ORIGINAL
Distanciamento social na pandemia da COVID-19 e estado emocional de estudantes universitários: estudo descritivo-exploratório
Liasse Monique de Pinho Gama¹, Verusca Soares de Souza¹, Soraia Geraldo Rozza Lopes¹, Guilherme Oliveira de Arruda¹, Helder de Pádua Lima¹, Cremildo João Baptista¹
1 Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Coxim, MS, Brasil
RESUMO
Objetivo: Conhecer a vivência com o distanciamento social, no período inicial da pandemia da COVID-19, e o estado emocional de estudantes universitários. Método: Estudo qualitativo, exploratório-descritivo, realizado com 237 estudantes de instituição de ensino superior pública, situada no centro-oeste brasileiro. Dados coletados virtualmente, por questionário eletrônico, lançados em planilha e submetidos à análise descritiva e de conteúdo temática. Resultados: Emergiram as categorias Entre mudanças emocionais e dificuldades de adaptação ao ensino remoto e Distanciamento social e aproximação com o próprio ser. As narrativas sugerem a vivência de preocupações, ansiedade, abalo e instabilidade emocional com o distanciamento social e o ensino remoto de emergência no período pandêmico, e denotam maior tempo para o autocuidado e a convivência em família. Conclusão: Faz-se necessário o desenvolvimento de estratégias intersetoriais de promoção da saúde e prevenção de transtornos mentais, em parceria com a instituição de ensino, ajustadas ao contexto.
Descritores: Saúde Mental; Estudantes; Pandemias.
INTRODUÇÃO
A doença conhecida popularmente como COVID-19 é uma infecção respiratória provocada pelo Coronavírus 2. Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a disseminação do agravo como pandemia, justificada pela alta taxa de transmissão do vírus e pelo alastramento intercontinental(1). Diante desse cenário, a pandemia da COVID-19 gerou novos estressores, despertou medos e preocupações, trazendo repercussões para saúde mental da população(2).
A rápida disseminação do vírus alterou a vida das pessoas e vários aspectos da economia global, pública e privada(1). Esse cenário epidemiológico acarretou adoção de medidas econômicas, políticas, sociais e sanitárias nos níveis federal, estadual e municipal, com objetivo de assegurar o distanciamento físico, para diminuir a disseminação do vírus e evitar o colapso do sistema de saúde(3). As medidas incluem o isolamento de casos ou suspeitos, o incentivo à higienização das mãos, o uso de máscaras faciais e as medidas progressivas de distanciamento social, com proibição de eventos e aglomerações, restrição de viagens e transportes públicos, além de ensino remoto de emergência adotado por diversas instituições de ensino(4).
Com o fechamento de instituições educacionais, o ensino remoto de emergência foi identificado como alternativa ao ensino presencial, havendo a necessidade de rápida transição da aprendizagem para a esfera digital por parte dessas instituições, dos professores e estudantes(5-6). Ao considerar a alta incidência de distúrbios emocionais em estudantes universitários, esperava-se que essa situação pudesse refletir na saúde desta população(7). No Brasil, estudo que abordou as repercussões psicológicas do distanciamento social decorrentes da pandemia da COVID-19 e as estratégias de enfrentamento dos graduandos, evidenciou que o distanciamento social, o sexo, a renda, estudar em universidade pública, não professar nenhuma religião e não trabalhar associaram-se a sintomas de depressão(8).
Estudantes universitários enfrentam barreiras tecnológicas, individuais, domésticas, institucionais e comunitárias, ao tentarem se adaptar ao ensino on-line. Somando-se a isso, as consequências econômicas da pandemia aumentaram as disparidades na educação, em geral, favorecendo aqueles com maior acesso a recursos, como internet e computadores. Para alguns indivíduos, essas barreiras são transitórias e devem ser ultrapassadas com o fim da crise global de saúde; para outros, podem persistir ou ter repercussões de longo prazo(9).
Em razão do impacto esperado da pandemia entre discentes, é fundamental o desenvolvimento de estudos com foco na experiência deles, durante o atual período de crise, a fim de subsidiar o desenvolvimento de estratégias de promoção da saúde e prevenção de transtornos mentais devidamente ajustadas a esta situação. Diante desse cenário, objetivou-se conhecer a vivência do distanciamento social no período inicial da pandemia da COVID-19 e o estado emocional de estudantes universitários.
MÉTODO
Estudo qualitativo, descritivo-exploratório, estruturado com base na recomendação internacional para relatos de pesquisas qualitativas Standards for Reporting Qualitative Research (SRQR)(10). Realizado com estudantes de instituição pública federal de ensino superior, situada no centro-oeste brasileiro, sediada na capital e distribuída por mais nove unidades localizadas em municípios distintos do interior, fazendo-se presente, portanto, em todas as macrorregiões administrativas do estado. A instituição constitui-se referência para o ensino de nível superior para população do estado e estudantes de outras regiões do país.
Os dados foram coletados entre março e abril de 2020, período marcado pela pandemia da COVID-19, por repercussões sanitárias, sociais e econômicas, bem como pelo estabelecimento de medidas de distanciamento social e práticas do ensino remoto de emergência na instituição investigada. Por isso, a coleta seguiu por meio virtual, com questionário acessível em link encaminhado por e-mail e aplicativos de mensagens instantâneas. Ainda, foi divulgado nas páginas oficiais da universidade (site institucional, sistema de gestão acadêmica e redes sociais). Ao acessar o link, os participantes indicavam ou não a concordância, registrando o aceite no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), antes de prosseguirem para o preenchimento.
O questionário eletrônico foi elaborado na plataforma Google Forms, composto por questões fechadas e abertas, distribuídas em três blocos: características sociodemográfica, abordava variáveis pertinentes ao sexo, raça/cor, religião, estado civil, com quem mora, passou por dificuldades financeiras durante a pandemia, ocupação, recebe bolsa ou auxilio estudantil, faz parte do grupo de risco para a COVID-19, é estudante de graduação ou pós-graduação; comportamentos e percepções durante o período de distanciamento social; e autoavaliação do estado de saúde mental. No bloco referente aos comportamentos e às percepções durante o período de distanciamento social, inseriu-se a seguinte questão: “com o distanciamento social, você sente que seu estado emocional está:”, com as seguintes opções de resposta: “pior”, “igual ou indiferente” e “melhor”, em que se reservou espaço para que o discente pudesse relatar por escrito sobre como se encontrava o estado emocional durante o período de pandemia com distanciamento social.
Para seleção dos participantes do estudo, consideraram-se os seguintes critérios de inclusão: ser discente da instituição, ter idade igual ou superior a 18 anos e ter respondido à questão correspondente ao relato sobre o estado emocional durante a pandemia supracitada, perfazendo, portanto, a amostra de 237 participantes.
Os dados coletados foram automaticamente lançados na planilha do programa Microsoft Excel. Os 237 depoimentos coletados a partir da questão supramencionada foram reunidos, a fim de constituir o corpus de análise do presente estudo. Informações que pudessem identificar os participantes, como o endereço de e-mail, foram ocultados no banco de dados, de modo a garantir sigilo e confidencialidade.
Aplicaram-se estatísticas descritivas (frequências absolutas e relativas), a fim de caracterizar as mudanças no estado emocional dos discentes. Para análise dos depoimentos coletados em formato de texto, utilizou-se do programa de análise qualitativa MaxQDA, para organizar o material e operacionalizar as etapas da análise de conteúdo, modalidade temática.
Na etapa de pré-análise, o uso do MaxQDA possibilitou o armazenamento do material em único local, facilitando o acesso e a leitura flutuante do material, com a finalidade de elaborar indicadores que fundamentaram a interpretação e organização. Para exploração do material, visualizou-se a lista de códigos e categorias criada pelo software, editada conforme análise realizada pelos pesquisadores, possibilitando a escolha das unidades de análise e a codificação. Os depoimentos codificados foram submetidos ao tratamento e à interpretação, momento em que inferências e sínteses dos resultados mais significativos foram elaboradas(11).
O presente estudo integra o projeto de pesquisa intitulado “Saúde mental da comunidade universitária de instituições públicas federais do Centro-Oeste durante e após o regime de distanciamento social decorrente da pandemia da COVID-19”, aprovado pelo Comitê Nacional de Ética em Pesquisa, conforme parecer nº 3.971.653.
RESULTADOS
Predominaram estudantes do sexo feminino, solteiros, residentes com cônjuges e familiares e que tinham apenas os estudos como ocupação (Tabela 1).
Tabela 1 – Caracterização de estudantes de universidade pública federal (n=237). Coxim, MS, Brasil, 2020
n |
% |
|
Sexo* |
|
|
Feminino |
149 |
61,3 |
Masculino |
87 |
36,9 |
Raça/cor |
|
|
Branco |
118 |
49,8 |
Preto/Pardo |
108 |
45,6 |
Amarelo/Indígena |
11 |
4,6 |
Religião |
|
|
Com religião |
168 |
70,9 |
Sem religião |
69 |
29,1 |
Estado civil |
|
|
Casado, união estável e afins |
51 |
21,5 |
Solteiro e afins |
186 |
78,5 |
Com quem mora |
|
|
Cônjuges e familiares |
178 |
75,1 |
Sozinho |
44 |
18,6 |
Amigos, colegas e afins |
15 |
6,3 |
Passou por dificuldades financeiras durante a pandemia? |
|
|
Sim |
74 |
31,2 |
Não |
163 |
68,8 |
Ocupação* |
|
|
Apenas estuda |
147 |
62,3 |
Estuda e trabalha |
89 |
37,7 |
Bolsa/auxílio estudantil* |
|
|
Sim |
67 |
28,4 |
Não |
169 |
71,6 |
Grupo de risco para COVID-19 |
|
|
Sim |
72 |
30,4 |
Não |
12 |
5,1 |
Não respondeu |
153 |
64,6 |
Estudantes de |
|
|
Graduação |
226 |
95,4 |
Pós-graduação |
11 |
4,6 |
*Missing = ausência de resposta ao item (n=236) / um(a) estudante não respondeu às variáveis sexo, ocupação e auxílio estudantil.
Fonte: Elaborada pelos autores, 2021.
Na Tabela 2, destacaram-se as frequências das narrativas codificadas, de modo a apresentar como foram constituídas as duas categorias temáticas intituladas: Entre mudanças emocionais e dificuldades de adaptação ao ensino remoto e Distanciamento social e aproximação com o próprio se’.
Tabela 2 – Distribuição de frequências, conforme a categorização dos códigos (n=237). Coxim, MS, Brasil, 2020
Lista de códigos |
N |
% |
Categorias temáticas |
Instabilidade emocional |
39 |
12,0 |
Entre mudanças emocionais e dificuldades de adaptação ao ensino remoto |
Abalo emocional |
76 |
23,2 |
|
Preocupação com os outros |
2 |
0,6 |
|
Reflexos do ensino remoto |
30 |
9,2 |
Ambas as categorias |
Falta de relacionamentos/socialização |
22 |
6,7 |
Distanciamento social e aproximação com o próprio ser |
Controle emocional |
145 |
44,3 |
|
Adaptação ao novo contexto |
13 |
4,0 |
Fonte: Elaborada pelos autores, 2021.
Entre mudanças emocionais e dificuldades de adaptação ao ensino remoto
As narrativas sugerem que, com o distanciamento social ocasionado pela pandemia da COVID-19, os estudantes vivenciaram comumente preocupações com os outros, angústias, ansiedade, irritabilidade, desânimo, abalo e instabilidade emocional. Nesse contexto, a diminuição na frequência nas relações sociais e a experiência com o ensino remoto de emergência e uso de tecnologias da informação e comunicação emergiram como importantes fatores geradores de estresse entre os estudantes.
Me sinto um pouco desanimada, parece que estou sem fazer nada, mas, ao final das contas, tenho muita coisa para fazer, grande parte delas pela internet, fazendo uso dos meios de comunicação virtual, e, às vezes, nem dou conta, e percebo que é apenas uma sensação, pois estou ficando em casa, e estando em casa, parece que não temos nada para fazer, ou não que não estamos fizemos nada, por que a rotina está alterada (Estudante de graduação, 38 anos).
Preocupada, por conta das atividades, ansiosa talvez (Estudante de graduação, 40 anos).
No começo da quarentena, estava ok, mas depois de um mês sem ver minhas amigas e professores, estou começando a ficar mais ansiosa e irritada. Sinto falta de abraçar, falar face a face com as pessoas. Sentir que a minha vida está “andando” (Estudante de graduação, 20 anos).
Sofrendo algumas alterações, tipo me deixando ansiosa (Estudante de graduação, 18 anos).
Na maior parte do tempo, estou ótimo em relação ao isolamento social, porém, às vezes, bate o desespero e quero que o semestre acabe, para que assim eu possa ter algum conforto emocional (Estudante de graduação, 22 anos).
Nunca estive tão triste com a graduação, sei que o distanciamento é necessário, mas a qualidade do ensino a distância está acabando comigo, este seria meu último semestre com disciplinas presenciais, mas acontece que eu não sei se vou conseguir com tamanha má vontade de um ou dois professores, a recomendação de dar aulas curtas não existe aqui, pois aulas que seriam de 2 horas presenciais duram a manhã inteira com o professor passando slide no zoom [aplicativo de videoconferência], marcam provas de uma semana para outra, não temos tempo para nos prepararmos, provas mais extensas do que seriam normalmente. Se eu não precisasse muito do meu auxílio, eu já teria trancado este semestre, pois sei que o meu aproveitamento vai ser baixíssimo, e isso logo no momento mais importante que é o final do curso (Estudante de graduação, 22 anos).
Sinto falta de ver pessoas, ar livre (Estudante de graduação, 31 anos).
Muito pior, o EAD foi adotado de forma abrupta e ninguém estava preparado, nem alunos, muito menos professores, isso aumentou a ansiedade (Estudante de graduação, 23 anos).
Depende do dia, da quantidade dos afazeres domésticos com as atividades acadêmicas (Estudante de graduação, 55 anos).
Percebe-se que, durante a pandemia da COVID-19, ocorreram mudanças marcantes na rotina dos estudantes. A restrição ao ambiente doméstico, a necessidade de conciliar afazeres domésticos com os estudos e a mudança abrupta para o ensino remoto de emergência pareceram deflagrar sentimentos e sensações desagradáveis entre os estudantes, que demandaram esforço adaptativo nesta nova rotina de vida. Nesse contexto novo e hostil, foram comuns nas narrativas as alusões à sobrecarga de atividades acadêmicas, além de reflexões e questionamentos sobre a qualidade do ensino, as práticas pedagógicas implementadas pelos docentes (aulas e avaliações) e o desempenho acadêmico.
Distanciamento social e aproximação com o próprio ser
Nas narrativas, foi possível elucidar que o distanciamento social trouxe a possibilidade de alguns participantes direcionarem o foco para si, terem mais tempo para praticar o autocuidado, conviver com familiares e valorizar as relações sociais. Algumas narrativas, repetidas por diferentes estudantes, dão conta de que um nível de socialização distinto daquele praticado na vigência de medidas de distanciamento não seria necessário. Esse contexto parecia favorecer o encontro consigo, o controle emocional e o desenvolvimento de estratégias de manejo e enfrentamento do estresse.
Melhor, porque não preciso socializar (Estudante de pós-graduação, 22 anos).
Sempre fui antissocial (Estudante de graduação, 26 anos).
Estou muito feliz, pois estou com minha família (Estudante de graduação, 20 anos).
Está ótimo, tenho mais tempo para mim mesma (Estudante de graduação, 23 anos).
Melhor, pois tive chance de me conhecer melhor (Estudante de graduação, 20 anos).
Melhor, mas não por não precisar socializar, e sim por ter pegado este tempo para refletir mais sobre mim e minha interação no mundo (Estudante de graduação, 25 anos).
Faço caminhadas pela manhã, ajuda a não ficar louca e mantenho a circulação sanguínea. Também é o meu momento de contato externo (Estudante de graduação, 25 anos).
Melhor. Pois, me sinto melhor no meu município de origem do que na capital (Estudante de graduação, 19 anos).
Me sinto que algo está faltando, mas essa experiência que estamos passando será de grande valia para que valorizemos mais a companhia das pessoas (Estudante de graduação, 20 anos).
Minha concentração melhorou, sinto-me mais relaxada e satisfeita com a vida de modo geral, não perco tempo no trânsito, passo mais tempo com a família. Percebo que meu ambiente de trabalho prejudica minha saúde mental e que estava infeliz e nem me dava conta. Espero concluir meu curso e passar em outro concurso ainda esse ano (Estudante de graduação, não informou idade).
Ganhei mais tempo para estudar, ler, pesquisar, ouvir música, assistir documentários, aulas das matérias que curso (Estudante de graduação, 65 anos).
Em síntese, o distanciamento social revelou-se como período de dualidade. De um lado, narrativas marcadas por mudanças em vários contextos da vida, exigindo esforços adaptativos e, por outro, melhorias na vida de alguns estudantes, pois houve o retorno aos municípios de origem e o fortalecimento de vínculos afetivos, com destaque ao estreitamento dos laços familiares, devido ao isolamento social, e a possibilidade da prática de exercícios físicos no domicílio.
DISCUSSÃO
Estudos apontam algumas consequências decorrentes da pandemia da COVID-19, dentre elas, os reflexos no estado emocional de estudantes vêm sendo abordados, com objetivo de identificar os principais estressores associados à pandemia, bem como analisar as estratégias de enfrentamento utilizadas por essa população(2,8). Ainda que não exista tratamento comprovadamente eficaz contra a COVID-19, o processo de distanciamento físico continua sendo a medida mais aconselhada para diminuir a transmissão do vírus(12-13).
Entre as variáveis que podem ser relacionadas ao apoio emocional, destacam-se a religiosidade e o convívio familiar. Parte dos estudantes investigados (70,9%) afirmaram que professavam alguma religião, o qual torna-se estratégia de apoio ao momento pandêmico. Nesta perspectiva, estudo que analisou as manifestações de crenças sobre a pandemia da COVID-19 entre usuários do Facebook no país apontou o apego à figura religiosa como forma de lidar diariamente com as diversas notícias relacionadas à COVID-19(14), o que pode implicar ressignificação do cenário estressor, por meio de compreensão sob o viés religioso da situação.
A maior parte dos estudantes residia com cônjuge e/ou familiares. Pesquisa realizada em universidade particular do Texas, Estados Unidos, com objetivo de identificar os principais estressores associados à pandemia COVID-19 e compreender os efeitos na saúde mental de estudantes universitários, obteve que a maioria desses alunos (68%) referiu viver com membros da família, tornando o ambiente mais distrativo para os afazeres acadêmicos. Além disso, morar com os familiares reduziu as interações pessoais com colegas de faculdade, movimentação física e outras atividades sociais, justificado pelo medo e pela preocupação por si mesmo ou entes queridos(2). Neste sentido, infere-se que a convivência com familiares pode contribuir para o enfrentamento da pandemia e, como consequência, favorecer a manutenção do estado emocional de estudantes universitários.
Em relação às narrativas dos estudantes, o distanciamento conduziu a mudanças repentinas e radicais no estilo de vida dos acadêmicos, acarretando instabilidade e abalo emocional. Nesse contexto, a categoria temática “Entre mudanças emocionais e dificuldades de adaptação ao ensino remoto” aponta para sentimentos relacionados à ansiedade, irritabilidade, sensação de incapacidade e falta de contato físico.
Os sentimentos de nervosismo, tensão, preocupação, dificuldades de pensar com clareza também foram obtidos em investigação que teve por objetivo estudar o sofrimento mental de alunos do ensino profissionalizante, durante o ensino remoto, devido à pandemia da COVID-19(15), o que sugere que as dificuldades não são exclusivas dos acadêmicos do ensino superior e exigem reflexões e replanejamento em todos os níveis de ensino.
Como consequência do humor depressivo-ansioso, os estudantes podem apresentar dificuldades em realizar atividades diárias com satisfação e perder o interesse pelas coisas(15), o que foi observado nos excertos dos estudantes. Em um contexto de mudança para o ensino remoto emergencial, em que os estudantes e os docentes não se prepararam, a sobrecarga de atividades acadêmicas, associada à influência das notícias de óbitos e hospitalizações constantes nas mídias, pode refletir na manifestação de sentimentos como o medo e a ansiedade, dificultando o cumprimento das atividades remotas. De certa forma, parte da população vem sofrendo negativamente alterações na saúde mental durante a pandemia. Em revisão bibliográfica sobre casos de depressão e ansiedade durante a pandemia, apontou-se que ainda não existem dados epidemiológicos nítidos quanto à ocorrência das complicações psicológicas, mas se pressupõe que mais da metade da população mundial já desencadeou ou agravou alguma disfunção psicológica desde o início da pandemia da COVID-19 até março 2021, período dos artigos analisados(16).
São vários os fatores estressantes que podem advir das circunstâncias de uma pandemia, associa-se isso a inúmeras causas que podem variar de acordo com o grupo populacional. Entre a comunidade acadêmica, pode-se mencionar a grande disseminação de fake news por fontes não confiáveis, oriundas e disponíveis na internet, principalmente nas redes sociais; desfechos negativos, como os altos índices de óbito; carga de atividades acadêmicas exaustivas, além do isolamento social que pode fomentar no acadêmico vivência negativa, permeada de anseios, angústia e outros sentimentos desfavoráveis, como abandono e desamparo(16). Ademais, entre os fatores estressantes expressados pela população, a dificuldade em sair na rua, a interpretação de que o Estado não está assistindo às pessoas, o desamparo em situações que não podem ser controladas e o medo de infecção favorecem o adoecimento mental da sociedade(17). Portanto, as consequências negativas na saúde mental da população, bem como o abalo emocional da comunidade acadêmica, são variações das diferentes realidades vivenciadas pela população mundial. Cabe ao Estado e à Universidade compreender e, a partir disto, assistir o acadêmico em totalidade.
No caso da instituição de ensino investigada, que optou pelo ensino remoto de emergência, política que merece maior atenção nesse contexto é a assistência estudantil, por meio de ações, como rodas de conversa, mesmo que de forma virtual, acompanhamento psicológico e pedagógico, ações de acesso à internet e equipamentos como notebook, bem como manutenção de bolsas e auxílios financeiros. Ou seja, em um cenário vivenciado por insegurança, abalo e instabilidade emocional na comunidade acadêmica, associado a novos desafios humanos e educacionais, as políticas públicas têm relevância reforçada para o enfrentamento da pandemia, no qual o acadêmico não fica desassistido pela Universidade e não encara sozinho a responsabilidade de superar as dificuldades enfrentadas.
Por outro lado, a categoria temática “Distanciamento social e aproximação do próprio ser” apresenta narrativas sugestivas de que o distanciamento físico e o ensino remoto permitiram o retorno ao convívio com os familiares, maior tempo destinado para si e afastamento da convivência social, apontada sob ótica positiva por alguns acadêmicos. Sentimentos de alegria e outras emoções positivas (27,3%) foram achados de outra pesquisa realizada com adolescentes do ensino médio, que teve por objetivo identificar as emoções apresentadas por eles durante o distanciamento social em consequência da pandemia da COVID-19 e discutir as estratégias adotadas para manejar as emoções(18). Embora os níveis de ensino apresentassem desafios diferentes, alguns acadêmicos de graduação e pós-graduação corroboram sentimentos dos estudantes do ensino médio e reconhecem a pandemia, bem como o ensino remoto emergencial como momento oportuno para conduzir emoções e promover a saúde mental.
Os estudantes apontaram o período de distanciamento social como oportunidade para a prática de exercícios físicos. A literatura destaca(19) recomendações para que as pessoas permaneçam ativas durante a pandemia, realizando exercício aeróbico no ambiente doméstico, marcha estacionária ou subir e descer escadas. O uso de ergômetros domésticos, como bicicletas, esteiras dentre outros, constitui opção de atividades que podem ser feitas no domicílio durante o isolamento social e favorecer a manutenção e o controle emocional no decurso do período desafiador.
A convivência familiar foi evidenciada como fator positivo e/ou protetivo em tempos de pandemia, pois proporcionou proximidade e convívio aos estudantes com familiares por maiores períodos. A literatura destaca essa afirmação em estudos sobre a pandemia(20).
Cumpre destacar que as discussões sobre as mudanças no estado emocional dos estudantes de graduação e pós-graduação, em decorrência da adesão da Universidade ao ensino remoto de emergência, embasada nas medidas de redução para disseminação do vírus, precisam de mais diálogo com a literatura. Em contexto de produção ainda introdutório, muitas analogias são sustentadas por eventualidades que precisam ser discutidas na interface com outros estudos, provavelmente em curso. Como esforço exploratório, os dados levantados neste estudo podem ser pertinentes para apresentar reflexo de como os acadêmicos de graduação e pós-graduação de uma universidade pública estão vivenciando o período pandêmico, sendo caracterizado por mudanças negativas no estado emocional desses estudantes.
O estudo aprofunda o conhecimento acerca da vivência de estudantes universitários em tempos de pandemia da COVID-19 e as alterações emocionais, contribuindo para produção do saber científico sobre essa temática. É preciso considerar que os participantes arrolados no presente estudo vivenciaram um contexto marcado não somente pelo distanciamento social em tempos de emergência em saúde pública, mas também por experienciar a prática do ensino remoto de emergência. Essa medida, tomada para que as atividades acadêmicas não fossem completamente interrompidas, destoa da postura de outras instituições de ensino brasileiras e internacionais, o que faz do contexto estudado um cenário peculiar e que demanda atenção específica da instituição de ensino e profissionais de saúde, no que tange à atenção à saúde mental dos estudantes. Em especial, profissionais de enfermagem, atuantes em distintos níveis de atenção à saúde, podem vir a se deparar com estudantes inseridos nesse cenário, o que demandará destes profissionais postura acolhedora e compreensiva, bem como articulação de ações de promoção de saúde mental e prevenção de situações de crise.
Destaca-se como limitação da presente investigação a estratégia utilizada para coleta dos dados que foram analisados com abordagem qualitativa. O fato de os dados serem escritos pelo próprio participante e dentro de um instrumento formatado para coleta de dados, em maior parte, objetivos, pode ter limitado a possibilidade de expressão por parte dos participantes. Contudo, ao se confrontarem os resultados evidenciados com a literatura e sob olhar analítico marcado pela própria vivência dos pesquisadores, compreende-se que os achados permitem expressar, com suficiente capacidade de assimilação da realidade, a autopercepção do estado emocional dos estudantes, em um cenário tão peculiar.
CONCLUSÃO
Entre os estudantes universitários, o distanciamento social ocasionado pela pandemia da COVID-19 trouxe vivências marcadas por preocupação, ansiedade, angústia, abalo e instabilidade emocional e, ao mesmo tempo, os aspectos atrelados à prática de autocuidado e fortalecimento de vínculos sociais. Os resultados deste estudo podem auxiliar instituições de ensino superior na elaboração de estratégias de promoção da saúde e intervenções preventivas no sofrimento e adoecimento mental, com foco no manejo e enfrentamento de situações geradoras de estresse, como diminuição na frequência das relações sociais e vivência do ensino remoto de emergência. É importante que as ações sejam integradas ao ambiente acadêmico e consideradas as características pedagógicas e curriculares dos cursos, pois podem dificultar a busca de estudantes por suporte adequado no atual contexto. Reitera-se a necessidade do suporte psicológico como estratégia de cuidado aos alunos de graduação e pós-graduação.
CONFLITO DE INTERESSE
Os autores declararam que não há conflito de interesse.
FINANCIAMENTO
O presente trabalho foi realizado com apoio da Fundação de Apoio à Pesquisa, ao Ensino e à Cultura (FAPEC). Nº do Processo: 155/2020.
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Submissão: 17/08/2021
Aprovado: 13/06/2022
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