EDITORIAL

 

Integração da família no cuidado neonatal: novas perspectivas de assistência

 

Mariana Bueno1, Ana Claudia Garcia Vieira2, Fabiana Bacchini3

 

1The Hospital for Sick Children, Toronto, ON, Canadá

2Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, RS, Brasil

3Canadian Premature Babies Foundation, Toronto, ON, Canadá

 

Ao longo dos anos, o aparato tecnológico crescente nas Unidades de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN) permitiu a sobrevida de recém-nascidos cada vez mais prematuros e enfermos. Paralelamente, observou-se o distanciamento entre bebês hospitalizados e suas famílias, culminando com o acesso restrito dos pais a seus filhos, limitado a poucas horas diárias de contato e interação. Esse distanciamento, entretanto, pode influenciar negativamente na recuperação e no desenvolvimento dos recém-nascidos e lactentes que permanecem hospitalizados por períodos prolongados. Isto porque, atualmente, sabe-se que o papel dos pais é crítico na promoção de desfechos de saúde favoráveis durante a hospitalização e após a alta hospitalar destes recém-nascidos.

A integração da família no cuidado neonatal (do inglês, Family Integrated Care - FICare) constitui-se como modelo de atenção que promove uma cultura de colaboração entre os familiares e a equipe assistencial, favorecendo e facilitando que os pais se tornem os cuidadores principais de seus bebês, enquanto se promove autoconfiança, conhecimento e independência(1).

Trata-se de uma estratégia desenvolvida no Canadá por um grupo composto por pais que previamente experienciaram a hospitalização de seus filhos em UTINs (também conhecidos como pais veteranos), médicos, enfermeiros, educadores de familiares, consultores em lactação e assistentes sociais, considerando a mudança de paradigma proposta pelo modelo ‘Humane Neonatal Care’ desenvolvido na Estônia(2). O FICare baseia-se em quatro pilares: (1) o ambiente da UTIN, que deve favorecer a permanência dos pais pelo maior tempo possível, (2) a capacitação dos profissionais para promover o envolvimento das famílias no cuidado, bem como ferramentas de capacitação e apoio às famílias, (3) a educação dos pais à beira do leito, com vistas a compartilhar o conhecimento, bem como promover autoconfiança e habilidades, (4) a oferta de apoio psicossocial às famílias(3).

A integração da família ocorre desde a admissão do neonato. Assim sendo, enquanto se cria espaço para o cuidado de saúde necessário, também se favorece a promoção do vínculo e do afeto que somente a família pode oferecer(1,4).

O FICare se diferencia do cuidado centrado na família ao expandir e fortalecer o papel das famílias na assistência, por intermédio de educação, apoio e colaboração. Em unidades neonatais que adotam o FICare, as famílias são ouvidas, seus valores e habilidades são identificados e fortalecidos e a participação e tomada de decisão são estimuladas para que haja aumento da independência e do protagonismo por parte da família(1).

Em um estudo piloto em uma unidade de terapia intensiva neonatal, 31 neonatos em FICare foram comparados a 62 neonatos que receberam os cuidados habituais, observando-se maior ganho de peso durante a hospitalização e melhores índices de aleitamento materno no momento da alta hospitalar, enquanto as mães apresentaram menores níveis de estresse no grupo que recebeu o FICare(2). Mais recentemente, em um ensaio clínico multicêntrico, o grupo de neonatos que recebeu o FICare (n=891) apresentou melhor ganho de peso, maior frequência diária de amamentação, além de menores escores de ansiedade e estresse maternos em comparação com o grupo controle (n=895)(5). Finalmente, dez unidades foram randomizadas para receber o FICare e dez unidades mantiveram suas práticas habituais de cuidado neonatal em um ensaio clínico de comunidade. Os resultados indicaram menor tempo de hospitalização dos recém-nascidos que receberam o FICare. Além disso, não se observou aumento nas readmissões ou visitas ao serviço de emergência neste grupo(6).  

Adicionalmente, os benefícios se estendem aos pais, visto que se observa maior participação nos cuidados durante a hospitalização, melhoria do vínculo afetivo, além da redução de sintomas depressivos e de estresse nos pais que experienciaram o FICare, quando comparados aos pais de famílias que receberam cuidados habituais(7).

Integrar as famílias nos cuidados neonatais nas UTINs requer uma mudança cultural profunda, na qual os profissionais de saúde educam e apoiam os pais(6).

No cenário brasileiro, uma das principais dificuldades é considerada a mudança no comportamento das equipes de saúde em relação à autonomia e envolvimento dos pais como um processo distinto e necessário, a ser reconhecido e incentivado para promover não apenas a saúde, mas também o bem estar dos recém-nascidos e suas famílias. Isso envolve o desenvolvimento de programas educacionais e colaboração com os pais, ao mesmo tempo em que oferece suporte de uma maneira que enfatize a parceria e a inclusão, em vez da abordagem tradicional paternalista que persiste nos contextos clínicos. A infraestrutura física das UTINs não deve ser vista como um fator determinante para adotar uma estratégia de cuidado que promova a presença contínua dos pais nas instituições de saúde, apesar da ausência ou inadequação do espaço físico. Finalmente, considera-se essencial o apoio de gestores, nos diferentes níveis hierárquicos, no sentido de promover e proteger os direitos dos bebês e de suas famílias. É fundamental garantir licenças maternidade estendidas em casos de hospitalizações prolongadas, recentemente aprovadas no país. No entanto, garantir licença paternidade e implementar estratégias eficazes e abrangentes de apoio social, emocional e espiritual são medidas necessárias para integrar os pais aos cuidados neonatais.    

Refletir e revisar conceitos, preconceitos e crenças do que pode ser o melhor para estas famílias demanda tempo, apoio de expertises (pais veteranos e profissionais), seja para avaliar os resultados de estudos que refletem os aspectos relacionados à satisfação com os cuidados e suas repercussões na melhoria da saúde, ou para realizar sessões de mentoria/orientação para as equipes de saúde que desejam implementar o FICare no Brasil.

Um amplo processo de reestruturação é necessário para que as famílias sejam incorporadas e vistas a partir de outra perspectiva de cuidado: elas são os principais cuidadores, capazes de suprir as necessidades básicas de seus filhos no ambiente hospitalar, bem como de proporcionar continuidade dos cuidados em seus lares.

 

REFERÊNCIAS

1. British Association of Perinatal Medicine. Family integrated care: a framework for practice [Internet]. London: British Association of Perinatal Medicine; 2021 [citado 2023 Feb 10]. Disponível em: https://www.bapm.org/resources/ficare-framework-for-practice

 

2. O'Brien K, Bracht M, Macdonell K, McBride T, Robson K, O'Leary L, et al. A pilot cohort analytic study of Family Integrated Care in a Canadian neonatal intensive care unit. BMC Pregnancy Childbirth. 2013;13(Suppl 1):S12. https://doi.org/10.1186/1471-2393-13-S1-S12

 

3. Lorié ES, Wreesmann WW, van Veenendaal NR, van Kempen AAMW, Labrie NHM. Parents' needs and perceived gaps in communication with healthcare professionals in the neonatal (intensive) care unit: a qualitative interview study. Patient Educ Couns. 2021;104(7):1518-1525. https://doi.org/10.1016/j.pec.2020.12.007

 

4. Zanoni P, Scime NV, Benzies K, McNeil DA, Mrklas K, Alberta FICare in Level II NICU Study Team. Facilitators and barriers to implementation of Alberta family integrated care (FICare) in level II neonatal intensive care units: a qualitative process evaluation substudy of a multicentre cluster-randomised controlled trial using the consolidated framework for implementation research. BMJ Open. 2021;11(10):e054938. https://doi.org/10.1136/bmjopen-2021-054938

 

5. O'Brien K, Robson K, Bracht M, Cruz M, Lui K, Alvaro R, et al. Effectiveness of Family Integrated Care in neonatal intensive care units on infant and parent outcomes: a multicentre, multinational, cluster-randomised controlled trial. Lancet Child Adolesc Health. 2018;2(4):245-254. https://doi.org/10.1016/S2352-4642(18)30039-7

 

6. Benzies KM, Aziz K, Shah V, Faris P, Isaranuwatchai W, Scotland J, et al. Effectiveness of Alberta Family Integrated Care on infant length of stay in level II neonatal intensive care units: a cluster randomized controlled trial. BMC Pediatr. 2020;20(1):535. http://dx.doi.org/10.1186/s12887-020-02438-6.

 

7. van Veenendaal NR, van der Schoor SRD, Broekman BFP, Groof F, van Laerhoven H, van den Heuvel MEN, et al. Association of a Family Integrated Care Model with paternal mental health outcomes during neonatal hospitalization. JAMA Netw Open. 2022;5(1):e2144720. https://doi.org/10.1001/jamanetworkopen.2021.44720.

 

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