Fróes de Oliveira Sanfelice1, Junia Aparecida Laia da Mata2, Nayara Girardi Baraldi3
1 Universidade Estadual de Campinas, SP, Brasil
2 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS, Brasil
3 Universidade de São Paulo, SP, Brasil
Devido à pandemia causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), vivenciamos um momento histórico de profundas mudanças em toda a sociedade. Dentre elas, destacamos aquelas relacionadas à saúde reprodutiva.
Contextos de crises sanitárias, como as ocasionadas pelo vírus H1N1 e pelo Zica vírus já impactaram a saúde materno-infantil anteriormente(1-2). Naqueles associados ao SARS-CoV e MERS-CoV (coronavírus associado à Middle East Respiratory Syndrome), houve importante aumento de doenças maternas graves, abortamento espontâneo, parto prematuro e morte materna(2-3).
A ausência de medidas resolutivas para assegurar o acesso aos serviços e insumos de saúde durante a pandemia pode ocasionar danos às mulheres como: fragilidades no planejamento reprodutivo, aumento de gestações não planejadas e baixa qualidade da atenção pré-natal, com consequências no trabalho de parto, nascimento e puerpério. Dados recentes mostram que a taxa de mortalidade por Covid-19 entre gestantes e puérperas no Brasil é de 7,2%, o que representa um percentual 2,5 maior que a taxa nacional (2,8%). Isso coloca o país na posição de recordista, com o maior número de mortes maternas causadas pela Covid-19(4).
Lamentavelmente, o Brasil país tem se destacado mundialmente pelas medidas desastrosas implementadas durante a pandemia como a tentativa em privatizar os cuidados primários à saúde, a ausência de um plano efetivo de resposta nacional à Covid-19, falhas logísticas na campanha de vacinação e intenso negacionismo científico(5), o que agrava ainda mais a atual crise sanitária e reverbera sobre toda sociedade, em especial gestantes e puérperas.
Além disso, durante a pandemia, gestantes podem se sentir ainda mais vulneráveis por ter que frequentar ambientes potencialmente contaminados, como os hospitais. Somado a este aspecto, o medo da proibição da presença do acompanhante durante o trabalho de parto e nascimento, ação contrária à recomendação do Ministério da Saúde(6), mas praticada em alguns serviços, também parece causar insatisfação com a assistência no ambiente hospitalar.
É nesta conjuntura que o parto domiciliar planejado (PDP) passou a representar uma possibilidade para as mulheres/famílias brasileiras. Tal situação foi percebida a partir de matérias publicizadas em veículos midiáticos e pode ser o objeto de estudos futuros sobre o PDP na pandemia.
No contexto internacional, estudos apontam diferentes ações relacionadas ao PDP entre os países. No Reino Unido, por exemplo, ocorreu um aumento expressivo e generalizado na procura pelo PDP. No entanto, o serviço que oferta esta modalidade de assistência de forma pública começou, inicialmente, a suspender os atendimentos em resposta à Covid-19. Algumas regiões do país justificaram a redução ou restrição dos atendimentos conduzidos por midwives devido à falta de pessoal, redirecionamento de recursos para o combate ao novo coronavírus, acesso limitado à transferência por meio de ambulâncias e, também, para desencorajar as mulheres que possam estar contaminadas com o vírus a terem seus partos no domicílio(7-8).
Essa recomendação se baseia na diretriz do Royal College of Obstetricians and Gynaecologists (RCOG), que aconselha fortemente que as mulheres com suspeita de Covid-19 deem à luz no hospital, levando em consideração todos os riscos envolvidos para a parturiente e seu recém-nascido(9).
De forma contrária, outras regiões do Reino Unido optaram por aumentar o esforço em manter tais atendimentos na tentativa de reduzir as hospitalizações desnecessárias e a sobrecarga no ambiente hospitalar. Para isso, passaram a desenvolver novos protocolos de transferência usando, por exemplo, carros particulares em situações em que a transferência não é clinicamente urgente(7-8).
Na Inglaterra, o Serviço Nacional de Saúde (National Health Service – NHS) também observou mais mulheres solicitando o parto em casa como alternativa à admissão hospitalar e, em seu relatório, divulgou uma orientação apoiando a escolha contínua do local de nascimento, reiterando que partos domiciliares são mais seguros para mulheres com baixo risco de complicações e diminuem a pressão nos serviços de saúde hospitalares, no contexto da pandemia(10).
Vale destacar que fora do cenário pandêmico existe uma vasta literatura que sustenta a segurança do parto domiciliar planejado, apresentando um bom desfecho materno e neonatal(11-12).
Nos Estados Unidos da América (EUA), a pandemia chamou a atenção para um aumento potencial no número de gestantes interessadas em realizar o parto domiciliar, inclusive aquelas que podem estar em maior risco de parto em casa não intencional. Também foi observado um incremento de interesse pelo PDP mesmo em mulheres consideradas como de alto risco gestacional, o que, de fato, aumenta as chances de desfecho negativo para a mãe e o recém-nascido(13).
A Associação Holandesa de Obstetrícia(14) publicou orientações que enfatizam o PDP como seguro para diminuir o risco de infecção, melhorar os modelos de continuidade dos cuidados em obstetrícia e reduzir o número de cuidadores em contato com as mulheres e bebês.
Na Itália, França e Espanha, o atendimento ao parto domiciliar conduzido por midwives é menos comum e, geralmente, fornecido de forma privada. Logo, a maioria das mulheres continuou a dar à luz em hospitais(15).
A Confederação Internacional de Obstetrizes (International Confederation of Midwives - ICM)(16) publicou um documento oficial declarando que nos países onde os sistemas de saúde podem apoiar partos extra hospitalares ou em centros de parto, o PDP pode ser mais seguro do que em hospitais, onde há muitos indivíduos (mesmo fora da ala de maternidade) portadores de Covid-19. Neste documento, a ICM reafirma a necessidade de que essas mulheres sejam saudáveis e recebam o atendimento de midwives qualificadas, que possuam os equipamentos/insumos necessários para situações de emergências(16).
No Brasil, diversos veículos da imprensa noticiaram o aumento da procura pelo PDP durante a pandemia, reiterando o mesmo movimento ocorrido internacionalmente. No entanto, não foram propostas medidas ou estratégias governamentais que pudessem atender a essa população. Um estudo apontou que profissionais atuantes na assistência ao PDP consideraram o contexto pandêmico como bastante desafiador, devido a diversas questões como: frequentes alterações/adaptações na condução da assistência, frustrações advindas dessas alterações, medo da contaminação, necessidade de distanciamento durante a assistência, mudança no modelo de atendimento pré-natal, entre outras. O estudo também reforçou a necessidade de protocolos oficiais para nortear e respaldar a atuação das (os) profissionais neste contexto(17).
Salientamos que fora da pandemia de Covid-19, o PDP também não recebeu iniciativas governamentais que o apoie ou o inclua no rol de procedimentos do Sistema Único de Saúde e das operadoras de saúde. Assim como na Itália, França e Espanha, ele é oferecido no Brasil de forma privada.
Defendemos que a pandemia representa uma oportunidade para inclusão dessa modalidade de atendimento ao parto nas discussões sobre assistência ao processo parturitivo, uma vez que um sistema de saúde alicerçado no princípio doutrinário da equidade precisa abranger as mulheres que desejam e são elegíveis para o PDP.
A escolha pelo local de parto deve ser sustentada pelas evidências disponíveis na literatura científica, as quais precisam ser do entendimento da mulher/família. Isto inclui benefícios, riscos associados, critérios de elegibilidade, processo de trabalho das (os) profissionais, dentre outros aspectos que devem ser debatidos previamente à tomada de decisão. Assim, optar pelo PDP no contexto da pandemia, carece ainda mais de aprofundamento e entendimento sobre o tema.
Por fim, consideramos que a resposta do sistema de saúde a esta pandemia requer a reflexão sobre novas possibilidades de cuidado às parturientes. A situação sanitária mundial nos mobiliza a olhar para a vida com outros olhos, principalmente para o início dela. A pandemia nos trouxe mais uma oportunidade de reflexão sobre o local de parto/nascimento, que não deveria ser ignorada, pois a invisibilidade desta pauta já reflete no cenário obstétrico atual e, certamente, repercutirá no período pós-pandêmico.
REFERÊNCIAS
1. Rasmussen SA, Jamieson DJ. Teratogen update: zika virus and pregnancy. Birth Defects Res. 2020;112(15):1139-49. http://dx.doi.org/10.1002/bdr2.1781. PMid:32830420.
2. Al-Husban N, Obeidat N, Al-Kuran O, Al Oweidat K, Bakri F. H1N1 infection in pregnancy: a retrospective study of feto-maternal outcome and impact of the timing of antiviral therapy. Mediterr J Hematol Infect Dis. 2019;11(1):e2019020. http://dx.doi.org/10.4084/mjhid.2019.020. PMid:30858958.
3. Trocado V, Silvestre-Machado J, Azevedo L, Miranda A, Nogueira-Silva C. Pregnancy and COVID-19: a systematic review of maternal, obstetric and neonatal outcomes. J Matern Neonatal Med. 2022;35(12):2362-74. http://dx.doi.org/10.1080/14767058.2020.1781809. PMid:32635775.
4. Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Boletim Observatório Covid-19 [Internet]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2021 [citado 2021 dez 3]. Disponível em: https://agencia.fiocruz.br/boletim-destaca-marco-de-500-mil-mortes-por-covid-19-no-brasil
5. Dall’Alba R, Rocha CF, Silveira RP, Dresch LSC, Vieira LA, Germanò MA. COVID-19 in Brazil: far beyond biopolitics. Lancet. 2021;397(10274):579-80. http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(21)00202-6. PMid:33581818.
6. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Nota Técnica Nº 9/2020-COSMU/ CGCIVI/DAPES/SAPS/MS. Recomendações para o trabalho de parto, parto e puerpério durante a pandemia da COVID-19 [Internet]. 2020 [citado 2021 dez 14]. Disponível em: http://www.saude.sp.gov.br/resources/ccd/homepage/covid19/mortalidade-materna/sei_ms_-_0014382931_-_nota_tecnica_n_09.pdf
7. Nelson A, Romanis EC. Homeirthing and Free-Birthing in the era of COVID-19 [Internet]. BMJ; 2020 [citado 2021 jun 20]. Disponível em: https://blogs.bmj.com/bmjsrh/2020/04/02/home-birth-covid-19/#_ftn1
8. Romanis EC, Nelson A. Homebirthing in the United Kingdom during COVID-19. Med Law Int. 2020;20(3):183-200. http://dx.doi.org/10.1177/0968533220955224.
9. Royal College of Obstetricians and Gynaecologists. Coronavirus (COVID-19) infection in pregnancy: information for healthcare professionals [Internet]. London: RCOG; 2021 [citado 2021 jun 17]. Disponível em: https://www.rcog.org.uk/globalassets/documents/guidelines/2021-02-19-coronavirus-covid-19-infection-in-pregnancy-v13.pdf
10. National Health Service (NHS). Clinical guide for the temporary reorganisation of intrapartum maternity care during the coronavirus pandemic [Internet]. Inglaterra: NHS; 2020 [citado 2021 jun 20]. Disponível em: https://madeinheene.hee.nhs.uk/Portals/0/Clinical%20guide%20for%20the%20temporary%20reorganisation%20of%
20intrapartum%20maternity%20care.pdf
11. Reitsma A, Simioni J, Brunton G, Kaufman K, Hutton EK. Maternal outcomes and birth interventions among women who begin labour intending to give birth at home compared to women of low obstetrical risk who intend to give birth in hospital: a systematic review and meta-analyses. E Clinical Medicine. 2020;21:100319. http://dx.doi.org/10.1016/j.eclinm.2020.100319. PMid:32280941.
12. Scarf VL, Rossiter C, Vedam S, Dahlen HG, Ellwood D, Forster D, et al. Maternal and perinatal outcomes by planned place of birth among women with low-risk pregnancies in high-income countries: a systematic review and meta-analysis. Midwifery. 2018;62:240-55. http://dx.doi.org/10.1016/j.midw.2018.03.024. PMid:29727829.
13. Premkumar A, Cassimatis I, Berhie SH, Jao J, Cohn SE, Sutton SH, et al. Home birth in the era of COVID-19: counseling and preparation for pregnant persons living with HIV. Am J Perinatol. 2020;37(10):1038-43. http://dx.doi.org/10.1055/s-0040-1712513. PMid:32498092.
14. The Royal Dutch Organization of Midwives. Coronavirus [Internet]. KNOV; 2020 [citado 2021 jul 20]. Disponível em: https://www.knov.nl/vakkennis-en-wetenschap/tekstpagina/788-1/coronavirus/hoofdstuk/1357/coronavirus/
15. Coxon K, Turienzo CF, Kweekel L, Goodarzi B, Brigante L, Simon A, et al. The impact of the coronavirus (COVID-19) pandemic on maternity care in Europe. Midwifery. 2020;88:102779. http://dx.doi.org/10.1016/j.midw.2020.102779. PMid:32600862.
16. International Confederation of Midwives (ICM). Women’s rights in childbirth must be upheld during the coronavirus pandemic [Internet]. Países Baixos: ICM; 2020 [citado 2021 fev 28]. Disponível em: https://www.internationalmidwives.org/icm-news/women%E2%80%99s-rights-in-childbirth-must-be-upheld-during-the-coronavirus-pandemic.html
17. Webler N, Almeida LCG, Carneiro JB, Campos LM, Glaeser TA, Santos MC, et al. Planned home birth assistance: challenges during the COVID-19 pandemic. Rev Bras Enferm. 2021;75(Supl. 1):e20210083. http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0083. PMid:34706030.
Submissão: 08/02/2021
Aprovado: 01/10/2022
CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA |
Concepção do projeto: Sanfelice CFO, Mata JAL, Baraldi NG |
Redação textual e/ou revisão crítica do conteúdo intelectual: Sanfelice CFO, Mata JAL, Baraldi NG |
Aprovação final do texto a ser publicada: Sanfelice CFO, Mata JAL, Baraldi NG |
Responsabilidade pelo texto na garantia da exatidão e integridade de qualquer parte da obra: Sanfelice CFO |