Mais avanços que retrocessos na implementação da Prática Avançada de Enfermagem no Brasil
Beatriz Rosana Gonçalves de Oliveira Toso1, Ellen Márcia Peres2
1Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Cascavel, PR, Brasil
2Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
O ano de 2023 marca os primeiros e efetivos dez anos de discussão sobre a implementação da Prática Avançada de Enfermagem (PAE) no país. Data de 2013 a primeira publicação brasileira sobre o tema, abordando a prática do enfermeiro clínico especialista na área ambulatorial de oncologia pediátrica(1), com base nas vivências do Enfermeiro de Prática Avançada (EPA) do Canadá. A essa primeira publicação seguiu-se o editorial da Revista Brasileira de Enfermagem em 2014, já com abordagem mais ampla, versando sobre a promoção do papel da PAE na América Latina(2).
Também em 2014, após ciência da revisão sistemática da Cochrane Library denominada Substitution of doctors by nurses in primary care(3), a autora (BRGOT) desenvolveu, por ocasião de seu estágio de pós-doutorado em 2014, uma pesquisa sobre a PAE com enfermeiros da Inglaterra(4), iniciando suas atividades de estudo e pesquisa na temática.
Em 2015, iniciam-se as discussões para implementação da PAE na Atenção Primária à Saúde (APS) no Brasil, por meio de reuniões entre representantes do Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) e da Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn), na sede da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS/OMS – Organização Mundial de Saúde), cujo enfoque foram as perspectivas para a PAE no contexto brasileiro.
Em 2016, a Presidência do COFEN instituiu a Comissão de Práticas Avançadas de Enfermagem (Portaria n.º 379 de 11 de março de 2016), cujo objetivo era apoiar por meio de pesquisas o desenvolvimento, a implementação e a futura avaliação da EPA no País, e produzir diretrizes com abrangência para a formação, a regulação e a prática profissional.
Em agosto desse mesmo ano, o fórum dos mestrados profissionais em Enfermagem (FOPRENF), realizado em Curitiba, PR, incluiu em sua programação uma conferência sobre o tema PAE ministrada pela autora (BRGOT), contando sua experiência de pesquisa na Inglaterra e trazendo elementos para a discussão na esfera da formação. Em outubro, ocorreu o 19º Congresso Brasileiro dos Conselhos de Enfermagem (CBCENF), em Cuiabá, MT, e sua programação também incorporou uma mesa de debates sobre PAE, com participação da mesma autora e convidados internacionais. O tema abordado nessa atividade foi publicado na revista Enfermagem em Foco(5).
Ainda, em 2016, lideranças de Enfermagem na América Latina, incluindo o Brasil, reuniram-se com pesquisadores norte-americanos e canadenses para participar do “Advanced Practice Nursing Summit: developing Advanced Practice Nursing competencies in Latin America to contribute to universal health”. O encontro ocorreu na Universidade McMaster do Canadá e discutiu o aumento do escopo da prática de enfermeiros na APS e o papel do EPA nos diferentes contextos.
Em 2017, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) inseriu no relatório de avaliação quadrienal da área Enfermagem o texto a seguir(6:7): “Neste contexto, nos últimos três anos, num movimento conjunto com a Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn), Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) e assessoria regional de enfermagem e técnicos de saúde da Organização Pan-Americana de Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS) e países da América Latina para ampliar o acesso universal à saúde e a cobertura universal de saúde, a Área tem participado do processo de elaboração de política e projetos que visem as boas práticas articulados à possibilidade de implantação da Enfermagem de Prática Avançada na Atenção Básica, principalmente em áreas como a saúde da família, materno-infantil e de portadores de condições crônicas, em que já existem iniciativas bem-sucedidas”.
Esse relatório trouxe, pela primeira vez, a possibilidade de discussões sobre a proposição da formação de EPA no país. Abordou o tema mencionado que, “como parte do projeto político-pedagógico de implantação de boas práticas e da EPA no país, outra estratégia trabalhada pela Área em parceira com a ABEn foi a apresentação de proposta ao Ministério da Saúde, em 2016, sob a coordenação do PPG/UFPE, visando auxiliar na identificação desses projetos e na capacitação do corpo docente para que propostas de implantação e avaliação de boas práticas fossem realizadas”(6:8). Essa proposição, infelizmente, não avançou até 2021, quando novos atores na coordenação de área Capes instituíram um grupo de trabalho para retomar o assunto Formação, discutido adiante.
Por conseguinte, tanto o COFEN quanto a ABEn, e ainda outros eventos temáticos têm incluído em sua programação o tema PAE. Cursos de pós-graduação em Enfermagem assumiram o tema como pauta de discussão em disciplinas, principalmente aquelas que enfocam a APS. Em síntese, o tema não saiu mais da mesa de debates desde então e tem sido ampliado ano a ano. Pesquisas têm sido desenvolvidas sobre o tema em dissertações de mestrado e teses de doutorado. Validação de instrumentos de avaliação das competências de PAE de enfermeiros foram validados no Brasil (7-8) e cada vez mais enfermeiros brasileiros ouvem falar ou têm algum conhecimento sobre a PAE.
Em 2021, a coordenação de área Capes criou um grupo de trabalho (GT) constituído pela Coordenação da Área de Avaliação da Enfermagem (mandato de 2018 a 2022) da CAPES, com a participação de experts no assunto para discutir a formação de EPA no país, cujos resultados foram divulgados no artigo Enfermagem de Prática Avançada: Pilar “Formação” na Sustentação da Proposta no Brasil(9).
De setembro a novembro de 2022, a representação da OPAS/OMS no Brasil, o Cofen e o Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, da Universidade de São Paulo/Ribeirão Preto, promoveram seis ciclos de palestras com a participação de instituições internacionais envolvidas no desenvolvimento da PAE, sendo elas o Chile, o México, os Estados Unidos, a Espanha, o Reino Unido e o Canadá. O objetivo foi promover o compartilhamento de experiências nacionais e internacionais, visando subsidiar a discussão sobre a implantação da PAE no Brasil.
Decorrente do avanço e amadurecimento das discussões no país sobre a PAE, em 2022, universidades brasileiras apresentaram à Capes, por ocasião da abertura do Edital para Propostas de Cursos Novos (APCN), cinco propostas de cursos de formação de EPA em distintas realidades, sendo dois na área de saúde da mulher, dois na atenção às condições crônicas e um no formato de associação entre seis universidades voltado para a atenção primária. No FOPRENF de 2022, realizado em São Paulo, o tema central foi a PAE e as propostas de mestrado profissional para essa formação foram apresentadas e debatidas.
Em junho de 2023, pelo resultado da avaliação da Capes, nenhuma das proposições foi considerada adequada para a formação de EPA pelos atuais representantes da coordenação de área de Enfermagem. Os argumentos elencados, no tocante à especificidade das propostas, foram distintos para cada programa submetido. Entretanto, foram convergentes num aspecto, que determinou os demais itens da avaliação, descrito a seguir: a PAE “não tem relação com o escopo da Área Enfermagem e exercício da profissão, uma vez que a prática avançada de enfermagem ainda não está regulamentada no país”.
Essas autoras contestam a afirmação e sustentam que, em função de a regulamentação ainda estar em discussão, conforme mencionado abaixo, este não deve ser o motivo por trás da recusa de novos processos de formação. Para que efetivamente a PAE se estabeleça no país, os enfermeiros precisam obter o título de sua formação no nível do mestrado, de acordo com o recomendado pelo Conselho Internacional de Enfermagem. No Brasil, a opção se dá no modelo mestrado profissional, em função da carga horária de prática de, no mínimo, 500 horas, para o aprendizado da prática clínica ampliada.
Em 2023, o Cofen atualizou a comissão de práticas avançadas renovando seus membros e emitiu sua primeira Nota Técnica versando sobre o tema. O documento, elaborado pela nova comissão e submetido ao plenário, aborda conceitos, ações, implementação e regulação das práticas avançadas que já são uma realidade em grande parte do mundo, inclusive no Brasil, sobretudo na Atenção Primária à Saúde (APS)(10). A Autarquia, na expectativa de que houvesse um maior número de aprovação de propostas de cursos novos (mestrado e doutorado) pelo edital Capes/2022, aprovou um aumento de seis milhões em seu orçamento 2023/2024 para celebração do novo Acordo Cofen/Capes, de modo a financiar 100 vagas de doutorado e 400 de mestrado, ambos em programas profissionais, incluindo verba de capital para os Programas que viessem ser aprovados(10).
Ainda, nesse ano, o Ministério da Saúde (MS) instituiu GT voltado à PAE. A valorização da enfermagem, a formação especializada, a regulação do exercício profissional e das relações de trabalho foram temas da primeira reunião do GT sobre PAE, realizada pelo MS, via Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES), em agosto, em Brasília. Esse encontro foi o desdobramento de reuniões anteriores, com representantes de diversas instituições, para pensar coletivamente a ampliação do escopo de práticas da categoria e a regulação da profissão. A SGTES/MS coordena o GT que vai propor estratégias sobre a temática nacional. Compõem o grupo: secretarias do MS, ABEn, COFEN, Federação Nacional dos Enfermeiros (FNE), Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras (Abenfo), Associação Brasileira de Enfermagem de Família e Comunidade (Abefaco), Articulação Nacional da Enfermagem Negra (ANEN), Capes, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems).
Nesse breve relato, evidencia-se que os avanços foram muitos. O COFEN renovou sua Comissão sobre o tema, demonstrando convergência com o ICN quanto à definição das competências de um EPA brasileiro para que este seja reconhecido como tal no país e também em outras realidades. O MS criou um GT reunindo duas secretarias, trabalho/educação e atenção primária, para discutir a regulamentação da função de EPA. Portanto, o pilar Regulamentação está sendo construído.
Infelizmente, o pilar Formação não avançou na mesma medida. Pessoas em posições com poder de tomada de decisões estratégicas no campo do cuidado em saúde, com atuação relevante da (o) enfermeira (o), ao desconhecer ou até mesmo desconsiderar os elementos essenciais (conceitos, conteúdos, critérios), os atores institucionais envolvidos, as recomendações dos organismos internacionais, como ICN e OPAS/OMS, e nacionais, como Cofen e MS, na perspectiva de implementação dos programas de formação, impactam no futuro da profissão no país. Sem isso, possivelmente essa causa não logrará êxito nem tão pouco avançará. Felizmente, as representações são periódicas. Oxalá, no futuro, tenhamos pessoas de mente aberta para o avanço da Enfermagem no país, que entendam que a PAE começa na formação dos profissionais.
REFERÊNCIAS
1. Dias CG, Duarte AM, Ibanez ASS, Rodrigues DB, Barros DP, Soares JS, et al. Enfermeiro Clínico Especialista: um modelo de prática avançada de enfermagem em oncologia pediátrica no Brasil. Rev Esc Enferm USP. 2013;47(6):1426-30. https://doi.org/10.1590/S0080-623420130000600025
2. Cassiani SHB, Zug KE. Promovendo o papel da Prática Avançada de Enfermagem na América Latina. Rev Bras Enferm. 2014;67(5):675-6. http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167.2014670501
3. Laurant M, Reeves D, Hermens R, Braspenning J, Grol R, Sibbald B. Substitution of doctors by nurses in primary care. Cochrane Database of Systematic Reviews. 2005;(2). https://doi.org/10.1002/14651858.cd001271.pub2
4. Toso BRGO, Filippon J, Giovanella L. Nurses’ performance on primary care in the National Health Service in England. Rev Bras Enferm. 2016;69(1):169-77. http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167.2016690124i
5. Toso BRGO. Práticas avançadas de enfermagem em atenção primária: estratégias para implantação no Brasil. Enferm Foco. 2016;7(3/4):36-40. https://dx.doi.org/10.21675/2357-707X.2016.v7.n3/4.913
6. Ministério da Educação (BR). Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Avaliação Quadrienal 2017 – Enfermagem [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Educação; 2017 [citado 2023 out. 30]. Disponível em: https://www.gov.br/capes/pt-br/centrais-de-conteudo/20122017-enfermagem-quadrienal-pdf
7. Minosso KC, Toso BRGO. Transcultural validation of an instrument to evaluate Advanced Nursing Practice competences in Brazil. Rev Bras Enferm. 2021;74(Suppl 6):e20210165. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0165
8. Dias FCP, Baitelo TC, Toso BRGO, Sastre-Fullana P, Oliveira-Kumakura ARS, Gasparino RC. Adaptation and validation of the Advanced Practice Nursing Competency Assessment Instrument. Rev Bras Enferm. 2022;75(5):e20210582. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0582
9. Parada CMGL, Paz EPA, Nichiata LYI, Barbosa DA, Kantorski L. Advanced Practice Nursing: “Training” Pillar in Supporting the Proposal in Brazil. Rev Bras Enferm. 2023;76(5):e20230118. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2023-0118pt