que estabelecem os papéis sociais tais como: patrão-operário e outros(6).

Nessa perspectiva, pode-se dizer que no hospital universitário em estudo, as relações estabelecidas entre os profissionais da Enfermagem e os usuários na maioria das vezes são configuradas a partir da dualidade profissional-usuário, constituída por linhas de segmentaridade dura, em que se denotam uma distância entre a vida do trabalhador e do seu paciente. Essa lógica exalta o saber técnico-científico, colocando o profissional da Enfermagem em uma posição de superioridade e inatingível. No entanto, no contexto da pandemia observou-se que esse tipo de relação interpessoal foi colocado em xeque diante de sentimentos como o medo e a insegurança vivenciados de forma intensa, devido ao desconhecimento inicial sobre a COVID-19 e dos procedimentos para o seu enfrentamento, expondo a vulnerabilidade dos profissionais da Enfermagem.

Por meio da literatura pode-se constatar que no cenário da pandemia, em outras organizações de saúde, os profissionais da Enfermagem também se apresentaram inseguros e temerosos diante da nova realidade, pois, estar na linha de frente no atendimento aos pacientes, os expunham constantemente a uma possível infecção(15).

As linhas de segmentaridade duras também se caracterizaram pelas relações de poder. De acordo com os entrevistados, no contexto da pandemia as relações de poder ficaram exacerbadas, principalmente, entre os profissionais da Enfermagem e a categoria médica, o que remete à forma de organização dos hospitais que ocorria no século XVIII.

Naquela época, o médico tinha uma dependência administrativa dos religiosos, que podiam inclusive demiti-los do hospital. Mas, à medida que esse serviço de saúde se constituiu como um instrumento de cura, o médico passou a ser o principal responsável pela organização hospitalar. Além disso, o poder está intrinsecamente ligado ao conhecimento que é moldado pelas relações de poder, por isso é o poder que determina o que é considerado verdadeiro, válido e legítimo em uma determinada época e sociedade(9). Isso mostra como as relações de poder se constituem como uma força complexa que vai se disseminando pelas várias dimensões da vida social e organizacional.

Portanto, uma das principais tensões que ainda ocorrem entre os profissionais de saúde, é a falta de reconhecimento de que todos deveriam governar para construir uma dinâmica de trabalho de modo compartilhado, mas, como isso não ocorre espontaneamente as relações de poder e as disputas de projetos acabam produzindo a fragmentação da assistência prestada aos usuários(4).

Um estudo realizado na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal de um hospital de Belo Horizonte (MG) também evidenciou a autoridade do médico nas relações de trabalho com à equipe de Enfermagem, caracterizando uma suposta relação de submissão, que foi desde o estabelecimento de normas e rotinas para a realização de procedimentos, até a desqualificação de falas e espaços para a discussão de casos, por exemplo. Assim, no contexto hospitalar fica clara a necessidade de uma discussão mais coletiva sobre o trabalho da equipe multiprofissional(16), o que corrobora com os dados encontrados nesta investigação.

Mas, ao tratar das linhas de segmentaridade pode-se “perceber que não existem apenas linhas duras que segmentam binariamente, a partir das grandes oposições duais”, existem também, por exemplo, as linhas de segmentariedade maleáveis(6).

As linhas de segmentaridade maleáveis implicam mais fluidez e um funcionamento rizomático. Em toda e qualquer realidade há uma multiplicidade heterogênea de elementos e de relações em que existem pontos que se conectam traçando novas linhas e possibilidade de conexões. Na configuração rizomática não há eixos ou centros para comandar as relações e os fluxos entre os elementos(6).   

Nessa direção, as relações interpessoais no hospital universitário pesquisado também podem ter sido produzidas a partir de linhas de segmentaridade maleáveis, pois, ao explicitarem a sua vulnerabilidade os profissionais da Enfermagem buscaram outros modos de se perceber e se relacionar no cenário da pandemia. Eles se perceberam como seres humanos, assim como os usuários, que têm sentimentos, desejos e limitações.

Além disso, diante das dificuldades encontradas nesse contexto, os trabalhadores da Enfermagem buscaram outras formas de se produzir cuidados, apoiando-se, valorizando o coletivo e o trabalho em equipe, mas também reconheceu o papel do enfermeiro gestor como fundamental na coordenação do cuidado.

Outro aspecto que indicou a constituição das relações a partir de linhas de segmentaridade maleáveis foram os paradoxos encontrados no cotidiano de trabalho nesse contexto. Ao mesmo tempo que houve o aumento de conflitos em decorrência da sobrecarga de trabalho e do estresse ocupacional, os profissionais relataram que mediante as dificuldades eles buscaram se unir para resolver os problemas conjuntamente. Ainda nesta direção, os profissionais da Enfermagem buscaram expandir a relação de cooperação com as outras categorias profissionais, o que mostra a possibilidade de uma configuração rizomática com vários fluxos e conexões.

Principalmente no início da pandemia, em que todos se depararam com o desconhecido, o hospital em estudo implementou capacitações conjuntas em equipes multiprofissionais realizadas durante o horário de trabalho, a fim de potencializar a cooperação e a interprofissionalidade.

Essa iniciativa está alinhada à Organização Mundial da Saúde que conceitua educação interprofissional “quando os estudantes ou profissionais de dois ou mais cursos, ou núcleos profissionais, aprendem sobre os outros, com os outros e entre si”(17). Essa aproximação possibilita que os diversos profissionais de saúde tenham uma visão interprofissional da função de cada um na assistência prestada de forma integral(18).

Assim, recomenda-se que a EPS seja implementada no cotidiano de trabalho, para que possa abrir espaço para reflexões e trocas de experiências realizadas de forma coletiva, o que possibilita interrogar e colocar em análise os efeitos do trabalho realizado por todos os profissionais envolvidos na assistência à saúde dos usuários(19).

Um outro tipo de linha que constitui as relações são as linhas de fuga, caracterizadas pela ruptura, “verdadeiros rompimentos que promovem mudanças bruscas, muitas vezes imperceptíveis [...] são ativas e na maioria das vezes precisam ser inventadas e não possuem um modelo de orientação(6).

No contexto pandêmico, as relações se configuraram, ainda, entre os profissionais da Enfermagem e os usuários no hospital em estudo, a partir de linhas de fuga quando a preocupação dos trabalhadores com os seus pacientes, em alguns momentos, foi sobreposta à normas institucionais. Por exemplo, buscando estratégias para acolher e suprir a demanda afetiva dos usuários, propiciando visitas aos familiares de forma on-line e ocupando muitas vezes o papel de familiar.

Ao articular os saberes à um cuidado humanizado, os relatos deste estudo mostraram que em alguns momentos o trabalho da equipe de Enfermagem não se restringiu somente à realização do trabalho prescrito, instituído pelas normas, protocolos e legislações. Principalmente, no contexto da pandemia da COVID-19, os profissionais de Enfermagem romperam algumas normas institucionais, para valorizarem a subjetividade e as tecnologias leves, a fim de produzir um cuidado com base no afeto e nas reais necessidades dos usuários e seus familiares.

Sob a ótica da ergologia, existe uma discrepância entre o trabalho prescrito, que se caracteriza pelas normas e rotinas preestabelecidas, e o trabalho real, que depende da complexidade da assistência a ser prestada e da subjetividade do trabalhador para a tomada de decisão em demandas reais do cotidiano(20), o que aponta para os ambientes de trabalho vivo e que produz encontros e aprendizagens, a partir do afeto e dos desejos.

Por fim, uma limitação deste estudo se constituiu na não generalização dos dados coletados na pesquisa, uma vez que se restringiu à equipe de Enfermagem de alguns setores de um único hospital universitário. No entanto, a realização das entrevistas possibilitou um lugar de fala aos profissionais de Enfermagem a respeito das suas relações profissionais, o que pode gerar uma autopercepção de diversos aspectos relacionais que antes estavam encobertos, possibilitando reflexões para os trabalhadores sobre o trabalho interprofissional e o convívio em equipe.

 

CONCLUSÃO

O objetivo do estudo foi alcançado uma vez que identificou as repercussões da pandemia nas relações interpessoais no ambiente laboral, elencadas pelos profissionais de Enfermagem de um hospital universitário. Dentre elas, destaca-se a insegurança de estarem atuando no combate ao novo coronavírus, que resultou no sentimento mais ressaltado pelos trabalhadores: o medo da contaminação, que consequentemente colocava em risco as pessoas do seu círculo de convivência. Nesse contexto, os profissionais da Enfermagem reconheceram, ainda, a sua vulnerabilidade como seres humanos, compreendendo que possuem desejos, afetos e limitações.

As relações interpessoais apresentaram-se como paradoxais, quando os profissionais destacaram a união do grupo no enfrentamento à pandemia e ao mesmo tempo apontaram a presença de conflitos e relações de poder, principalmente, com a equipe médica e que foram acentuados por fatores como a sobrecarga de trabalho e as situações de estresse.

Na equipe multiprofissional as relações interpessoais foram potencializadas por estratégias de capacitações conjuntas e na perspectiva da interprofissionalidade, que proporcionou uma maior aproximação das diferentes categorias profissionais, com compartilhamento de saberes, sendo essa uma experiência inovadora no hospital em estudo.

Romper com as normas institucionais, foi considerado um ato instituinte, em que os profissionais de Enfermagem consideraram os seus desejos e dos pacientes, utilizando a tecnologia leve articulada e a tecnologia dura (neste caso as digitais) e outras estratégias para aproximar os usuários de seus familiares.

Em suma, os resultados deste estudo poderão contribuir para as melhorias e as transformações nas relações interpessoais dos trabalhadores de Enfermagem estabelecidas no ambiente laboral, uma vez que traz à tona a colaboração e a união, fatores importantes para a realização da prática profissional, mas que nem sempre estão presentes nas equipes.

Além disso, pode se criar espaços de análise e reflexão para se discutir os conflitos e as relações de poder que sempre estiveram presentes no cotidiano das equipes, e que na pandemia essas relações se acentuaram. Por isso, nos serviços de saúde, e especificamente no hospital universitário, faz-se necessário propiciar uma discussão coletiva e interprofissional das equipes para se buscar relações interpessoais cada vez mais horizontais e com base no diálogo transparente, em que todos possam contribuir com seus conhecimentos e saberes específicos para produzir um cuidado integral, afetivo e humanizado.  

 

AGRADECIMENTOS

Agradecemos aos discentes Gabriel Simões da Silva, Karolinna Diniz Pereira, Kathylin Glenda Marques e à enfermeira Letícia Gonçalves Figueiredo pela colaboração na fase de coleta de dados.

 

CONFLITO DE INTERESSES

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

 

FINANCIAMENTO

O presente trabalho foi realizado com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). Edital FAPEMIG 009/21.                                                                                                                                                               

 

REFERÊNCIAS

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3. Gomes GLL, Oliveira FMRL, Leal NPR, Guimarães KSL, Silva DF, Barbosa KTF. Nursing diagnoses/outcomes and interventions for patients with COVID-19: a retrospective documentary study. Online Braz J Nurs. 2021;20(suppl 1). https://doi.org/10.17665/1676-4285.20216512

 

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5. Abrahão AL, Souza AC, Franco TB, Gomes MPC. Políticas do cotidiano: a gestão na atenção básica. Saúde Debate (Online). 2019;43(spe6). https://doi.org/10.1590/0103-11042019S600

 

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7. Spagnol CA, Pereira KD, Castro VPN, Figueiredo LG, Borges KKS, Batista LM. Diálogos da enfermagem durante a pandemia: reflexões, desafios e perspectivas para a integração ensino-serviço. Esc Anna Nery. 2021;25(spe). https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2020-0498

 

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18. Araújo TAM, Vasconcelos ACCP, Pessoa TRRF, Forte FDS. Multiprofissionalidade e interprofissionalidade em uma residência hospitalar: o olhar de residentes e preceptores. Interface - Comunic, Saúde, Educ. 2017;21(62):601-13. https://doi.org/10.1590/1807-57622016.0295

 

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20. Pinno C, Vargas MAO, Bonfada MS, Brutti TB, Freitas EO, Cunha QB, et al. Nurses work in an inpatient surgical clinic: between the prescribed and the true tasks. Saúde e Pesquisa. 2020;13(4):889-98. https://doi.org/10.17765/2176-9206.2020v13n4p889-898

 

Submissão: 01-Maio-2022

Aprovado: 04-Dez-2023

 

CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA

Concepção do projeto: Spagnol CA

Obtenção de dados: Spagnol CA, Rocha JGRS, Torres CM

Análise e interpretação dos dados: Spagnol CA, Rocha JGRS, Torres CM

Redação textual e/ou revisão crítica do conteúdo intelectual: Spagnol CA, Rocha JGRS, Torres CM

Aprovação final do texto a ser publicada: Spagnol CA, Rocha JGRS, Torres CM

Responsabilidade pelo texto na garantia da exatidão e integridade de qualquer parte da obra: Spagnol CA, Rocha JGRS, Torres CM

 

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