ORIGINAL
Organização do trabalho e burnout entre profissionais de enfermagem na pandemia: estudo de método misto
Amanda da Silveira Barbosa1, João Lucas de Oliveira Campos1, Cassiana Gil Prates2, Daiane Dal Pai1, Ana Maria Muller de Magalhães1
1Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, MS, Brasil
2Hospital Ernesto Dornelles, Porto Alegre, MS, Brasil
RESUMO
Objetivo: avaliar as repercussões da pandemia de COVID-19 na organização do trabalho e no Burnout dos profissionais de enfermagem em um hospital da região sul do Brasil. Método: desenho misto explanatório sequencial, em cinco unidades de internação adulta, realizado de agosto a novembro de 2020. Na etapa quantitativa, numa amostra de 78 participantes, foi aplicado o Inventário de Burnout de Maslach e os dados foram analisados por meio de estatística descritiva e analítica. Na etapa qualitativa, foram realizadas entrevistas semiestruturadas online, por amostragem intencional, com nove profissionais, e os dados foram submetidos à análise de conteúdo categorial temática. Resultados: 99% dos profissionais atenderam pacientes suspeitos ou confirmados com a doença; 64% afastaram-se por suspeita e 35% por confirmação de COVID-19; 11,5% apresentaram a Síndrome de Burnout. O medo, o compromisso com o trabalho, as falhas nos protocolos e na comunicação institucional foram temas das categorias. Conclusão: apesar de a Síndrome de Burnout ter apresentado baixa frequência entre os trabalhadores de enfermagem, constatou-se que a pandemia de COVID-19 repercutiu sobremaneira na organização do trabalho desses profissionais.
Descritores: Esgotamento Profissional; Enfermagem; Coronavírus.
INTRODUÇÃO
Os números exponenciais de COVID-19, associados à escassez de trabalhadores de enfermagem, além da falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e de materiais necessários para a realização de cuidados no contato constante com os pacientes, bem como a própria superlotação dos serviços de saúde, tornaram-se ameaçadores para a saúde dos profissionais e aumentaram o risco laboral de contágio pelo novo coronavírus. Tal realidade pode repercutir, também, na qualidade do cuidado e na segurança do paciente, uma vez que é conhecido que a força de trabalho reduzida e o déficit de recursos necessários para a prestação do cuidado são fatores que contribuem negativamente para o resultado do trabalho assistencial(1).
Diante dos desafios impostos pela pandemia, fica claro que, além do número insuficiente de trabalhadores para atender à demanda assistencial, outro problema que emerge é o afastamento de profissionais. Essa realidade reduz a força de trabalho já deficitária disponível e, evidentemente, pode trazer danos à saúde desses trabalhadores(2). Na Itália, 20% dos trabalhadores de saúde foram infectados, e na China, 3.300 trabalhadores se infectaram no início de março de 2020(3).
Destaca-se o tratamento em saúde mental insuficiente entre profissionais dessa área para lidar com as múltiplas adversidades vivenciadas(4). A Síndrome de Burnout (SB) foi investigada na década de 70 e constatou-se que os profissionais usavam a palavra "burnout" para se referirem à exaustão emocional(5). Apesar de não ser um problema recente, observa-se que é um problema recorrente na enfermagem, que está permanentemente exposta a riscos e danos provenientes das condições de trabalho precárias e da própria natureza do trabalho(6).
Essas condições tendem a ser agravadas em cenários como o da pandemia em vigor(7). Para os profissionais de saúde, um período de quarentena e afastamento do trabalho por motivos de saúde ou de outra natureza gera preocupação com a falta de pessoal e a sobrecarga de trabalho para a equipe, além do receio em relação à percepção negativa dos colegas e ao aumento dos sentimentos de isolamento(8).
De acordo com estudos, a precarização do trabalho foi um fator diretamente relacionado ao afastamento de profissionais de enfermagem, além de tarefas com esforços repetitivos(9). Um total de 24,1% dos afastamentos entre profissionais de enfermagem foram causados por quadros depressivos, sendo que 31,3% ocorreram nas unidades de internação hospitalar(10).
Diante dessas considerações, pondera-se que há urgência social e científica em investigar aspectos que repercutiram na gestão e organização do trabalho, assim como o afastamento do trabalho e a SB entre a equipe de enfermagem no período da pandemia de COVID-19. Isso ocorre porque tal conhecimento tende a fortalecer a necessidade de manter equipes suficientemente disponíveis e saudáveis, especialmente em momentos de crise como o vivenciado, a fim de demonstrar com maior solidez aos gestores governamentais, de saúde e à sociedade em geral a importância da força de trabalho da enfermagem no cuidado humano. O objetivo do estudo foi avaliar as repercussões da pandemia de COVID-19 na organização do trabalho e na SB entre os profissionais de enfermagem em um hospital da região sul do Brasil.
MÉTODO
Estudo delineado com método misto explicativo sequencial, combinando a abordagem quantitativa e qualitativa na investigação, conforme ilustra a Figura 1, atribuindo um peso equânime para ambas as abordagens(11).
Figura 1 - Diagrama representativo do desenho do estudo. Porto Alegre, RS, Brasil, 2021
Foram utilizadas as guidelines STROBE e COREQ(12,13) para cada fase do estudo. A pesquisa foi conduzida em um hospital filantrópico de natureza privada, localizado no sul do Brasil. Embora o campo de estudo não estivesse originalmente designado como centro de referência para tratamento da COVID-19, a crise sanitária exigiu a adaptação de uma das unidades de internação para o atendimento oficial de pacientes afetados pelo coronavírus. É importante ressaltar que, apesar de outras áreas da pesquisa não terem sido inicialmente designadas como unidades para pacientes com COVID-19, muitos dos pacientes internados passaram a testar positivo para a doença dentro das unidades de internação, o que acarretou a constante exposição dos profissionais de saúde ao vírus.
Foram selecionadas quatro unidades de internação geral e uma unidade responsável pelo atendimento desses pacientes. O período de coleta da etapa quantitativa foi de 3 de agosto até o dia 11 de setembro de 2020, e a etapa qualitativa foi realizada no período de outubro a novembro de 2020, coincidindo com o período de ocorrência da primeira onda de aumento e agravamento dos casos no país.
A população do estudo compreendeu os 219 profissionais de enfermagem (43 enfermeiros e 176 técnicos de enfermagem) que desenvolviam atividades assistenciais na instituição em estudo.
Na etapa quantitativa, foi realizado um survey com o envio dos questionários por meio do Google Forms®, para todos os profissionais atuantes nas unidades de internação. A coleta de dados deu-se por meio desse questionário, que consistia em um formulário de caracterização pessoal, profissional e do ambiente de trabalho, além do Inventário de Burnout de Maslach (IBM), adaptado e validado para a cultura brasileira(14).
A amostra, por conveniência, foi constituída por 78 profissionais, com uma taxa de retorno de 36%, e composta por 24 (30,8%) enfermeiros e 54 (69,2%) técnicos de enfermagem. Os critérios de inclusão foram: vínculo empregatício na instituição por um período igual ou superior a 60 dias. Como critérios de exclusão, adotaram-se os afastamentos de licenças ou férias no período de coleta.
Na etapa qualitativa, a amostra foi composta por nove participantes. O critério de amostragem foi intencional, tomando-se como participantes da pesquisa aqueles que manifestaram interesse em discutir a temática de organização e afastamento do trabalho devido ao contágio por COVID-19, por meio de resposta a uma pergunta específica no final do instrumento aplicado na etapa quantitativa. Consequentemente, na etapa qualitativa, foi adotado como critério de inclusão a participação na primeira fase do estudo e, como critério de exclusão, três tentativas pelo pesquisador de contato sem sucesso com o participante.
Os dados foram coletados, na etapa qualitativa, mediante a técnica de entrevistas semiestruturadas com profissionais que experienciaram o afastamento do trabalho ou de seus colegas devido ao contágio da doença. Essa estratégia foi adotada para conectar os dados, buscando-se compreender e explicar os achados quantitativos. As perguntas foram desenvolvidas pelas pesquisadoras a fim de compreender em maior profundidade aspectos relacionados ao fenômeno de interesse: o afastamento e a organização do trabalho durante a pandemia. As entrevistas foram realizadas virtualmente, via Google Meet, gravadas, transcritas na íntegra e posteriormente enviadas aos respectivos participantes para validação das informações. As entrevistas tiveram uma duração média de 32 minutos.
Os dados quantitativos foram digitados no programa Excel e posteriormente exportados para o programa Statistic Package for Social Science for Windows (SPSS), versão 21.0. As variáveis categóricas foram descritas por frequências e percentuais, e as variáveis contínuas por média e desvio padrão, de acordo com a normalidade dos dados verificada por meio do teste Shapiro-Wilk. Além da estatística descritiva, foram empregados testes inferenciais, como o Qui-Quadrado de Pearson e o Teste Exato de Fisher, para determinar se havia diferenças entre os grupos e a presença de SB, considerando um nível de significância de p-valor ≤ 0,05.
A análise dos dados qualitativos foi realizada com base no método de análise de conteúdo do tipo categorial temático(15), utilizando o software Nvivo. Durante o tratamento e interpretação das informações, foi possível agrupá-las em seis categorias temáticas, quando se identificou a saturação dos dados do material analisado.
A integração dos dados foi realizada para aprofundar a compreensão do fenômeno. As análises quantitativas prévias foram integradas com os aspectos explorados de forma subjetiva na entrevista(16), conforme demonstrado no quadro abaixo (Figura 2).
O projeto foi submetido via Plataforma Brasil e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), atendendo à Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (CNS)(17). Os trabalhadores foram convidados a participar do estudo de forma voluntária e informados sobre os objetivos e a condução da pesquisa. Em ambas as etapas da pesquisa, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi aplicado.
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Pesquisa de métodos mistos com desenho explanatório sequencial |
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Objetivo geral |
Avaliar repercussões da pandemia de COVID-19 na organização do trabalho e na saúde dos profissionais de enfermagem em um hospital da região sul do Brasil |
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Quantitativo |
Qualitativo |
Desenho do estudo |
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Participantes |
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Coleta de dados |
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Análise dos dados |
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Figura 2 - Síntese dos aspectos metodológicos do estudo. Porto Alegre, RS, Brasil, 2021
RESULTADOS
Os participantes da pesquisa foram 78 profissionais, sendo 54 (69,2%) técnicos de enfermagem e 24 (30,8%) enfermeiros de unidades de internação, conforme descrito na caracterização da amostra apresentada na Tabela 1.
Tabela 1 – Perfil sociodemográfico e laboral dos profissionais de enfermagem de um hospital privado-filantrópico. Porto Alegre, RS, Brasil, 2021
Variáveis e categorias |
Enfermeiro (n=24) |
Técnico de enfermagem (n=54) |
Total (n=78) |
Idade* |
34,52 ± 7,63 |
31,96 ± 9,29 |
32,79 ± 8,820 |
Sexo |
|
|
|
Feminino |
20 (83,3%) |
49 (90,7%) |
69 (88,5%) |
Masculino |
4 (16,7%) |
5 (9,3%) |
9 (11,5%) |
Estado civil |
|
|
|
Casado ou com companheiro |
19 (79,2%) |
35 (64,8%) |
54 (69,2%) |
Solteiro ou sem companheiro |
5 (20,8%) |
19 (35,2%) |
24 (30,8%) |
Unidade |
|
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Unidade de internação |
15 (62,5%) |
32 (59,3%) |
47 (60,3%) |
Unidade de internação COVID-19 |
9 (37,5%) |
22 (40,7%) |
31 (39,7%) |
Tempo de trabalho na instituição |
|
|
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Até 01 ano |
16 (66,7%) |
38 (70,4%) |
54 (69,2%) |
01 ano a 05 anos |
4 (16,7%) |
6 (11,1%) |
10 (12,8%) |
05 a 10 anos |
2 (8,3%) |
8 (14,8%) |
10 (12,8%) |
Mais de 10 anos |
2 (8,3%) |
2 (3,7%) |
4 (5,1%) |
Número de pacientes sob cuidados* |
23,58 ± 6,9 |
4,58 ± 1,2 |
- |
*Média e desvio padrão; n (%).
Na Tabela 2, estão descritos os dados de exposição e afastamento dos profissionais devido à COVID-19, nos quais observa-se que 99% dos profissionais atenderam pacientes suspeitos ou confirmados com COVID-19. A mediana de dias de afastamento foi de 14 (3 a 14) dias para o total da amostra.
Tabela 2 – Distribuição da exposição e afastamentos do trabalho devido a COVID-19 entre os profissionais de enfermagem de um hospital privado-filantrópico, Porto Alegre, RS, Brasil, 2021
Variáveis de exposição à COVID-19 |
Total (n=78) |
Enfermeiro (n=24) |
Técnico de enfermagem (n=54) |
|||
Sim |
Não |
Sim |
Não |
Sim |
Não |
|
Atendeu paciente suspeito ou confirmado |
77 (99%) |
1 (1%) |
24 (100%) |
0 (0%) |
53 (98,1%) |
1 (1,9%) |
Afastou-se por suspeita |
50 (64%) |
28 (36%) |
15 (62,5%) |
9 (37,5%) |
35 (64,8%) |
19 (35,2%) |
Afastou-se por confirmação |
27 (35%) |
19 (24%) |
8 (33,3%) |
16 (66,7%) |
19 (35,2%) |
35 (64,8%) |
Afastou-se por outro motivo |
39 (50%) |
39 (50%) |
8 (33,3%) |
16 (66,7%) |
31 (57,4%) |
23 (42,6%) |
Na Tabela 3, são apresentadas as dimensões do IBM e a presença da SB nos profissionais do estudo. Não foi constatada correlação entre a presença da SB e as variáveis sociodemográficas e laborais estudadas.
Tabela 3 – Níveis das três dimensões do Inventário de Burnout de Maslach e ocorrência da Síndrome de Burnout entre os profissionais de enfermagem de um hospital privado-filantrópico. Porto Alegre, RS, Brasil, 2021
Dimensões do IBM |
Total (n=78) |
Enfermeiro (n=24) |
Técnico de enfermagem (n=54) |
p-valor |
Exaustão emocional* |
|
|
|
0,233 |
Alto |
27 (34,6%) |
5 (20,8%) |
22 (40,7%) |
|
Médio |
27 (34,6%) |
10 (41,7%) |
17 (31,5%) |
|
Baixo |
24 (30,8%) |
9 (37,5%) |
15 (27,8%) |
|
Despersonalização* |
|
|
|
0,107 |
Alto |
23 (29,5%) |
11 (45,8%) |
12 (22,2%) |
|
Médio |
26 (33,3%) |
6 (25%) |
20 (37%) |
|
Baixo |
29 (37,2%) |
7 (29,2%) |
22 (40,7%) |
|
Realização profissional* |
|
|
|
0,010 |
Alto |
27 (34,6%) |
14 (58,3%) |
12 (24,1%) |
|
Médio |
29 (37,2%) |
7 (29,2%) |
22 (40,7%) |
|
Baixo |
22 (28,2%) |
3 (12,5%) |
19 (35,2%) |
|
Síndrome de Burnout† |
|
|
|
0,445 |
Sim |
9 (11,5%) |
4 (16,7%) |
5 (9,3%) |
|
Não |
69 (88,5%) |
20 (83,3%) |
49 (90,7%) |
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*Qui-Quadrado de Pearson; †Teste Exato de Fisher; Diferença evidenciada pelo teste estatístico.
Na etapa qualitativa, os dados foram agrupados em seis categorias. A primeira categoria, “Apoio institucional e capacitação das equipes”, aborda a percepção dos profissionais em relação ao apoio fornecido pela instituição durante a pandemia. Esta categoria se concentra no recebimento de capacitação e treinamento sobre a doença. Alguns participantes mencionaram que receberam treinamentos suficientes, enquanto outros relataram que esses treinamentos foram inexistentes.
As informações eram postas pra todo mundo a todo momento, a gente ficava atualizando todo mundo sobre o que tinha pra usar, o que podia, tinha treinamentos. (E2)
Porque [...] eu estava numa unidade, daí quando fechou pra virar UTI, eu fui realocado sem treinamento pra uma área COVID. (E3)
A segunda categoria, “Orientações de protocolos e uso dos Equipamentos de Proteção Individual”, aborda as falas que abordaram a falta de EPIs, principalmente no que se refere às máscaras. A ausência de clareza e orientação por parte do Controle de Infecção Hospitalar gerava confusão e apreensão entre os profissionais. Isso ocorria devido à constante mudança nas orientações e à falta de comunicação efetiva com os profissionais que estavam na linha de frente.
O que dificultou foi o esclarecimento e a falta de EPI’s mesmo. (E4)
Mas assim, realmente o que pega muito é questão de protocolos, “ah, hoje vou usar máscara”, amanhã tu vai botar outra, hoje tu vai botar o jaleco, hoje tu não vai mais, hoje tu transporta o COVID com a máscara. (E6)
A terceira categoria, “Atendimento médico via telemedicina”, trata da nova abordagem para o acompanhamento dos afastamentos do trabalho, suscitando opiniões divergentes entre os participantes. Enquanto alguns identificaram essa estratégia como positiva, outros destacaram dificuldades na realização do atendimento por meio desse formato.
Foi bem rápido. Todo mundo “ah, porque não estava conseguindo” e pra mim foi uma questão de horas. (E5)
“Alguém da telemedicina vai te ligar e vai te passar”, [...], nunca mais ninguém me ligou. (E6)
Na quarta categoria, “Adequação da equipe de enfermagem durante a pandemia”, foram reunidos tópicos relacionados aos aspectos que envolvem a organização e os recursos da equipe de enfermagem para fornecer atendimento aos pacientes. A escassez de profissionais e a ausência de uma política para o retorno dos profissionais afastados foram identificadas como fatores que comprometeram o cuidado aos pacientes e a saúde dos profissionais.
Escala normal, pegando paciente normal, a unidade toda, e aí eu já estava pensando, qualquer coisa eu vou pedir ajuda. (E5)
Porque às vezes o que acaba acontecendo é tu ficar com número de funcionário e aí a escala ficar apertada, e aquele que ficou não consegue dar um atendimento bom, um atendimento que realmente o paciente necessita. (E9)
Na quinta categoria, “Medos, incertezas e compromisso em ser profissional de enfermagem durante uma pandemia”, foram abordados alguns sentimentos explícitos, como o medo de contaminação, a preocupação com os colegas e o receio de enfrentar uma pandemia. Situações de estresse e apreensão também foram expressas, possivelmente contribuindo para a compreensão do desenvolvimento do desgaste emocional ou da SB entre esses profissionais. Contudo, o comprometimento profissional também foi ressaltado.
Tu vai trabalhar preocupado, tu volta mais preocupado. Teve momentos que eu cheguei em casa chorando [...] foi bem difícil. (E1)
O retorno foi ótimo porque a gente que é da área da saúde não quer ficar fora, mesmo pegando, mesmo se contaminando, a gente quer estar na linha de frente, quer estar na batalha. (E2)
A sexta categoria, “Prevenção das situações de adoecimento e sugestões para a organização do trabalho de enfermagem durante a pandemia”, teve o apoio psicológico como o tema predominante nas respostas. Além disso, o uso correto dos EPIs, a aplicação de protocolos mais claros e a supervisão desses no cotidiano de trabalho, também foram elencados.
Acho que o apoio psicológico seria essencial assim, trabalho em grupo de psicologia, eu acho que isso fez muita falta para as equipes, para a gente saber lidar com o desconhecido, que era uma doença desconhecida então por isso que estava todo mundo com muito medo. (E2)
O olhar pro cuidado na unidade de limpeza, a hora D, orientar bem os funcionários, usar os EPIs que estão disponíveis, orientar também a equipe médica. (E5)
A integração dos dados, conforme proposto no desenho do estudo, foi realizada por meio de conexão. Dessa maneira, os principais dados quantitativos são apresentados na primeira coluna e conectados com as informações extraídas da etapa qualitativa na segunda coluna, as quais auxiliam a confirmar e explicar de maneira convergente os resultados de ambas as etapas do estudo. Na última coluna, são apresentadas as categorias temáticas que estão relacionadas com as informações destacadas, conforme descrito na Figura 3.
Figura 3 - Joint display integrando as abordagens. Porto Alegre, RS, Brasil, 2021
DISCUSSÃO
Os dados evidenciam uma expressiva prevalência de afastamento do trabalho, um elevado índice de esgotamento profissional e a constatação da SB na amostra estudada, considerando o momento crítico, desafiador e incerto da pandemia.
Os resultados do estudo apontam que a maioria dos profissionais de enfermagem é do sexo feminino, predominante ao longo da história da profissão e apontado na literatura(18,19). A maioria dos profissionais está trabalhando na empresa por apenas um ano, e somente 5,1% têm mais de 10 anos de experiência, indicando uma força de trabalho nova na instituição e que pode representar alta rotatividade dos profissionais(20).
O número reduzido de profissionais, quando associado ao aumento da carga de trabalho, torna-se um fator passível de sobrecarga ao profissional, levando-o a um cansaço físico e mental. A sobrecarga impacta diretamente na qualidade da assistência prestada(21), visto que o profissional sobrecarregado não irá realizar suas atribuições com a devida atenção, fragmentando a assistência e o cuidado ao paciente(22).
Apesar de o estudo não detalhar quais foram os outros motivos que levaram ao afastamento do profissional, durante as entrevistas, os participantes relataram que observaram colegas de trabalho se afastando por ansiedade, estresse e depressão. O elevado percentual de afastamentos por outros motivos e a manifestação dos profissionais reforçam o impacto negativo da pandemia na força de trabalho de enfermagem, criando um círculo vicioso em que o esgotamento leva ao adoecimento e ao afastamento do trabalho, gerando sobrecarga àqueles que necessitam atender às demandas dos pacientes. Os dados do presente estudo corroboram com os aspectos levantados anteriormente e os achados de outro estudo(23), demonstrando o elevado grau de afastamento dos profissionais de enfermagem durante a pandemia.
O temor de transmitir a doença para a família ou de contaminar outras pessoas também foi evidente nos relatos dos entrevistados, reforçando que o medo da transmissão familiar foi uma das situações que causou maior sofrimento moral entre os profissionais de enfermagem(24). Todos esses fatores, junto com a adoção de novos protocolos e o uso de EPIs, sugerem uma maior carga emocional, podendo ter influenciado nos afastamentos do trabalho durante esse período.
Uma estratégia para lidar com o afastamento dos profissionais foi a implantação da telemedicina, uma ferramenta utilizada no Brasil desde o início do século 20, mas com o avanço da COVID-19 e as instruções de isolamento social, o método tornou-se popular(25). No Brasil, a literatura é extensa, porém, trata-se apenas do uso do recurso por pacientes, não abordando na perspectiva do profissional que fez o uso durante a pandemia.
Os profissionais atenderam pacientes suspeitos ou confirmados com a doença, mesmo quando não estavam na unidade específica, independentemente de terem realizado algum treinamento específico. Estudos apontam que o treinamento adequado dos profissionais é essencial para o controle da disseminação de doenças infecciosas, proporciona uma sensação de segurança e proteção, além de reduzir os riscos de adoecimento profissional(26). A necessidade de reorganização das estratégias de ensino e dos serviços reforçam o protagonismo da equipe de enfermagem na detecção precoce, triagem e promoção da saúde no enfrentamento de doenças infecciosas, como a pandemia de COVID-19(27).
A necessidade de aprender a realizar corretamente a paramentação e desparamentação dos EPIs, juntamente com a escassez dos mesmos, tornou-se uma nova fonte de estresse, pois os profissionais precisaram reaprender a reutilizar o material sem se expor a uma possível contaminação(28). Essa situação demonstra um fator significativo para o adoecimento dos profissionais de enfermagem, implicando na exaustão do profissional e em falhas assistenciais devido à sobrecarga(29).
O estresse e o excesso de trabalho atribuído durante o turno de trabalho, somados às jornadas intensas, tornam o profissional mais suscetível ao desenvolvimento da SB, levando-o ao desgaste emocional e à insatisfação(30).
A realização profissional apresentou prevalência de nível médio na amostra total dos participantes, o que converge com os resultados de um estudo realizado em Minas Gerais, onde os participantes apresentaram moderada realização profissional(31). No presente estudo, quando comparados enfermeiros e técnicos de enfermagem, verificou-se uma diferença estatisticamente significativa (p=0,010), apontando maior realização entre os enfermeiros.
Nas falas dos enfermeiros, foi possível perceber que, apesar de relatarem as dificuldades vivenciadas no dia a dia, ainda estavam satisfeitos com o trabalho desenvolvido, mostrando-se gratos por poderem desempenhar suas funções.
A prevalência da SB foi de 11,5% dos profissionais que participaram da pesquisa. A vivência de uma pandemia apenas agravou as dificuldades já existentes na profissão, evidenciando o quanto a área da saúde é precária e que nem o sistema nem os profissionais estavam preparados para o que precisaram enfrentar(32). Um estudo internacional realizado no ano de 2020 apontou que 22,7% dos profissionais que participaram da pesquisa apresentaram um alto risco de desenvolver a SB devido à baixa realização profissional(33).
Os dados da presente investigação demonstram níveis menores de SB quando contrastados com um estudo realizado em Singapura, que apontou a enfermagem como a categoria profissional com os maiores escores de burnout (28%)(34).
Em uma análise integrada dos dados quantitativos e qualitativos descritos no presente estudo, pode-se presumir que o comprometimento profissional, o compromisso social e os valores da profissão, enfatizados durante as entrevistas, possam ter influenciado na elevação dos níveis de realização profissional e na proteção dos participantes para o desenvolvimento da SB.
Como limitação do estudo, destaca-se o número amostral em uma única instituição, apesar de a taxa de retorno ter sido considerada satisfatória. Outra limitação é a escassez de literatura referente ao desenvolvimento da SB durante a pandemia de COVID-19, o que dificultou a comparação dos resultados com outros estudos.
O estudo contribuiu para o conhecimento do tema em um momento único e tem potencial para subsidiar os gestores, assim como as políticas públicas acerca da compreensão dos efeitos da pandemia na organização do trabalho e na saúde dos profissionais, sob a ótica daqueles que estiveram na linha de frente para o cuidado aos pacientes, desenvolvendo, portanto, medidas que auxiliem a proteção do trabalhador e a melhor organização do trabalho de enfermagem. O acompanhamento da saúde mental dos profissionais de saúde, assim como as estratégias de suporte, durante esse período, ainda é escasso, apesar de todas as diretrizes que foram estabelecidas nos últimos anos.
CONCLUSÃO
Apesar de a SB ter apresentado baixa frequência entre os trabalhadores de enfermagem, constatou-se que a pandemia de COVID-19 repercutiu sobremaneira na organização do trabalho desses profissionais. Isso pode ser evidenciado pelos depoimentos dos profissionais em relação à falta de EPIs, à carga de trabalho, às realocações sem treinamento prévio e à inconsistência dos protocolos institucionais, que impactaram a rotina hospitalar.
Além da presença da SB, foi constatada uma elevada presença de exaustão emocional e baixa despersonalização no grupo estudado, assim como diferença na realização profissional entre as categorias. Observou-se que os enfermeiros obtiveram um maior nível de realização profissional quando comparados aos técnicos de enfermagem.
O afastamento dos profissionais foi demonstrado no estudo pelos resultados quantitativos, evidenciado pelo número de afastados por suspeita, confirmação e/ou outros motivos, além de ter sido revelado nos dados qualitativos pelas falas dos participantes nas entrevistas. Os profissionais ressaltaram os sinais de sobrecarga, o déficit de profissionais e o difícil acesso aos EPIs como fatores que contribuíram para o aumento da exaustão emocional e dos afastamentos.
Os dados apresentados demonstram que na maioria dos casos houve contato dos profissionais com pacientes portadores de COVID-19, sinalizando o impacto que a pandemia teve em todo o sistema de saúde, para além das áreas específicas de contingenciamento de pacientes.
*Artigo extraído da dissertação de mestrado “Covid-19 e suas repercussões na organização do trabalho e saúde do trabalhador de enfermagem: estudo de método misto”, apresentada à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, MS, Brasil.
Os autores declaram não haver conflito de interesses.
REFERÊNCIAS
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Submissão: 30/03/2022
Aprovado: 07/08/2023
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