Practices and daily routine of professionals in health public services under the light of academic studies
As práticas e o cotidiano de profissionais em serviços públicos de saúde, na ótica de estudos acadêmicos
Giselda Quintana Marques1, Sandra Maria Cezar Leal1, Maria Alice Dias da Silva Lima2, Ana Lúcia de Lourenzi Bonilha2, Marta Julia Marques Lopes3.
1Doutoranda em Enfermagem. Escola de Enfermagem. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS, Brasil; 2Professora Adjunta, Doutora em Enfermagem. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS Brasil; 3Professora Titular, Doutora em Sociologia. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS, Brasil.
Abstract. This article provides a discussion on the results of studies about health practices and the daily routine of professionals in Public Health Services of emergency hospital and basic care. A comparison was done on the results of three papers and one thesis in order to identify and to analyze the points of convergence and singularities among them. The analysis comprised four themes: centrality of the medicine professional; access, welcome and bond of the user; freedom margins of the worker; violence in the daily routine of the hospital work. In spite of the political changes proposed in the regulations of the Sistema Único de Saúde, the current paradigm is the physician-centered and biological one, with little autonomy of the remaining agents. The organization of the working process meets predominantly the requirements of the workers, being the user reduced to object of action of these professionals. The nurse work is performed with little freedom margin; mainly the agents with senior high school level education. When the user looks for the services, he searches for the resolution of his needs; if he does not succeed, he goes on searching till he gets it. It is everybody’s task in the work team to search for the construction of working processes centered in the needs of the user, in their practice where the professionals’ actions stand out for the integrality of the subjects and for the care of the population.
Descriptors: Health Services, Quality of Health Care, Emergency Nursing
Resumo. Discutem-se resultados de estudos sobre as práticas de saúde e o cotidiano de profissionais em Serviços Públicos de Saúde de atenção básica e hospitalar de urgência. Foram comparados os resultados de três dissertações e uma tese a fim de identificar e analisar os pontos de convergência e singularidades entre elas. Foram elencados quatro temas: centralidade do profissional médico; acesso, acolhimento e vínculo do usuário; margens de liberdade do trabalhador; violência no cotidiano do trabalho hospitalar. Apesar das mudanças políticas propostas na legislação do Sistema Único de Saúde, o paradigma vigente é o biológico e médico-centrado, havendo pouca autonomia dos demais agentes. A organização do processo de trabalho responde predominantemente às demandas dos trabalhadores, sendo o usuário reduzido a objeto da ação desses profissionais. O trabalho da enfermagem é exercido com pouca margem de liberdade; principalmente os agentes de nível médio. O usuário, quando procura os serviços, busca a resolução de suas necessidades; não conseguindo, desloca-se de um serviço para outro até obtê-la. Cabe à equipe de trabalho, buscar a construção de processos de trabalho centrados nas necessidades do usuário, no exercício dos quais as ações dos profissionais pautem-se pela integralidade dos sujeitos e pelo atendimento da população.
Descritores: Serviços de saúde, Qualidade da assistência à saúde, Enfermagem em emergência
INTRODUÇÃO
Esta revisão teve origem na disciplina Fundamentos e Práticas de Enfermagem e Saúde no curso de Dourado da Escola de Enfermagem da Universidade do Rio Grande do Sul, com a finalidade de discutir resultados de estudos sobre as práticas e o cotidiano de profissionais em Serviços Públicos de Saúde, de forma a identificar e analisar pontos de convergência e singularidades obtidos nesses estudos.
Os resultados dessas pesquisas, que apesar de serem pautadas pelas abordagens do objeto de investigação e por cotidianos diversos, refletem sobre a temática e discutem questões referentes às práticas dos trabalhadores em saúde nos serviços que atendem usuários do Sistema Único de Saúde (SUS).
Na concepção do processo de saúde e doença e na resolução das necessidades dos usuários, têm sido tomadas como objeto de estudo as práticas de saúde. A concepção de saúde como prática social tem fundamento teorico-metodológico na dialética marxista que preconiza o princípio da totalidade, da contradição e da historicidade, nas quais sobressaem o político e o econômico como manifestações combinadas de pessoas, grupos e classes sociais. As profissões da Área da Saúde, entendidas como práticas sociais, “[...] vão se constituindo com base em determinações históricas e sociais, cuja investigação permite alcançar a origem e os processos que configuram as condições concretas em que essas práticas são realizadas em cada espaço e lugar” (1:02).
O que se pode apreender é que, constitutivamente, em cada prática existe uma profunda aliança entre as dimensões econômicas, políticas e sociais. As práticas sociais se apresentam na sociedade como trabalho organizado e são fundamentadas em conhecimentos científicos. Estes saberes específicos de cada profissão são mediados pela ciência e trabalho, sendo denominados de saber técnico, operante ou tecnológico(2).
O trabalho pode ser definido como um ato humano pelo qual os sujeitos sociais produzem e reproduzem a sua existência, tanto no plano material quanto subjetivo, ambos condicionando-se mutuamente(3). Assim sendo, a organização dos processos de trabalho em saúde leva em conta os diferentes elementos que o constituem. Esse processo ocorre quando há o encontro do trabalhador que tem um saber tecnológico, constituído historicamente (saberes em geral e os específicos de cada profissão), com a matéria prima (insumos), os instrumentos de trabalho (normas, rotinas, diretrizes políticas, exames, consultas, equipamentos), com o agente consumidor (usuário), no momento do trabalho em si. Esse encontro resultará num produto, o cuidado, que na saúde é consumido pelo usuário, no mesmo momento em que é produzido. Sendo assim, o produto é indissociável do processo que o produziu; é a própria realização da atividade(4).
O processo de trabalho é determinado pela sua finalidade, pela idealização do resultado que foi projetado, pelo trabalhador, muito antes da sua realização. O produto terá contido a intenção do trabalhador que realiza a ação. Por outro lado, o objeto da ação, o usuário, também interage no processo, colocando nesse espaço a sua intencionalidade, conhecimento e representações. Nessa troca de subjetividades estará expressa a concepção de saúde e doença de quem produz e de quem recebe os cuidados, assim como o modo de produção dos mesmos(4).
Um dos grandes desafios impostos aos trabalhadores, às instituições e à sociedade é a busca de um modo de gerir e operar processos de trabalho que levem em conta as relações que se estabelecem entre trabalhadores e usuários, gestores e trabalhadores, cidadãos e Poder Público e entre instituições, buscando, neste caso, responder às diretrizes do SUS.
METODOLOGIA
Foram selecionadas, para análise, três dissertações(5-7) e uma tese(8) com as quais pesquisaram-se as práticas de saúde em Serviços Públicos, em regiões distintas do Brasil e do Rio Grande do Sul. A escolha dos estudos foi feita a partir da sugestão da temática proposta na disciplina Fundamentos e Práticas de Enfermagem e Saúde. Procuraram-se teses e dissertações que tivessem estudado o trabalho em saúde em cotidianos diversos, tais como: emergência hospitalar, unidades de internação, pronto atendimento e unidade de atenção básica, com a finalidade de confrontar cotidianos diferentes em busca de pontos de convergências entre eles. A escolha dos estudos foi intencional.
Uma das dissertações teve por objetivo analisar o trabalho de uma Equipe de Saúde da Família (ESF), no que se refere ao acolhimento dos usuários e à produção de vínculo, durante o trabalho vivo em ato, procurando caracterizar o modo de produção de saúde que estava sendo adotado e as concepções dos trabalhadores acerca do usuário do serviço, visando a identificar o potencial de acolhimento e de construção de vínculo entre profissionais e usuários(5).
A tese, teve por objetivo apreender, em uma perspectiva compreensiva, o significado e as várias faces que a violência adquiria nas múltiplas redes (de trabalho, de poder, étnico-morais, organizativas) que se confrontavam no cotidiano da assistência, em dois Serviços Públicos de emergência hospitalar(8). A violência e sua influência no trabalho e serviços de Saúde Pública também foi tratada em uma das dissertações(6), focando-se no olhar de trabalhadoras de enfermagem aos cuidados a pacientes hospitalizados vítimas de violência, com o objetivo de conhecer e compreender esse “olhar”, bem como o fazer das trabalhadoras de enfermagem no cuidado ao paciente.
A quarta dissertação teve por objetivo identificar e analisar os motivos pelos quais os usuários utilizavam o pronto atendimento de um Centro de Saúde, bem como a organização do trabalho nesse serviço, identificando como se dava o acesso, o acolhimento e o vínculo de seus usuários ao Sistema de Saúde(7).
Na análise desses estudos elencaram-se quatro temas convergentes: centralidade no trabalho do profissional médico; acesso, acolhimento e vínculo de usuários; margens de liberdade do trabalhador; violência no cotidiano do trabalho hospitalar.
O último tema só foi abordado nas pesquisas realizadas no âmbito hospitalar(6;8), entretanto considera-se importante incluí-lo na discussão, pois é um tema influente nos processos e relações de trabalho e ainda pouco visível nos serviços de saúde, ressaltando-se também a importância de aborda-lo nas discussões relacionadas às práticas de saúde.
APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS
Centralidade no trabalho do profissional médico
A organização, o processo de trabalho, o ambiente, as atividades e as responsabilidades dos profissionais da Área de saúde foram discutidos em três dos estudos analisados(5;7-8). Apesar de terem estudado espaços e processos de trabalho diferentes, as autoras destacaram que havia uma divisão das tarefas e ressaltaram que, na organização do trabalho, havia centralidade no profissional médico, tanto no âmbito hospitalar(8), quanto no Serviço de Pronto Atendimento(7) e na Equipe da Saúde da Família (ESF) (5). Em uma das investigações(6), não foi encontrada informação referente à centralidade desse profissional; entretanto, foi evidenciado que o tratamento dos usuários hospitalizados, por agressão, seguia as especialidades médicas (Neurologia, Ortopedia, Cirurgia Geral, etc) como único critério de indicação para a unidade de internação. Esses critérios levavam em conta a organização do trabalho que já estava previamente definida, sendo desconsideradas, nesse processo, as influências do perfil dos pacientes, vitimas de violência e/ou infratores.
Na Equipe de Saúde da Família, a organização do trabalho também estava centrada no médico, nas atividades clínicas e no procedimento terapêutico. Os demais profissionais atuavam de forma complementar ou decorrente do ato médico. Esse profissional era a principal referência para os auxiliares de enfermagem e para os agentes comunitários de saúde, que buscavam nele auxílio e orientação, mesmo quando a situação era de competência da enfermeira, que desenvolvia prioritariamente atividades administrativas e educacionais coletivas. Os momentos individuais eram raros, exceto na coleta de exames citopatológicos; Nessa ocasião, as usuárias eram orientadas de que o retorno ao Serviço, para obtenção do resultado do exame, deveria ser feito por meio do agendamento da consulta médica. Foi constatado que, na ausência do médico, a unidade era pouco freqüentada. A organização do processo de trabalho ocasionava um acúmulo de demandas clínicas a esse profissional e sua ausência era percebida por todos, caracterizando, assim, o modelo médico-centrado(5).
No contexto das emergências, nos dois hospitais do Rio de Janeiro, as ações estavam centralizadas no médico, pois era ele quem decidia o diagnóstico, solicitava os exames, bem como estabelecia quem teria alta para casa ou necessitava hospitalização(8). No Serviço de Pronto Atendimento, a organização tecnológica do trabalho colocava o médico como detentor de poder, e aquele que dava a última palavra em muitas situações, seguido da enfermeira, nos seus espaços de poder e autonomia.
O trabalho das diferentes categorias profissionais estava articulado para garantir o pronto atendimento. Os médicos desenvolviam a consulta, buscando a resolução dos sintomas referidos pelos pacientes e a enfermagem executava atividades a fim de “acomodar” os usuários conforme a consulta médica. Embora existisse um clima de muita cordialidade no atendimento, pelo qual os usuários saíam agradecidos e as relações fossem agradáveis, identificava-se que a prestação dos serviços era direcionada para o ato a ser executado, não abrindo espaço para a ampliação do foco de atendimento para além da queixa principal e da prescrição médica. A comunicação entre setores, na maioria das vezes, era feita por receituários, boletins de atendimento e encaminhamentos, o que restringia a participação dos demais trabalhadores do Serviço na tomada de decisão(7).
As condições materiais e subjetivas do trabalho de emergência, no Rio de Janeiro(8), foram descritas do ponto de vista da organização do espaço, da dinâmica do trabalho, dos meios de trabalho da emergência e da identidade profissional, do perfil dos pacientes (violência) e do aperfeiçoamento tecnológico. A organização dos espaços nos hospitais refletia uma cultura organizacional direcionada tecnicamente aos profissionais; os indivíduos eram atendidos por especialidades, ou seja, pela natureza do trauma ou da queixa clínica, o que também foi identificado no hospital de Porto Alegre(6). O saber/poder médico era evidente e os atendimentos estavam centrados nesse profissional. Os espaços oscilavam em situações de cooperação, conflitos, harmonia, sobrecarga de trabalho e suas contradições causavam sofrimento para o profissional, levando-o a se sentir em uma guerra, pois os locais mais problemáticos eram denominados como Bósnia, em um hospital, e como Vietnã no outro. A dinâmica de trabalho “caótica imprimia dose de sofrimento aos profissionais” (8:66)
Nas emergências estudadas no Rio de Janeiro havia uma sobrecarga de trabalho no atendimento aos usuários, que aumentava precisamente pela demanda proveniente da ineficácia das Unidades básicas e pelos encaminhamentos de usuários dos Municípios vizinhos(8). Este fenômeno também foi identificado nos estudos de Porto Alegre quando constatou-se que havia encaminhamentos formais e informais das Unidades de atenção básica para as emergências dos hospitais, que na maioria das vezes, eram feitos quando se esgotava a capacidade de atendimento ou quando finalizavam as fichas para os médicos(5-7).
Foram identificados conflitos entre as unidades ambulatoriais e a emergências dos hospitais e entre as Unidades básicas e especializadas e o pronto atendimento ao serem encaminhados pacientes em situações entendidas como não urgentes, principalmente em relação à falta de comunicação entre esses serviços, gerando ao usuário consultas e deslocamentos desnecessários(7-8).
Acesso, acolhimento e vínculo de usuários
No contexto da Equipe de Saúde da Família, foram descritas situações nas quais os trabalhadores não identificavam, nas ações realizadas, no seu cotidiano, oportunidades para o acolhimento de demandas e necessidades do usuário, ficando presos às normas e às regras criadas pela forma em que o trabalho era organizado. Nesse contexto, a recepção dos usuários era direcionada ao agendamento para consulta médica, priorizando a ordem de chegada na Unidade, o que fazia com que eles iniciassem as filas na madrugada ou optassem por usar o pronto atendimento(5).
Por outro lado, a invasão maciça do pronto atendimento e, principalmente, de casos não urgentes, nas emergências hospitalares, além de provocar um óbvio desgaste, devido à sobrecarga de trabalho, causava ainda, um sentimento de desperdício da vocação maior do serviço que seria a de salvar vidas, bem como de subutilização do alto preparo técnico dos profissionais (7-8).
Apesar das dificuldades encontradas pelos usuários nas emergências hospitalares, havia um forte consenso de que esse setor do hospital público ainda era resolutivo, sendo a melhor opção para os casos genuinamente de “emergência” (indivíduos em risco de vida); entretanto, para os que não se classificassem neste contexto, a qualidade do atendimento era discutível. A triagem nas emergências dos hospitais era uma situação que requeria, além de envolvimento, capacidade para resolver os impasses e conflitos, o que nem sempre era possível, pois, em determinado momento, a mesma era feita pelo pessoal da segurança, que encaminhava o usuário para o atendimento, de acordo com “a parte do corpo afetada” (8).
No Serviço de Pronto Atendimento a recepção era um ponto estratégico porque por lá passavam todos os usuários e suas demandas. Constatou-se que as auxiliares de enfermagem organizavam o trabalho de forma que o médico ficasse bastante protegido das mazelas da recepção e da triagem. Essas trabalhadoras exerciam, inúmeras vezes, a função de barreira, limitando o acesso do usuário ao serviço(7).
No contexto da internação hospitalar, as trabalhadoras de enfermagem, que cuidavam dos pacientes, referiam o transtorno no dia-a-dia de trabalho e a superlotação pelo alto índice de internações, decorrentes da incidência de traumas oriundos da violência urbana. Algumas consideravam que a violência integrava o cotidiano do hospital e afirmavam que já tinham aprendido a lidar com essas situações, e, muitas, utilizavam a fragmentação na relação técnico-paciente como estratégia de reduzir os tempos de contato técnico com o paciente. Nesse sentido, a fragmentação do cuidado reduz o risco de mobilizar sentimentos de angústia ou revolta, com os quais não sabiam lidar(6).
Além do parcelamento das práticas, no contexto das emergências, foi descrito o poder negociado nas interações entre médicos, enfermeiras, auxiliares, pacientes e familiares. Identificou-se que havia “esquemas” entre os profissionais, principalmente entre os médicos, na negociação da divisão do trabalho(8). Os esquemas são acordos organizacionais, geralmente fechados, entre médicos da mesma especialidade; são considerados “acomodações de horários, possibilidades de folga”, ou seja, um profissional trabalha por dois, um dia um “fica de sobreaviso” e o outro “assume” o plantão, mas dificilmente o profissional que está “de sobreaviso” será acionado. Entretanto, os usuários permanecem horas nas filas aguardando o atendimento. Esses arranjos são feitos nos bastidores, restritos aos pares e longe das vistas dos pacientes e dos gerentes, apesar de serem de conhecimento e aceitação de todos, inclusive dos gestores.
O trabalho do médico não foi objeto de estudo das demais autoras (5-7) apesar de ter sido citada a influência que esse profissional exerce entre os demais trabalhadores, submetendo-os, por vezes, a relações inseguras e equivocadas com os usuários e com as regras da Instituição.
Constatou-se que o usuário era, ao mesmo tempo, sujeito e objeto, algumas vezes ouvido e acolhido; em outras, o vínculo não era estabelecido e o acolhimento não acontecia. Havia pouco envolvimento entre os trabalhadores e os pacientes. Também foi relatada a figura influente do paciente “inoportuno” ou “família inoportuna”, na referência dos trabalhadores, aqueles que de alguma forma representam a perturbação à ação profissional de indivíduos e equipes(5-6;8).
Margens de liberdade do trabalhador
Pressupõe-se que, em toda organização de saúde, o trabalhador pode exercer um certo autogoverno no trabalho vivo em ato. Por mais arraigadas que sejam as práticas, sempre existirão possibilidades em que o trabalhador poderá exercer a sua autonomia(4). Nesse sentido, identificaram-se, na sala de politrauma de um dos hospitais de emergência, atitudes de “insubordinação” dos auxiliares de enfermagem, diante dos acadêmicos de Medicina, e considerou-se que se deviam ao fato de o profissional possuir “mais tarimba” para lidar com os desafios, do que os alunos que tentavam impor um saber/poder médico que ainda não tinham(8). Possivelmente, respaldadas em suas experiências e em seu saber, construído ao longo do tempo, esses profissionais tentassem expandir as margens de liberdade no seu trabalho, mesmo que pela via da insubordinação.
O autogoverno das trabalhadoras de enfermagem no cuidado ao paciente hospitalizado por agressão foi descrito por Leal(6), enfatizando que cada uma enfrentava a situação da forma que considerava mais adequada, adotando estratégias de enfrentamento para suportar o sofrimento causado por essas situações de cuidado.
No Serviço de Pronto Atendimento, a autonomia do trabalhador de enfermagem ainda era muito tênue, pois, na maioria das vezes, reduzia-se à execução da prescrição médica. As demandas eletivas simples poderiam ser acolhidas, de forma responsável pela enfermagem, que desempenhava um importante papel que poderia ser ampliado pela escuta qualificada(7). Quanto à Equipe de Saúde da Família também foi reforçada a importância de se ampliar o espaço de trabalho da enfermagem, principalmente o da enfermeira, pois seu trabalho era pouco identificado pela equipe e pelos usuários(5).
Violência no cotidiano do trabalho hospitalar
Estudou-se a violência como influência nos processos e relação de trabalho considerando que ela faz parte do dia-a-dia do hospital, mas que é banalizada pelos profissionais(7-8). No entanto, algumas trabalhadoras de enfermagem expressaram suas dificuldades e os sentimentos que mais interferiam no cotidiano do cuidado, tais como o estresse, o medo e a indignação. Cuidavam, no atendimento ao paciente hospitalizado por agressão, tanto da vítima quanto do agressor, que, muitas vezes, é o responsável por atos de crueldade, como estrupos, assassinatos, entre outros. Destacou-se que a alternativa encontrada pelas trabalhadoras era “acostumarem-se” com esses pacientes, ou seja, “naturalizarem” para aceitar a conivência com sua realidade. Identificou-se que esse “costume” não era adquirido facilmente e/ou permanecia “escondido”, pois entre as falas, mesmo das profissionais mais experientes, identificaram-se tentativas de criar um “discurso para consumo externo” que pudesse definir uma situação próxima de uma conduta ideal(6).
Deslandes(8) e Leal(6) entenderam que esse perfil de usuário impõe novas práticas e condutas no trabalho. Nesse sentido, é necessário consolidar o atendimento de emergência às vítimas da violência e ser capaz de prover os cuidados à saúde e desencadear ações de prevenção. Para tanto, concluem que é necessário investir conjuntamente, em quatro aspectos: sensibilizar e capacitar todos os profissionais envolvidos no atendimento ao usuário, nas emergências; criar rotinas institucionais para os casos de agressões, suicídios, violência conjugal e violência doméstica contra a criança e o adolescente, bem como para os demais casos de violências, “discutindo internamente as responsabilidades e ações dos profissionais das equipes médica, de Enfermagem, de Serviço Social, a fim de que seja desencadeada uma ação de suporte às vítimas” (8:198); aprimorar a comunicação com outros serviços; integrar uma rede de prevenção; melhorar o registro hospitalar dos casos de violências a fim de subsidiar o planejamento de ações futuras.
Considera-se que, nesse contexto, um dos fatores mais importantes é a construção, nos serviços de saúde, de um olhar voltado à visibilização da violência como a causadora do agravo, bem como criar condições institucionais para que o profissional da Área da saúde, possa agir como representante do Poder Público e além do trauma, tratar também as questões que envolvem os agravos decorrentes da violência, encaminhando o usuário aos serviços especializados, os quais devem estar articulados com as emergências e hospitais públicos(6;8).
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
A seguir serão feitas algumas reflexões, baseadas nos estudos que foram escolhidos como cenário das práticas e do cotidiano dos profissionais de saúde. Entretanto, não se pretende esgotar o tema, mas visibilizar algumas tensões que dificultam o processo de trabalho nas Instituições Públicas de Saúde.
Apesar das mudanças significativas na forma de organização do trabalho, com base nos princípios e diretrizes do SUS, os estudos no Campo da Saúde flagram situações como as descritas aqui. Os processos de trabalho ainda estão centrados nas demandas e necessidades dos trabalhadores e muito pouco nas dos usuários. No entanto, essa centralidade, não garante trabalhadores e serviços qualificados e acolhedores. Os descontentamentos e o sofrimento no trabalho atestam insuficiências, inadequações e falta de investimento em se constituir saudável o trabalho em saúde.
A centralidade no profissional médico e a correspondente subordinação do trabalho da enfermagem podem ser evidenciadas nos estudos analisados. Essa organização do processo de trabalho, que tem por base o modelo clínico de atenção, tem colocado o profissional médico como o detentor de saber e poder. Tem-se identificado que mesmo nas propostas de reordenamento da atenção básica, como nas Equipes de Saúde da Família e no acolhimento por classificação de risco, proposto para as emergências, que têm a noção de risco como critério, o trabalho médico ainda tem sido destaque, principalmente por meio da consulta e dos procedimentos.
O saber médico e a competência técnica de cada profissional outorgam-lhe uma posição de poder. O médico, na produção e reprodução dos serviços no modelo clínico, ocupa o poder nuclear, na medida em que é ele que institui o processo de diagnóstico e terapêutica. Todos os outros profissionais e seus saberes específicos entram em cena a partir de um indicativo médico. É ele que desencadeia todo o processo de restabelecimento da saúde ao corpo biológico doente. Sendo assim, seu trabalho possui a máxima autonomia e exerce grande poder institucional, podendo estabelecer normas e regras informais de funcionamento do serviço, que, por vezes, tem estado em desacordo com as regras da Instituição(9-10).
O biologicismo centraliza as ações de saúde no indivíduo e na doença, sendo que, mesmo em um serviço de saúde da família, que preconiza a integração entre os membros da equipe e ações de saúde voltadas ao acolhimento e à integralidade do usuário, não há mudança de paradigma nos processos de trabalho.
Também constatou-se, nos estudos analisados, que o trabalho da enfermagem é exercido com pouca margem de liberdade. A enfermagem, principalmente os agentes de nível médio, realiza etapas do processo terapêutico, com enfoque no procedimento, o que caracteriza a divisão do trabalho na saúde. A capacidade de lidarem com as situações complexas depende dos saberes gerais e específicos da profissão, das experiências e vivências, assim como da capacidade de estabelecer relações.
O trabalho em saúde, apesar de todo o incremento tecnológico, sustenta-se pelo trabalho intensivo, que articula um relativo nível de domínio do seu processo que é desigualmente distribuído entre seus agentes(10). O usuário dos serviços, sendo objeto de trabalho assistencial dos profissionais, é fragmentado em diferentes atividades realizadas por distintos agentes. Assim o conhecimento e as práticas também são parcializados.
Nessa perspectiva, Leal e Lopes(11) referem que as trabalhadoras de enfermagem utilizam o parcelamento do cuidado, para lidar com o paciente hospitalizado vítima de violência, por considerarem ser uma alternativa para “dar conta do cuidado”, pois, em muitas situações, não sabem como lidar com as conseqüências do envolvimento com esses pacientes.
A queixa dos profissionais de que o usuário procura indevidamente os serviços de emergência, trazendo sobrecarga ao trabalho já estressante, principalmente nas demanda não urgentes, tem provocado, nos trabalhadores, um sentimento de desperdício da vocação, que seria a de tratar somente a urgência e de subtilização do alto e específico preparo técnico. Por outro lado, também fica evidenciado que usuários não têm suas necessidades atendidas nos serviços e por isso peregrinam até obtê-las, mesmo tendo vínculo com serviços de atenção básica e especializada.
As experiências prévias de usuários nos serviços de saúde interferem na escolha, demonstrando que a relação entre a sua satisfação e a competência do profissional é fator que indica a qualidade do serviço, e faz com que eles se desloquem independentemente da localização geográfica(12).
Pode-se inferir que, para os profissionais do pronto atendimento, a queixa não urgente, dita eletiva, é caracterizada como do perfil das unidades ambulatoriais, sendo, então, para lá encaminhada. Por sua vez, para as unidades, básicas ou especializadas, a queixa aguda não é reconhecida como uma prioridade no seu atendimento, porque o perfil é entendido como sendo de pronto atendimento. Esse fato, além de trazer insatisfação da parte de usuários que são encaminhados de um lado para outro, sem respostas às suas necessidades, traz ao trabalhador uma sensação de que os pacientes estão no lugar errado e que vêm ao serviço para buscar atendimentos desnecessários, distorcendo a missão do serviço.
Nesse contexto, Ludwig e Bonilha(13) identificaram que pacientes encaminhados informalmente, com queixas eletivas, dos ambulatórios de um hospital-escola para a emergência da mesma Instituição, não eram bem acolhidos pelos profissionais da emergência, porque entendiam que suas demandas não eram pertinentes ao perfil do serviço, causando conflitos entre usuários e profissionais, bem como entre os próprios trabalhadores.
Apesar disso, o hospital e o pronto atendimento, ainda são os locais que detêm um número maior de possibilidades de oferta de serviços aglutinados em um único local (consulta, medicamentos, exames, internações) além de ofertar profissionais com maior grau de especificidade e qualificação. O que se tem visto é o usuário procurando nos serviços de saúde pelo atendimento médico e, os trabalhadores, com base na organização do seu processo de trabalho, respondendo a essa necessidade com oferta de procedimentos e atendimentos médicos.
O acolhimento como processo complexo e não apenas “recepção cordial”, pode ser um instrumento essencial ao atendimento de forma a interferir no estado de saúde do indivíduo e da coletividade, o que poderia ser utilizado como forma de responsabilização do profissional e da equipe com o usuário, tanto na produção de sujeitos autônomos quanto no aumento do percentual de curas(14;15).
A enfermagem tem um papel social relevante, pois ao mesmo tempo em que se subordina ao trabalho médico, também pode reproduzir essa subordinação dentro de sua equipe, assim como pode modificá-la, implementando abordagens que tornem o cuidado integral, competente e mais voltado para os problemas e necessidades do usuário, ao invés de somente realizar tarefas e cumprir rotinas. A comunicação e a interação são potentes ferramentas de trabalho, por meio das quais o trabalhador introduzirá mudanças na relação de poder existente, tanto entre categorias profissionais, quanto entre profissional-usuário.
Toda Unidade tem o compromisso de acolher o usuário, mesmo nas situações em que essa não é a sua missão. Acolher não significa atender a todos, mas abrir as portas do Sistema ao usuário de forma a recolocá-lo no local mais adequado para o atendimento de suas necessidades e demandas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os estudos apresentam e destacam características das práticas e da relação entre a organização do trabalho e o acesso e acolhimento da população nos serviços. A organização do processo de trabalho é centrada no saber/poder do profissional médico, na pouca autonomia dos demais agentes e na redução do usuário a objeto da ação desses profissionais.
Identificou-se centralidade no trabalho do médico e complementaridade e subordinação relativa dos demais agentes, tanto na Atenção Básica, quanto no contexto hospitalar. A triagem não qualificada, realizada por muitos desses agentes, privilegia o atendimento do médico, conferindo-lhe exclusividade o que é compartilhado por todos, inclusive pelos usuários. Nessa perspectiva, a organização do atendimento nas emergências dos hospitais em estudo é voltada às especialidades médicas, desconsiderando e descontextualizando a influência de fatores socioambientais na morbimortalidade da porta de entrada (sala de emergência) e nos trabalhos daí decorrentes.
A sobrecarga de trabalho percebida pelos trabalhadores dos hospitais, ao longo dos últimos anos, com demandas não pertinentes a sua capacidade tecnológica acarreta um desgaste do trabalhador e, ao usuário, uma sensação de que estão procurando o serviço errado, na hora errada. Portanto, pensa-se que para transformar a cultura organizacional das Instituições Públicas de Saúde será preciso (re)pensar a comunicação entre usuários, trabalhadores e gestores do Sistema, construindo, assim, novas práticas que privilegiem o indivíduo como centro da assistência.
O usuário, quando procura os serviços, busca a resolução de suas necessidades; não conseguindo, desloca-se de um serviço para outro até obtê-la. Ele pensa que a manifestação de uma necessidade pode expressar a solução do que representa um problema. A definição do problema leva em conta o conceito de saúde-doença apreendido por ele nas relações sociais e no cotidiano. Cabe aos trabalhadores/gestores a compreensão e caracterização desses problemas a fim de tornar o atendimento mais acolhedor, utilizando uma abordagem que leve à solução competente e que satisfaça o usuário.
Considera-se que a enfermeira, pelas peculiaridades da profissão, é um dos profissionais de saúde que está mais próximo dos usuários, seja em uma unidade de saúde da família, pronto atendimento ou serviço de emergência e internação hospitalar. Na maioria das Instituições é responsável pela gerência e coordenação das atividades de saúde e, mesmo quando não exerce cargos de chefia, é quem organiza os serviços e encaminha as dificuldades cotidianas de trabalho. Portanto, sua autonomia e seu envolvimento nas práticas de saúde desenvolvidas, em especial, nos Serviços Públicos de Saúde é imprescindível. Na dimensão da equipe cabe a todos os integrantes buscarem a construção de processos de trabalho centrados nas necessidades do usuário, nos quais as ações dos profissionais pautem-se pela integralidade dos sujeitos e pelo atendimento da população.
REFERÊNCIAS
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11 Leal SMC, Lopes MJM. Violência como objeto da assistência em um hospital de trauma: o “olhar” da enfermagem. Ciência & Saúde Coletiva 2005 abr-jun; 10(2):419-31.
12 Ludwig MLM, Bonilha ALL. O contexto de um serviço de emergência: com a palavra o usuário. Rev Bras Enferm. 2003, 56(1):12-7.
13 Ramos DD, Lima MADS. Acesso e acolhimento aos usuários em uma unidade de saúde de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Cad Saúde Pública 20032003 jan-fev; 19(1):27-34.
14 Campos GW. Considerações sobre a arte e a ciência da mudança: revolução das coisas e a reforma das pessoas. O caso da saúde. In: CECÍLIO, L. C. O. (Org.) Inventando a Mudança na Saúde. São Paulo(SP): Hucitec; 1997.
15 Schimith MD, Lima MADS. Acolhimento e vínculo em uma Equipe de Saúde da Família. Cad Saúde Pública 2004 nov-dez; 20(6):1487-94.
Contribuição dos autores:Marques GQ e Leal SMC participaram de todas as etapas do estudo. Lima MADS e Bonilha ALL propuseram a concepção e o desenho do estudo, bem como sua revisão. Lopes MJM revisou e propôs sugestões à redação final.
Endereço para correspondência: Rua Rachel Wolfrid, 220. Porto Alegre. CEP: 91260-240. Rio Grande do Sul(RS), Brasil. Email: gqmarques@terra.com.br; bonilha@enf.ufrgs.br; malice@enf.ufrgs.br.
Received:
Nov 4th, 2006
Revised: Nov 21, 2006
Accept: May 20th, 2007