EDITORIAL

 

Saúde de pessoas LGBT+ na formação, pesquisa e atenção em enfermagem e saúde

 

Bruno Pereira da Silva1, Cristiano Gil Regis1, Eduardo Sodré de Souza2

 

1Universidade Federal do Acre, Cruzeiro do Sul, AC, Brasil

2Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil

 

O movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Intersexuais e de demais identidades de gênero e/ou orientações sexuais (LGBT+) tem vivenciado conquistas de direitos em diversos âmbitos da sociedade. Nas esferas política e social, o aumento da representação de pessoas LGBT+ em cargos políticos, o reconhecimento da união homoafetiva como núcleo familiar pelo Supremo Tribunal Federal, em 2011, e a criminalização da homofobia, em 2019, são alguns exemplos. Na cultura e na mídia, a representatividade e pluralidade dessas pessoas vem se tornando mais presente com esforços na direção da desconstrução da caricaturização e estigmatização.

Na saúde, no âmbito da política pública e social de estado, a instituição da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (PNSILGBT) em 2011 estabeleceu diretrizes para promoção da saúde integral dessa população, com foco na eliminação da discriminação, preconceito institucional, redução das desigualdades e consolidação do SUS(1).

No entanto, esses avanços não superam, em número ou intensidade, as violências e crimes cometidos contra a população LGBT+ cotidianamente nas esferas privada e pública. A violência física, verbal, psicológica e sexual decorrente de LGBT+fobia acontece no Brasil desde o período colonial, pois mesmo antes das denominações atuais de sexualidade e gênero, as pessoas já vivenciavam situação de vulnerabilidade por não se enquadrarem ao padrão socialmente referenciado de heteronormatividade, binariedade e cisnormatividade(2). Até hoje, a violência inicia dentro das residências e se perpetua em escolas, ruas, universidades, ambientes de trabalho, serviços de saúde etc.

Especificamente sobre violência sexual, lésbicas e gays sofrem aproximadamente seis vezes (6x) mais agressão do que homens heterossexuais cisgênero. As ocorrências aumentam para mulheres bissexuais (12x), pessoas não-binárias (15x) e pessoas transgênero (25x)(3).

Em termos de mortalidade, os índices mais alarmantes também estão relacionados às pessoas transgênero. No ano de 2022, foram registradas 273 mortes de pessoas LGBT+ no Brasil. Travestis e mulheres transsexuais correspondem a 58,24% dos casos, homens gays representam 35,16% do total e lésbicas perfazem 2,93%. Os números mantêm o Brasil, pelo 14º ano consecutivo, como o país que mais assassina pessoas trans no mundo(2).

Tal como a violência e os assassinatos de pessoas LGBT+ são sabidamente subnotificados, manifestações LGBT+fóbicas nem sempre vão a público, resultando na manutenção do status quo de preconceito, discriminação, marginalização e vulnerabilização da comunidade.

A cisgeneridade, enquanto um “CIStema”(4) de opressão articulado com outros sistemas como sexismo, machismo, classicismo e racismo, ao determinar piores resultados em saúde para pessoas LGBT+, põe em pauta uma questão central para o cuidado: quem é o ser universal coberto pelo princípio da universalidade?

Embora, iniciativas em todo o mundo tenham se empenhado em oferecer respostas a essas iniquidades em saúde, cabe aprofundar reflexões sobre os processos de exclusão das pessoas LGBT+ ao acesso aos direitos sanitários. O desmantelamento de uma ideia em curso, nos serviços e entre profissionais de saúde, sobre o “ser universal” é condição sine qua non para a efetivação do cuidado universal, de fato.  

Portanto, reconhecer as pautas do movimento LGBT+ no âmbito da saúde, implica, contudo, em se aproximar dos territórios onde essas pautas estão sendo construídas. A legitimação do discurso coletivo elaborado na e pela comunidade LGBT+, historicamente tem orientado caminhos a serem seguidos, no âmbito da saúde.

A PNSILGBT como uma dessas conquistas históricas, ao reconhecer necessidades e singularidades da população LGBT+, evidencia a necessidade de operacionalização dos princípios e diretrizes do SUS. Entretanto, sua implementação representa desafios e exige a assunção de compromissos das secretarias estaduais e municipais de saúde, dos conselhos de saúde, assim como do próprio Ministério da Saúde(1). Sua criação visou diminuir as desigualdades das pessoas LGBT+, no SUS, a partir do fortalecimento e da formação para o atendimento integral e equânime nas diversas instituições de saúde(5). Ainda assim, a lógica excludente que se opera nos serviços, referente à saúde da população LGBT+, evidencia lacunas na formação e educação permanente de profissionais de saúde.

Considerando a normatização do sexo como estrutura social que reduz a sexualidade ao órgão genital e estabelece papéis rígidos de gênero numa perspectiva biologicista binária, que interfere na oferta de saúde sob uma perspectiva universal, a formação em enfermagem e em saúde pode assumir o compromisso de promover reflexão, desconstrução dos preceitos heteronormativos e desenvolvimento de competências para a atenção à saúde de pessoas LGBT+(6).

Para isso, extrapolar uma formação exclusivamente tecnicista e biomédica pautada pelo ensino de procedimentos cirúrgicos, dosagem de medicamentos e hormônios, tratamento de infecções sexualmente transmissíveis (IST), por exemplo, implica em mudança de atitudes, aquisição de conhecimentos específicos, eliminação de estereótipos e desenvolvimento de competências culturais(7).

Sobre isso, reconhecer as concepções e visões dessas pessoas sobre o processo saúde-adoecimento-cuidado contribui para a construção de novas narrativas em saúde(8). Soma-se a isso a superação necessária e urgente sobre a ausência ou abordagem superficial do tema saúde da população LGBT+ nos currículos(6-7).

A posição privilegiada que a enfermagem ocupa nos sistemas internacionais de saúde é uma potencial força motriz para reverter situações de injustiças social e iniquidades em saúde(9). Entretanto, chama a atenção o cenário de formação profissional, tendo em vista o déficit no desenvolvimento de temas relacionados à saúde integral da população LGBT+(10-11).

O déficit de conhecimento de profissionais em exercício nos serviços de saúde sobre a saúde integral de populações LGBT+ resulta em assistência que não corresponde ou satisfaz as necessidades de saúde dessas pessoas(12).

No âmbito das pesquisas, embora ainda haja defasagens sobre a produção científica brasileira, há evidências de aumento sobretudo após a criação da PNSILGBT. Entretanto predominam estudos com enfoque biologicista, como é o caso da prevalência de estudos sobre IST. Apesar de ser um objeto de pesquisa importante, seu predomínio pode reduzir as demandas de pessoas LGBT+ à vivência com doenças em detrimento de necessidades e vulnerabilidades específicas(13).

Revisão integrativa publicada em 2023 encontrou pouca produção científica mundial sobre a prática da enfermagem na atenção à saúde de pessoas LGBT+, sendo apenas 25% brasileiras. Esse cenário pode ser resultado das lacunas e inconsistências no processo de formação profissional em enfermagem e da pouca sensibilidade para um olhar mais atento às necessidades de saúde dessa população(14).

Outrossim, a literatura científica carece de informações mais precisas e abrangentes acerca de pessoas LGBT+, bem como de todas as interseccionalidades existentes na constituição dessas identidades, como geração, classe, raça, etnia, entre outras, além das especificidades dentro do próprio grupo. Essa defasagem de pesquisas focais pode dificultar a elaboração de ações específicas para alcançar maior integralidade e equidade no cuidado da população LGBT+ brasileira(5,7).

 

REFERÊNCIAS

 

1. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2013 [citado 2024 abr 30]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_lesbicas_gays.pdf

 

2. Spizzirri G, Eufrásio RA, Abdo CHN, Lima MCP. Proportion of ALGBT adult Brazilians, sociodemographic characteristics, and self-reported violence. Sci Rep. 2022;12(11176):1-8. https://doi.org/10.1038/s41598-022-15103-y

 

3. Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil. Mortes e violências contra LGBTI+ no Brasil: Dossiê 2022 [Internet]. Florianópolis (SC): Acontece, ANTRA, ABGLT; 2023 [citado 2024 abr 30]. Disponível em: https://observatoriomorteseviolenciaslgbtibrasil.org/wp-content/uploads/2023/05/Dossie-de-Mortes-e-Violencias-Contra-LGBTI-no-Brasil-2022-ACONTECE-ANTRA-ABGLT.pdf

 

4. Vergueiro V. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. Salvador (BA): Edufba; 2023.

 

5. Barchin VF, Carvalho B, Marques SMS, Franco CRP, Garzin ACA. Percepção de alunos de graduação da área da saúde acerca da abordagem sobre a saúde de LGBTI+. Mundo Saúde [Internet]. 2021 [citado 2024 abr 30];45(e0052021):175-186. Disponível em: https://revistamundodasaude.emnuvens.com.br/mundodasaude/article/view/1081/1055

 

6. Paranhos WR, Willerding IAV, Lapolli EM. Formação dos profissionais de saúde para o atendimento de LGBTQI+. Interface (Botucatu). 2021;25:e200684. https://doi.org/10.1590/interface.200684

 

7. McCann E, Brown M. The inclusion of LGBT+ health issues within undergraduate healthcare education and professional training programmes: A systematic review. Nurse Educ Today. 2018;64:204-214. https://doi.org/10.1016/j.nedt.2018.02.028

 

8. Souza ES, Tanaka LH. Healthcare: action research with trans people living on the streets. Rev Bras Enferm. 2022;75(Suppl 2):e20210016. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0016

 

9. Yingling CT, Cotler K, Hughes TL. Building nurses' capacity to address health inequities: incorporating lesbian, gay, bisexual and transgender health content in a family nurse practitioner programme. J Clin Nurs. 2017;26(17-18):2807-2817. https://dx.doi.org/10.1111/jocn.13707

 

10. Lim F, Johnson M, Eliason M. A national survey of faculty knowledge, experience, and readiness for teaching lesbian, gay, bisexual, and transgender health in baccalaureate nursing programs. Nurs Educ Perspect. 2015;36(3):144–152. https://doi.org/10.5480/14-1355

 

11.  Carabez R, Pellegrini M, Mankovitz A, Eliason MJ, Ciano M, Scott M. “Never in all my years...": Nurses' education about LGBT health. J Prof Nurs. 2015;31(4):323–329. https://doi.org/10.1016/j.profnurs.2015.01.003

 

12. Snelgrove JW, Jasudavisius AM, Rowe BW, Head EM, Bauer GR. "Completely out-at-sea" with "two-gender medicine": A qualitative analysis of physician-side barriers to providing healthcare for transgender patients. BMC Health Serv Res. 2012;12(110). https://doi.org/10.1186/1472-6963-12-110

 

13. Domene FM, Silva JL, Toma TS, Silva LALB, Melo RC, Silva A, et al. Saúde da população LGBTQIA+: revisão de escopo rápida da produção científica brasileira. Ciênc Saúde Colet. 2022;27(10):3835–48. https://doi.org/10.1590/1413-812320222710.07122022

 

14. Borges FA, Paiva AT, Junqueira AS, Loureiro RS, Abrahão AL, Rézio LA. Conhecimentos e estratégias utilizados pela enfermagem na atenção à lésbicas, gays, bissexuais e transexuais. Enferm Foco. 2023;14:e-202361. https://dx.doi.org/10.21675/2357-707X.2023.v14.e-202361

 

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