ORIGINAL

 

Covid-19 e as dimensões do trabalho: análise sócio-histórica dos impactos vivenciados por homens na pandemia

 

Thiago da Silva Santana1, Anderson Reis de Sousa2, André da Silva dos Santos3, Natalia Maria Freitas Coelho3, Arthur Pinto Silva3, Lorhany dos Santos Santana3, Janaína de Oliveira Castro3, Magno Conceição das Mercês3

 

1 Universidade Estadual de Feira de Santana, BA, Brasil

2 Universidade Federal da Bahia, BA, Brasil

3 Universidade do Estado da Bahia, BA, Brasil

 

RESUMO

Objetivo: Apreender os impactos vivenciados por homens residentes no Brasil na pandemia da Covid-19 em relação às dimensões do trabalho. Método: Estudo sócio-histórico, qualitativo, realizado durante a pandemia da Covid-19 com 400 adultos e idosos residentes no Brasil. Aplicou-se um formulário on-line. Os dados foram analisados com base no Discurso do Sujeito Coletivo, interpretados à luz do Materialismo Histórico Dialético. Resultados: A pandemia da Covid-19 provocou e intensificou impactos: sobrecarga provocada pelo trabalho home office; inadequações no trabalho e exposição à contaminação pelo Coronavírus; estresse e medo de ser contaminado no trabalho e de perder o emprego; dificuldade na manutenção econômica/financeira e adaptações repentinas no desempenho do trabalho. Conclusão: As dimensões do mundo do trabalho intensificaram as vulnerabilidades sociais e em saúde de homens no contexto da pandemia da Covid-19. Repercutiram em maior exposição ao SARS-CoV-2 e vivência de estressores na vida cotidiana.

 

Descritores: Covid-19; Saúde do Homem; Trabalho.

 

INTRODUÇÃO

Instalou-se uma crise sanitária/humanitária mundial com impactos devastadores em decorrência da pandemia da Covid-19, com um acumulado de sobreposição de fatores (sociais, políticos e econômicos) que têm intensificado as desigualdades sociais e em saúde(1-2). Alguns países, como o Brasil, já foram incluídos na lista da fome(2). Milhares de pessoas neste país não sabem como irão se alimentar nos próximos dias. O número de desempregados e em condições de trabalho precárias alcançou níveis elevados, o que passa a ser uma problemática de saúde global significativa e prioritária na agenda pública(3).

Desse modo, grandes são os dilemas e desafios continentais a serem enfrentados, não somente para conter a disseminação do SARS-CoV2 e a manifestação da Covid-19, mas também para diminuir os impactos sociais ocasionados pelo contexto pandêmico, que tem provocado ameaças e desequilíbrios econômicos, políticos e biossociais, afetando sobretudo as dimensões do trabalho(2). Incluem-se aqui as relações de gênero, como aquelas que afetam sobremaneira o público masculino, sendo este o mais vulnerável à Covid-19 e à desagregação do trabalho(4).

Impactos negativos sobre pessoas, comunidades e sociedades observados com o advento da pandemia da Covid-19 ainda não são mensuráveis. Problemas de ordem econômica, política, social, cultural, público-privado e legal têm atingido de forma desproporcional grupos desfavorecidos que dependem do trabalho diário para a subsistência(3), trazendo à tona pobreza e miséria. No contexto atual, é urgente uma tomada de decisão precisa por parte dos gestores e líderes públicos no sentido de classificar, conter, mensurar e gerenciar a crise – sobretudo a crise econômica, dado que o contexto de desigualdades e iniquidades sociais se sobrepõem neste cenário(2).

Em razão dessas questões, a Organização Mundial da Saúde (OMS) chama a atenção para a necessidade da realização de ações conjuntas, coerentes, responsáveis e resolutas a fim de garantir segurança e proteção, e de preservar a dignidade humana, principalmente para evitar o desemprego em massa(3) – uma realidade já vista em diversos países. Para tanto, compete ao Estado a atribuição central de proteger cidadãos e cidadãs contra as consequentes ameaças e calamidades. Falhas nessa tarefa comprometem a legitimidade das instituições públicas e privadas, e a reputação dos líderes políticos. Trata-se de uma situação problemática, especialmente em um país que já apresentava um quadro socioeconômico em franca deterioração mesmo antes da pandemia(4).

Nesse cenário, é razoável esperar que um dos efeitos deletérios mais críticos dessa nova crise seja sentido no mercado de trabalho, atingindo homens e mulheres(4). No tocante o sexo e gênero, em vários países pessoas do sexo masculino foram mais acometidas pela Covid-19. O Reino Unido registrou uma taxa de mortalidade de 255,7 óbitos por 100 mil habitantes, com maior prevalência em meio a homens negros que, consequentemente, foram os que mais sofreram com o desemprego(5). Embora o SARS-CoV2 não discrimine suas vítimas por sexo, os homens foram a maioria dos contaminados, em especial aqueles com comorbidades e predisposições a doenças respiratórias graves(6). Ainda assim, há carência de investigações que tenham analisado a relação entre as dimensões do trabalho, a pandemia e os reais impactos na saúde, o que constitui uma lacuna expressiva, que justifica a realização deste estudo.

Cumpre informar que fatores biológicos, cromossômicos, de estilo de vida e de comportamento de saúde já foram evidenciados na literatura(7). No entanto, em se tratando de Brasil, onde cerca de 56,7% das pessoas acometidas são do sexo masculino(8), é necessário estudar e estabelecer a correlação com as dimensões sócio-históricas, relacionais de gênero/masculinidade e estruturais, de modo a compreender os reais impactos da pandemia(8-10), com ênfase no âmbito das relações de trabalho – fatores já evidenciados em um estudo brasileiro, que abordou a questão da queda da renda familiar e/ou da renda per capita em comparação com o salário mínimo, considerando que cerca de 59% das pessoas ficaram sem trabalho(11). Por si só, essa constatação já suscita a urgência do investimento em investigações e ações políticas nesse campo, especialmente no âmbito da saúde pública e da produção do cuidado em enfermagem, com vistas ao estabelecimento de ações e intervenções eficazes nesse seguimento.

Este estudo foi guiado pela questão de pesquisa: que impactos a pandemia da Covid-19 tem provocado nas dimensões do trabalho para homens residentes no Brasil? Como forma de responder a este questionamento, este artigo tem o objetivo de apreender os impactos vivenciados por homens residentes no Brasil na pandemia da Covid-19 em relação às dimensões do trabalho.

Enquanto contribuições para as equipes de saúde e de Enfermagem, este estudo dará subsídios para a elaboração de políticas no âmbito da saúde coletiva, e servirá de base para a construção de planos de cuidados potencialmente ativos e efetivos, a fim de minimizar os reais impactos provocados pela pandemia nas dimensões do trabalho, o que permite avançar no conhecimento científico e na prática em enfermagem do trabalho, na saúde masculina e em eventos pandêmicos. Permitirá que profissionais de saúde implementem ações focadas em mecanismos de enfrentamento tendo em vista a elevada exposição a situações estressoras, como no caso da pandemia, com potencial para a melhoria das práticas cotidianas desses homens, sobretudo no ambiente laboral. Ainda, este estudo abordará interdisciplinarmente emoções e sentimentos dialeticamente expostos, desencadeados mediante a exposição prolongada ao estresse pandêmico para a adaptação ativa à realidade e para a preservação da autoimagem, bem como para o controle e a contenção das emoções desencadeadas pelo estresse cotidiano nas dimensões do trabalho.

 

MÉTODO

Estudo sócio-histórico, qualitativo, estruturado no paradigma do Materialismo Histórico Dialético(12-13), integrando uma macropesquisa intitulada: “Vivências de homens no contexto da pandemia do novo Coronavírus - SARS-CoV-2 (Covid-19) no Brasil: um enfoque para a saúde”.

A pesquisa foi realizada em ambiente virtual, mediante a utilização da plataforma on-line hospedada pelo Google Forms®. Foram recrutados homens adultos com idade superior a 18 anos, residentes no Brasil, em vivência da pandemia da Covid-19. Compuseram a amostra deste estudo 400 homens, selecionados inicialmente por conveniência, com o emprego da técnica de recrutamento consecutivo denominada snowbaal(14). Delineou-se uma estratégia híbrida, que culminou com o convite do público nas redes sociais digitais: Facebook®, Instagram® e WhatsApp®, e aplicativos de relacionamento: Grindr® e Scruff®, e correios eletrônicos. Foram excluídos os homens que se encontravam em trânsito em viagens internacionais. Constituímos inicialmente cinco grupos amostrais (um de cada região do Brasil), estimulados a convidar novos participantes da sua rede de social, sendo registrados posteriormente 27 grupos amostrais (um de cada estado brasileiro). A amostra final foi resultante do processo analítico, em que se considerou o critério de saturação teórica dos dados (co-ocorrência, convergência, complementariedade e densidade teórica dos dados).

Os homens foram informados acerca do projeto por meio de convites personalizados enviados através das redes sociais e por e-mail. Informações adicionais estavam presentes na seção de apresentação do instrumento de coleta de dados por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido na modalidade imagética, hospedado na plataforma que abrigou o formulário, com destaque para os riscos e benefícios. Esse documento foi disponibilizado também por e-mail e/ou registro de print. A coleta dos dados ocorreu nos meses de abril e junho de 2020, a partir do preenchimento de formulário autoaplicado, composto por questões fechadas e abertas, disponibilizado em ambiente virtual e devolvido da mesma forma.

O formulário foi validado (pré-teste) internamente por membros de um grupo de pesquisa, e externamente, em um grupo de 20 homens. Os dados da validação não foram incorporados à amostra final. Desse modo, as questões fechadas eram relacionadas às características sociodemográficas, laborais e de saúde e as questões abertas eram referentes à vivência da pandemia da Covid-19. Como forma de apreender os dados empíricos, questionou-se: como você tem vivenciado a pandemia da Covid-19? A pandemia da Covid-19 lhe trouxe alguma repercussão e/ou comprometimento? Fale-me mais sobre isso.

No final do formulário, foram disponibilizados contatos de serviços de apoio psicossocial, ofertados gratuitamente. Além disso, foi divulgada a página oficial do projeto no Instagram® – @cuidadoasaudedehomens – com conteúdos de cuidados e educacionais voltados à saúde dos homens.

Ao tomar como base as perguntas de investigação qualitativa, surgiram os primeiros achados que compõem os resultados deste estudo. Para extraí-los, a equipe de pesquisa, composta por quatro pesquisadores coletadores e quatro pesquisadores supervisores/avaliadores, utilizaram as premissas da amostragem teórica, o que permitiu elucidar convergências, divergências e complementaridades(15). Os membros da equipe possuíam expertise na abordagem e no método, e participaram de reuniões remotas e treinamento via Google Meet® sobre calibração/balizamento da coleta, processamento, codificação e análise dos dados.

Os dados obtidos foram submetidos a leitura e análise linha a linha e, posteriormente, foram organizados, sistematizados e codificados, com suporte do processamento software NVIVO12. Por fim, para a garantia do cumprimento dos critérios de qualidade e rigor na pesquisa qualitativa, foram seguidas as diretrizes do COREQ.

A análise metodológica dos dados foi sustentada no Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), que constitui um método indutivo capaz de acessar a construção do pensamento coletivo e revelar as generalidades de um fenômeno social. Desse modo, a partir da aplicação deste método, foi possível apreender Expressões Chaves (EC) e Ideias Centrais (IC) e/ou Ancoragens, que compõem os Discursos-Sínteses que sustentam a representação da coletividade sobre um problema(16). Assim, nos fragmentos é possível vislumbrar discursos e o DSC masculino em caráter teórico/reflexivo, e interpretá-los à luz do Materialismo Histórico Dialético (MHD)(12-13) em seus preceitos basilares, corpo teórico (leis do MHD): a) a dialética compreende a contradição como inerente à realidade das coisas; b) o ser é definidor da consciência, e não o contrário; c) toda matéria é dialética em sua essência, o contrário é estático, metafísico; e d) a dialética constitui o estudo da contradição na essência mesma das coisas(12-13).

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia, sob o parecer de número: CAAE: 32889420.9.0000.5531 e 4.087.611. Foram respeitados os preceitos éticos, que incluíram a adoção de critérios próprios destinados à garantia de segurança e proteção dos dados gerados via plataforma virtual, e também daqueles empregados pelos pesquisadores envolvidos no projeto: sigilo, anonimato, confidencialidade e confiabilidade.

 

RESULTADOS

O discurso coletivo de homens evidenciou a manifestação de impactos gerados sobre as dimensões do mundo do trabalho durante a pandemia da Covid-19. A seguir, os discursos-sínteses elucidam as Ideias Centrais que compõem a ancoragem do fenômeno investigado.

 

Discursos-sínteses: entre historicidade, dinamicidade e totalidade – a realidade da explicação dos contraditórios das dimensões do trabalho e os impactos vivenciados por homens na pandemia da Covid-19

A realidade vivenciada por homens residentes no Brasil reflete a presença de marcos contraditórios que se entrecruzam em relações dinâmicas e materialistas na busca por compreender o contexto pandêmico. Postulados essenciais do MHD foram localizados na discursividade masculina, a saber: historicidade, dinamicidade e totalidade, e configuraram IC, expressas nos Discursos-Síntese, a seguir.

IC 01: Das “transformações” socioeconômicas determinadas pelos meios de produção à sobrecarga provocada pelo trabalho home office:

 

[...] tenho sofrido com o aumento das demandas de trabalho desde que a quarentena foi iniciada. Agora passo mais tempo do meu dia realizando atividades laborais e eu ainda me sinto inapto a realizar o home office e a adaptação a este tipo de trabalho não está sendo tranquila, pois as condições para que o trabalho ocorra, dentro de casa, exigem ainda mais foco e disciplina, sem contar com os outros desafios, já que o agito do dia a dia passou a ser dentro do próprio ambiente doméstico, o que tornou o ritmo e as relações com o trabalho totalmente afetadas. Além disso, com mais tempo confinado, a jornada de trabalho ficou mais elevada, e as cobranças também se elevaram. Às vezes tenho me sentido sobrecarregado, exausto e estressado por não ter por perto as válvulas de escape. Mentalmente eu tenho me sentido esgotado (DSC de homens).

 

IC 02: Da ausência de autonomia na totalidade estrutural à vivência de inadequações no trabalho e exposição à contaminação pelo SARS-CoV-2:

 

[...] eu me sinto inseguro no desempenho do trabalho durante a pandemia, pois eu tenho que dividir o ambiente com vários colegas e, além disso, há muitas inadequações no meu local de trabalho, como a falta de insumos para a garantia da prevenção e da proteção dos trabalhadores, e pela dificuldade na realização de testagens para saber quem daqueles que trabalham junto comigo estão com o Coronavírus. Essa situação de insegurança tem me feito estar aflito, preocupado e  tenso no ambiente de trabalho, e isso também se deve ao fato de me sentir culpado em poder estar transmitindo o vírus para as pessoas que estão próximas, já que eu tenho estado exposto quando eu vou até o ambiente de trabalho (DSC de homens).

 

IC 03: Da centralidade da práxis humana na produção/reprodução da vida humana ao estresse e medo de contrair a doença e de perder o emprego:

 

[...] eu estou tendo que conviver com colegas de trabalho que tiveram a Covid-19, e alguns deles estiveram em estado grave. Essa situação me deixa com muito medo, e aumenta o estresse, pois agora eu tenho que estar utilizando equipamentos de proteção individual por um período prolongado, além de conviver a maior parte do tempo no trabalho com a sensação de estar me contaminando. Além disso, eu tenho medo de ficar desempregado devido à crise econômica instalada no país após a pandemia, e também por presenciar esse clima instável no meu ambiente de trabalho, e por essas razões vários malefícios foram gerados à minha saúde mental. Esse medo de perder o emprego veio associado à sensação de invalidez, o que acabou desencadeando um adoecimento mental decorrente da síndrome do pânico (DSC de homens).

 

O discurso masculino revelou a necessidade de ter que lidar com as transformações impostas pelo surgimento da Covid-19 em seus territórios, e ter que enfrentar os processos de modificações contraditórias das dinâmicas de organização social – do trabalho, elucidados abaixo.

IC 04: Da objetividade na realidade independente das formas naturais aos impactos na manutenção da ordem econômica e financeira:

 

[...] tem sido um estado de confusão interna muito grande, pois as cobranças internas em produzir para alcançar prazer e recursos financeiros tornaram-se totalmente comprometidos com a chegada da pandemia. É que esta questão envolve uma pressão muito grande em torno das responsabilidades que o homem deve assumir, como, por exemplo, manter as finanças, cuidar da família e de pessoas dependentes de mim. Esse momento tem me gerado muita inquietude e frustração, e abala o meu psicológico, ao me causar transtornos de ansiedade e preocupação com a falta de dinheiro, e eu senti de perto esse impacto, pois tive a minha situação financeira afetada, e percebi os preços nos supermercados muito mais elevados. Além disso, eu acabo ficando envolvido com o desafio de romper com a crença de que preciso ser provedor absoluto, mesmo com um cenário em que toda a economia está desestabilizada, pois como um homem, acabo me sentindo responsável pelo bem-estar de outras pessoas também. Por fim, as novas incertezas econômicas me levam a ter novas inquietações, principalmente pelo receio de que não haja uma estabilidade financeira (DSC de homens).

 

IC 05: Entre o significado do trabalho como transformação da natureza e a mediação das relações sociais às novas adaptações no desempenho do trabalho:

 

[...] eu não sei até quando irei permanecer parado no trabalho que eu realizava antes, e necessitei reinventar para me manter. Ser um trabalhador autônomo e depender do movimento das pessoas se tornou um grande problema a ser superado por mim. Tem sido muito desafiador, pois juntamente com as mudanças no trabalho, eu também necessitei me afastar dos familiares, amigos, e essa situação também fez com que eu buscasse me adaptar e desenvolver novas rotinas e novas formas de conviver e me relacionar com o ambiente doméstico, que se tornou o ambiente de trabalho, e são essas novas adaptações que têm me feito superar os momentos de apreensão, a partir da realização de atitudes com cautela (DSC de homens).

 

DISCUSSÃO

As evidências explicitaram os impactos da pandemia da Covid-19 na vida de homens residentes no Brasil no tocante às dimensões do trabalho. Demonstraram a dialética no discurso coletivo de homens em dada materialidade/concretude e historicidade do atual contexto pandêmico.

Ao tomar como base a lente de análise material e dialética, profissionais de enfermagem e saúde poderão acessar tal conhecimento teórico-político, a fim de lidar de maneira consciente com os fenômenos da despersonalização imposta pelo trabalho, que passou a tomar por completo a vida social dos homens, diante de tamanha sobrecarga. Faz-se saber que este estudo apresenta limitações, as quais estão relacionadas ao recrutamento de participantes, que, em razão da indicação consecutiva, pode ter gerado regionalização, limitação de alcance para homens de baixa renda. A realização da pesquisa no ambiente virtual limitou o aprofundamento dos dados, em comparação com as pesquisas presenciais.

A divisão social do trabalho, fenômeno responsável por estratificar e atribuir valor objetivo às atividades alterando a sua dinâmica, constitui um dos objetos de análise do MHD(12-13), presente nas transformações socioeconômicas formuladoras de condições díspares nas dimensões do trabalho, que permitem observar que essas transformações acontecem em diferentes lugares e contextos, em uma dada totalidade socioespacial. Sob este prisma, é possível reconhecer que, fora de um dado lugar, todos os recursos – inovações, populações, dinheiro – seriam meras abstrações, e é justamente esse movimento de lugares que caracteriza o espaço como um todo, e revela a totalidade singular dos sujeitos (dos homens) na vida social(12-13), e, portanto, contribui para a compreensão acerca da nova realidade sócio-histórica vivenciada pelos homens com a chegada da pandemia da Covid-19 no Brasil, como foi ilustrado em nossos achados.

Essa nova realidade encontra-se em consonância com o conceito de divisão social do trabalho, concebido como um sistema complexo de integração de diversos trabalhos úteis, executados separadamente e marcados por especificidades e diferenças qualitativas(17). No atual contexto, carece de melhor observação quanto a sua historicidade e sua dinamicidade, uma vez que o fenômeno vivenciado pelos homens deve ser situado no tempo e no espaço, que varia no ritmo/período – o modo como os elementos se distribuem e se localizam(12-13).

Em perspectiva material e dialética, falar sobre um “lugar do trabalho” e o modo como os sujeitos se articulam em torno dele é um desafio que necessita ser superado. Essa constatação se verifica especialmente em contextos de globalização e de seu meio técnico-científico-informacional de funcionalidade(12-13), quando se observa que os homens investigados em nosso estudo expuseram os efeitos deletérios das modificações nas condições de trabalho no mundo globalizado. A Tecnologia de Informação e as telecomunicações têm possibilitado uma série de conexões que, de modo fácil e rápido, permite a execução de diversas atividades e interações a distância, em alta no atual contexto pandêmico(17).

Esse contexto massificou o fenômeno da uberização do trabalho arraigado na vulnerabilidade, na intensificação, nas perdas de identidades individual e coletiva, na insegurança e na fragilização da organização dos trabalhadores, que impôs aos homens o trabalho modificado, remoto, mediado por Tecnologia de Informação (home office), com respaldo legal denominado de “teletrabalho”, privilegiando, em certa medida, alguns que puderam gozar dessa possibilidade, em comparação com uma grande maioria de pessoas que mantiveram ou perderam seus vínculos, e precisaram se expor em contextos insalubres de trabalho.

Cumpre destacar que, mesmo antes da pandemia, as relações com estas ferramentas já se mostravam tênues no que diz respeito aos limites do público-privado, da liberdade e da exposição, do controle e do desequilíbrio(17), apresentados nos resultados deste estudo, quando denunciado o contraditório: ter que trabalhar, estando exposto ao risco de contrair a Covid-19. E, portanto, geradoras de problemas na vida cotidiana, como sobrecarga de trabalho(18) e alteração na rotina de milhões de trabalhadores em muitos países – como o Brasil, por exemplo – situações já mencionadas na literatura internacional(18-19).

Frente ao prolongamento da pandemia, observam-se repercussões prejudiciais no trabalho, especialmente dos homens em situação de vulnerabilidade social, em face de inacessibilidade ao trabalho formal, expondo-os muitas vezes a condições análogas à escravidão. Repercussões outras, como elevação do desemprego, aumento da exploração do trabalho, somados a outros fatores problemáticos, como a perda da capacidade para o trabalho, afastamento do trabalho em razão das sequelas pós-Covid-19, absenteísmo, presenteísmo e outros contextos de adoecimento relacionado ao trabalho, provocam efeitos sociais e econômicos catastróficos(10). Chama-se a atenção para este cataclisma complexo que necessita ser controlado, como explicitado em nossos resultados.

No tocante à ausência de autonomia dos homens em dada totalidade estrutural, a dimensão do trabalho mostrou influência no comprometimento da qualidade de vida, da saúde e das interações socioafetivas, pois, no cotidiano de inseguranças e carências provocadas por inadequações no trabalho, muitos homens não tiveram oportunidade de acesso igualitário às medidas de proteção/enfrentamento da Covid-19, revelando um cenário altamente desigual.

A emergente necessidade de cumprir tarefas, exigências e obrigações trabalhistas, especialmente para aqueles que atuam no modelo de cumprimento de metas, com prazos cada vez mais curtos exigindo maior eficiência, tem gerado sofrimento psíquico e prejuízos na satisfação com a vida, intensificados na pandemia(18-19). Urge planejar e executar ações que promovam o bem-estar no trabalho, o estímulo para o fortalecimento socioafetivo e das redes de apoio, a promoção da seguridade social e a diminuição das iniquidades em saúde, em consideração ao advento de indicadores sociais e em saúde desfavoráveis a vida em relação ao trabalho, ainda fincado nas relações entre o proletariado e o universo patronal, detentor dos meios de produção e da venda da força de trabalho, denunciados pelo arcabouço teórico do MHD(12-13).

A partir do olhar para a centralidade da práxis humana materializada na produção e na reprodução da vida dos homens, vale ressaltar o quão desagregador tem sido a pandemia da Covid-19 para a saúde de homens, e como os efeitos das dimensões do trabalho têm precipitado e intensificado situações de estresse, e deflagrado sentimentos e emoções negativas, como o medo da Covid-19. Igualmente, tal cenário se relaciona com outros contextos, ou seja, fora da atividade laboral, como os modos de organização socioespacial, as infraestruturas urbanas e rurais, e as desigualdades no acesso a direitos básicos. Para muitos trabalhadores, essa organização implica escolher entre proteção e renda(18), e reflete uma ordem social que demarca quem terá os riscos potencializados e aponta para desigualdades que, se não forem enfrentadas, podem se tornar perenes.

O medo da contaminação, em especial no ambiente de trabalho, associado com as tensões geradas pelo afastamento das atividades laborais, provocadas pelo desemprego, e com o novo modelo de trabalho em home office, são estressores que, no cenário de pandemia, têm abalado o psicológico desses trabalhadores(20). Para minimizar o impacto do estresse, devem ser implementadas medidas como oferta de apoio psicológico, investimento na comunicação contínua e no trabalho em equipe, ações estratégicas para alívio do estresse físico e mental, atendimento especializado aos trabalhadores mais suscetíveis ao adoecimento mental. Ressalta-se a vivência de homens em situação de transtornos mentais comuns e vulnerabilidades ao suicídio na pandemia, o que justifica a necessidade dessa implementação(9). Profissionais de enfermagem e saúde mostram-se essenciais e indispensáveis na gestão de cuidados para minimizar os impactos na saúde masculina, estabelecendo intervenções de acurácia elevada, transculturalmente adaptada e socialmente referenciada pelas comunidades, haja vista o protagonismo da enfermagem na atenção em saúde.

Em relação à objetividade na realidade independente das formas naturais aos impactos na manutenção econômica e financeira vivenciada pelos homens, é preciso demarcar o cenário controverso da pandemia, que afeta de maneira diferente os trabalhadores, especialmente aqueles que estão na atividade ocupacional por falta de opção, e que auxiliam na possibilidade de manutenção do isolamento social de outrem, como é o caso dos entregadores de serviços de delivery. Destarte, muitos ainda convivem com o medo da contaminação e da possibilidade de transmitir o vírus para seus familiares(10). De igual modo, os custos a serem pagos na forma de impactos tendem a crescer em contextos de degradação de situações de trabalho associados à rápida evolução da doença(20).

Ao analisar essa nova realidade histórica, é notória a relação de gênero presente, quando, por exemplo, se identifica como homens e mulheres ocupam papéis na vida familiar relacionados a referenciais de gênero aprendidos e incorporados ao longo da história. Padrões socialmente legitimados evoluem a partir das transformações e das conquistas impulsionadas pelo movimento feminista no mundo do trabalho, na maneira de viver e de construir as identidades de gênero, como visto na construção social das masculinidades, da fissura das masculinidades hegemônicas, e da formação e manutenção de um sistema simbólico que norteia e sustenta a vida dos homens e a das mulheres(9-10).

Importa enfatizar que os achados deste estudo revelam a preocupação masculina com o trabalho – um atributo considerado máximo das masculinidades em certas sociedades, como é a sociedade brasileira. Dessa maneira, ao vivenciar os impactos provocados pela pandemia da Covid-19 sobre a dimensão do lugar do trabalho, coloca-se em cheque a posição dos homens como provedores da família, de autonomia, liberdade e autossuficiência financeira. E também na dimensão do ambiente público, dos espaços de controle e de poder dominados historicamente pelo masculino, o que pode estar revertendo em desconfortos e arranhaduras nas masculinidades e, por consequência, gerando sofrimento para esses homens(9-10).  

No que tange a relação entre o significado do trabalho como transformação da natureza e mediação das relações sociais às novas adaptações no desempenho do trabalho por parte dos homens residentes no Brasil, a contrariedade tornou-se um dilema a ser também superado, na medida em que, por um lado, os homens lidam com a instabilidade financeira, o receio da perda do trabalho, as descaracterizações do lugar do trabalho, a realocação de categorias – como por exemplo, entre aqueles que passaram a receber o auxílio emergencial do Governo; e por outro lado, ainda precisam enfrentar o desafio de manter a figura patriarcal, hegemônica do homem-trabalho e/ou do homem-trabalhador(6,9-10).

Foi possível desvelar os reais impactos sobre as dimensões do trabalho durante a pandemia da Covid-19. O discurso elucidou transformações socioeconômicas provocadas pelas alterações no cenário do trabalho. Se, por um lado, a sobrecarga provocada pelo home office gerou auto cobrança, impôs novas adaptações em consequência das alterações na rotina, exigindo novos comportamentos, por outro lado, as precárias condições de trabalho trouxeram insegurança, aflição, preocupação, tensão, medo, culpa e tantos outros sentimentos e emoções, decorrentes da exposição à contaminação pelo vírus, somadas ao fato de perder o emprego, uma vez que tal condição teria impacto sobre a manutenção da situação econômica e financeira. Importa destacar que as novas adaptações impostas pela pandemia fizeram com que os homens se reinventassem para se manter e prover o sustento pessoal e/ou familiar, bem como para minimizar e controlar os impactos provocados nas dimensões do trabalho.

 

CONCLUSÃO

O discurso do sujeito coletivo de homens residentes no Brasil evidenciou a materialidade sócio-histórica do surgimento de impactos negativos, degradantes e comprometedores das dimensões do trabalho provocados e intensificados pela pandemia da Covid-19 neste país. Os impactos conduziram os homens a denunciar dialeticamente a vivência da sobrecarga física e mental advindas do trabalho/teletrabalho em home office, as condições/inadequações existentes no ambiente de trabalho formal, para aqueles que necessitam manter as atividades junto aos postos de trabalho, ocasionando-lhes exposição ao SARS-CoV-2, a elevação do estresse, o medo de ser contaminado e de perder o emprego, e a degradação econômica e financeira e as novas adaptações emergentes para a manutenção no desempenho do trabalho. Sendo assim, este estudo aporta contribuições significativas na ciência e prática Enfermagem e Saúde, ao evidenciar novos achados, que poderão subsidiar a tomada de decisão clínico-assistencial e gerencial em saúde de homens em contextos de crise sanitária e no mundo do trabalho.

 

CONFLITO DE INTERESSE

Os autores declaram não haver conflito de interesse.

 

FINANCIAMENTO

Sem financiamento.

 

REFERÊNCIAS

 

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Submissão: 17/08/2021

Aprovado: 21/01/2022

 

CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA

Concepção do projeto: Santana TS

Obtenção de dados: Santana TS, Sousa AR

Análise e interpretação dos dados: Santana TS, Sousa AR, Marcês MC

Redação textual e/ou revisão crítica do conteúdo intelectual: Santana TS, Sousa AR, Santos AS, Coelho NMF, Silva AP, Santana LS, Castro JO, Marcês MC

Aprovação final do texto a ser publicada: Santana TS, Sousa AR, Santos AS, Coelho NMF, Silva AP, Santana LS, Castro JO, Marcês MC

Responsabilidade pelo texto na garantia da exatidão e integridade de qualquer parte da obra: Santana TS, Sousa AR, Marcês MC

 

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