ORIGINAL
Implantação do prontuário eletrônico à luz da Teoria da Difusão da Inovação: estudo de caso
Daniela Sousa Gomes1, Regina Consolação dos Santos2, Tarcísio Laerte Gontijo1, Valéria Conceição de Oliveira1, Eliete Albano Azevedo Guimarães1, Ricardo Bezerra Cavalcante2
1 Universidade Federal de São João Del Rei, MG, Brasil
2 Universidade Federal de Juiz de Fora, MG, Brasil
RESUMO
Objetivo: analisar a difusão do Prontuário Eletrônico do Cidadão em equipes de saúde da família de um município da Região Oeste de Minas Gerais. Método: estudo de caso, abordagem qualitativa, fundamentado na Teoria da Difusão da Inovação. Realizamos 17 entrevistas estruturadas com profissionais e observações do cotidiano de trabalho de 08 equipes de saúde da família envolvidas na utilização do prontuário eletrônico do cidadão. Os dados foram analisados por meio da Análise de Conteúdo modalidade Temático-Categorial. Resultados: os participantes reconheceram o prontuário eletrônico do cidadão como mais vantajoso do que a tecnologia anterior: compatível com suas necessidades, não é uma tecnologia complexa. Apesar do pouco tempo de experimentação, foram reconhecidos os resultados e as contribuições da tecnologia. Conclusão: o prontuário eletrônico do cidadão, em seu processo de difusão, tem-se conformado como uma inovação potencialmente transformadora do cotidiano de trabalho, favorecendo a aceitação. Entretanto, há fragilidades a serem superadas.
Descritores: Registros Eletrônicos de Saúde; Difusão de Inovações; Estratégia Saúde da Família.
INTRODUÇÃO
No Brasil, a Atenção Primária à Saúde (APS) vem passando por um processo de informatização denominado estratégia e-SUS Atenção Básica (e-SUS AB), que propõe reestruturar as informações e os Sistemas de Informação em Saúde (SIS), buscando um Sistema Único de Saúde (SUS) eletrônico. São esperadas a individualização dos dados dos usuários, a integração entre os SIS nacionais, a eliminação do retrabalho de registro e a otimização do processo de trabalho(1).
Nesta estratégia nacional, uma das tecnologias em implantação é o Prontuário Eletrônico do Cidadão (PEC), definido como um sistema de software, por meio do qual os profissionais da saúde podem desenvolver a gestão do cuidado subsidiando decisões assertivas. Espera-se ainda que o PEC promova suporte ao planejamento e à programação das ações locais, assim como organização de agendas e do fluxo de atendimento aos usuários(1).
Neste sentido, as experiências internacionais de implantação de prontuários eletrônicos na APS têm confirmado as expectativas depositadas sobre o PEC em implantação no Brasil. Alguns estudos constataram que o prontuário eletrônico agiliza o atendimento aos pacientes, ameniza erros de registros de informações e reduz a carga de trabalho da equipe administrativa. As informações são mais organizadas, podendo ser lidas e compartilhadas mais facilmente, otimizando assim o acompanhamento dos pacientes(2,4). Além disso, o PEC auxilia na prescrição de medicamentos, e podem amenizar os riscos à segurança de pacientes, prevenindo eventos adversos(3,4). As percepções dos profissionais sobre a tecnologia, as deficiências no acesso à internet (conectividade) e a falta de habilidades das pessoas com tecnologias influenciam suas funcionalidades(5).
No contexto da APS brasileira, o PEC representa uma inovação tecnológica com potencial de promover mudanças no cotidiano de trabalho e no comportamento não só dos profissionais da saúde, mas também dos pacientes assistidos. A inovação pode ser entendida como uma ideia/um processo/um objeto ou uma tecnologia percebida como nova ou desconhecida pelos indivíduos(6). Assim sendo, o sucesso do PEC como uma inovação depende de sua difusão no cotidiano de trabalho da APS, assim como da aceitação dos futuros adotantes e de suas motivações.
Uma inovação possui “atributos” que podem influenciar sua difusão, potencializando a aceitação ou a rejeição em meio aos adotantes. Atributos são características exclusivas da própria inovação: vantagem relativa, compatibilidade, complexidade, experimentação e possibilidade de ser observada(6). Esses atributos têm sido utilizados para elucidar os fatores que determinam a aceitação ou o fracasso de inovações em experiências de incorporação de prontuários eletrônicos(7,9).
Desta forma, diante de uma inovação que se destina a apoiar o processo de informatização da APS em um país continental como o Brasil, faz-se necessário entender de que maneira sua difusão vem acontecendo, culminando em sua aceitação ou rejeição. A realização de estudos que discorram sobre a difusão do PEC é imprescindível para elucidar situações que possam estar prejudicando as equipes de saúde no processo de aceitação desta tecnologia, comprometendo os potenciais benefícios de sua utilização. Nesse sentido, esta pesquisa é norteada pelo seguinte questionamento: “Como tem sido a difusão do PEC em Equipes de Saúde da Família (ESFs)?” Neste artigo, buscamos analisar a difusão do PEC em equipes de saúde da família de um município da Região Oeste de Minas Gerais.
MÉTODO
Estudo de caso de abordagem qualitativa, baseado na Teoria da Difusão da Inovação (TDI)(6). Utilizamos os “atributos” de uma inovação que potencializam sua aceitação ou rejeição no processo de difusão (Figura 1).
Definições |
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Vantagem relativa |
Percepção de que o a inovação é vantajosa em relação às práticas anteriores. |
Compatibilidade |
Percepção de que a inovação é compatível com valores, crenças e necessidades individuais ou de determinado grupo. |
Complexidade |
Percepção de que a inovação é difícil de entender e implementar. |
Experimentação |
Uma inovação pode ser experimentada pelos futuros adotantes. |
Possibilidade de observação |
Visibilidade dos resultados de uma inovação a partir de sua implementação. |
Figura 1 – Atributos e suas definições a partir da Teoria da Difusão da Inovação. Divinópolis, MG, Brasil, 2019
Fonte: Elaborado pelos autores, 2019.
Definiu-se como cenário da pesquisa as ESFs de um município localizado na Região Oeste de Minas Gerais, no Brasil. A escolha do município deu-se de maneira intencional, uma vez que o processo de implantação e utilização do PEC encontra-se em fase inicial. Nesse município, 18 equipes de saúde da família cobrem 59% da população. Para a seleção das ESFs, definimos como critérios de inclusão: equipes que estivessem em fase inicial do processo de implantação do PEC; e equipes cujos profissionais estivessem utilizando o PEC no cotidiano de trabalho. A análise de uma inovação em fase inicial de implantação favorece a compreensão do seu processo de difusão entre os futuros adotantes de um sistema social(6).
Após a definição desses critérios, uma das 18 ESFs selecionadas foi excluída por não estar utilizando o PEC. Posteriormente, realizamos um sorteio aleatório para a definição da sequência das 17 ESFs elegíveis, nas quais as coletas de dados seriam realizadas. Para as 17 ESFs selecionadas para constituir o quadro de participantes do estudo foi definido como critérios de inclusão: profissionais que utilizavam o PEC, que estavam presentes na Unidade Básica de Saúde (UBS) no momento da coleta dos dados, e que aceitaram participar do estudo. Já os critérios de exclusão foram: profissionais que estavam em férias, em licença, que não estavam presentes na unidade no momento da coleta de dados, além daqueles que não utilizavam o PEC. Além disso, utilizou-se a técnica de saturação dos dados para fechamento da amostra de participantes(11). Desta forma, a saturação ocorreu pelo número de profissionais na décima sétima entrevista. Os 17 participantes foram codificados de acordo com sua categoria profissional e sua respectiva numeração, seguido da codificação da ESF em que atuavam. O grupo de 17 participantes foi composto por quatro médicos, seis enfermeiros, três técnicos de enfermagem e quatro dentistas.
A fim de preservar o anonimato dos participantes, foi atribuída a seguinte sistemática para codificação: a categoria profissional e sua respectiva numeração, seguida da codificação da equipe de saúde da família da qual participavam. A coleta de dados foi realizada de novembro de 2018 a março de 2019. Realizamos entrevistas estruturadas e observação direta não participante. Ambas as fontes de evidências foram construídas a partir dos “atributos” da inovação, conforme definido pela Teoria da Difusão e Inovação (TDI) (Figura 2).
Questões para entrevista/Itens de observação |
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Vantagem relativa |
Questão: Fale-me sobre as vantagens percebidas com a adoção do PEC. Observação: Mudanças percebidas pelo pesquisador no trabalho a partir da utilização do PEC. |
Compatibilidade |
Questão: Fale-me sobre a adequação do PEC às suas demandas de trabalho. Observação: Compatibilidade do PEC em relação às necessidades dos profissionais e do serviço. |
Complexidade |
Questão: Você teve algum tipo de dificuldade para entender ou utilizar o PEC? Observação: Dificuldades observadas na utilização do PEC. Expressões ou diálogos que remetem à presença ou à ausência de dúvidas em relação à inovação. |
Experimentação |
Questão: Quando o PEC foi adotado na unidade, houve um período de teste? Nesse período houve mudanças, adaptações ou modificações? |
Possibilidade de observação |
Questão: Em sua opinião, o que o PEC trouxe para o seu cotidiano de trabalho como resultados? Observação: Influências observáveis do uso do PEC sobre o cotidiano de trabalho dos profissionais. |
Figura 2 – Questões do roteiro de entrevistas e itens de observação segundo os Atributos da Inovação. Divinópolis, MG, Brasil, 2019
Fonte: Elaborado pelos autores, 2019.
Os dados foram coletados após os participantes terem recebido o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A coleta foi realizada no período diurno, no local de trabalho dos participantes, e foi previamente agendada. As entrevistas foram realizadas em uma sala reservada, estando presentes apenas o pesquisador e o participante, e foram gravadas em áudio, com autorização dos entrevistados. Os profissionais foram observados em três dias típicos de uma semana de trabalho em cada ESF, no momento em que estavam utilizando o PEC. Em cinco meses de coleta, foram realizadas 224 horas de observações. As observações foram registradas em um diário de campo e geraram Notas de Observação (NO).
Os dados coletados foram submetidos a Análise de Conteúdo, na modalidade Temático Categoria(12). Na primeira fase – a pré-análise – teve início uma leitura “flutuante”, ou seja, o primeiro contato com as entrevistas e observações submetidas a análise. Posteriormente, realizou-se a preparação do material. Na segunda fase – ou fase de exploração do material – as unidades de registro foram codificadas, gerando os núcleos de sentido (interpretações do pesquisador à luz do referencial teórico). Ainda nesta segunda fase, os núcleos de sentido foram alocados em categorias pré-definidas a partir dos Atributos da Inovação estabelecidos na TDI: Vantagem Relativa; Compatibilidade; Complexidade; Experimentação; Possibilidade de observação. A categorização prévia também é uma possibilidade na Análise de Conteúdo(12).
Na terceira fase do processo de análise do conteúdo – tratamento dos resultados –, os resultados brutos foram interpretados de forma a torná-los significativos e válidos, respeitando a inferência das entrevistas e das observações, assim como a interpretação de conceitos e proposições. O estudo obedeceu à Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São João Del Rei, sob o parecer No. 3.297.521.
RESULTADOS
Vantagem relativa: contribuições do Prontuário Eletrônico do Cidadão (PEC) comparado ao registro em papel
Em relação ao atributo “vantagem relativa”, os entrevistados relataram que o PEC proporciona organização das informações:
[...] já que anteriormente, os prontuários em papel se perdiam [...] (ENF1-ESFA).
Outra vantagem relatada foi a agilidade no atendimento:
[...] você já está aqui no computador digitando. A gente já está jogando as informações na hora. É rapidinho [...] (D4-ESFF).
Também foi apontada como vantagem pelos profissionais a credibilidade das informações registradas no PEC:
[...] para fins legais, fica bem mais confiável do que no papel [...] Um paciente por exemplo, ligou na ouvidoria reclamando que não estava tendo nenhum atendimento, que não tinha nenhuma assistência. Imprimi tudo do PEC e mandei para a ouvidoria. [...] (ENF4-ESFD).
Os profissionais sentiam-se mais seguros por registrar os dados de forma eletrônica, uma vez que o acesso ao sistema é feito a partir de senha:
[...] eu acho que no PEC, vale mais do que no escrito. Escrever, qualquer um pode no papel. Mas a partir do momento que está o seu Login, que estão os seus dados, eu acho que é mais difícil da pessoa tentar fazer outra coisa [...] (TENF3- ESFD).
A agilidade em registrar, proporcionada pelo PEC, também foi mencionada como uma vantagem relativa: (ENF6-ESF).
Compatibilidades e incompatibilidades do prontuário eletrônico do cidadão em relação ao cotidiano de trabalho
Em relação ao atributo “compatibilidade”, alguns profissionais apontaram que o PEC é compatível com suas necessidades de trabalho.
[...] são, completamente compatíveis. Tudo que a gente realiza aqui tem no programa [...] (ENF6- ESFF).
Outros entrevistados também ressaltaram a compatibilidade do PEC diante da necessidade de sistematizar a assistência, além de cumprir exigências de conselhos de categorias profissionais específicas, como a enfermagem:
[...] o COREN (Conselho Regional de Enfermagem), ele exige muito a sistematização, da enfermagem, no SOAP é bem parecido com o método da sistematização. Você tem a coleta de dados, o diagnóstico de enfermagem e prescrição [...] (ENF4- ESFD).
Por outro lado, algumas funcionalidades do PEC não condizem com a realidade de trabalho dos profissionais, principalmente o cotidiano de trabalho na Atenção Básica, gerando incompletudes e a necessidade de continuar registrando algumas coisas em papel:
[...] para mim, o campo que fica mais debilitado é o campo de procedimento. Por exemplo, remoção de cerume, é um procedimento muito comum na atenção primária, e você não o encontra no PEC [...] (D2- ESFC).
Outro participante enfatiza:
[...] tem coisa que não tem, a gente registra separado no papel [...] (D3- ESFE).
Ocorreram também problemas relacionados com o acesso à internet (conectividade), prejudicando o processo de trabalho dos profissionais, interferindo na relação profissional-paciente:
[...] Já teve vezes que a gente entra com o paciente para você assisti-lo, e quando você vai realmente registrar, o sinal (internet) já caiu, e isso de certa forma atrapalha o trabalho (M2- ESFB).
Com isso, reforça-se a coexistência entre tecnologia e papel no cotidiano de trabalho dos profissionais:
[...] não funcionou nem o PEC, porque eles estavam dando manutenção. Ainda mais quando chove. Aí um motivo a mais, que eu coloco no prontuário escrito, papel. Porque a gente não pode confiar [...] (ENF5-ESFE).
Além disso, alguns profissionais destacaram o incremento da permanência diante do computador em detrimento da assistência:
[...] o difícil é que você vai ficar no computador o dia inteiro. Agora mesmo Você está com LER (Lesão por Esforço Repetitivo), e poderia estar com o paciente [...] (TENF2-ESFA).
Outro participante ressalta:
[...] a minha maior questão hoje com o uso do PEC não é por ele, é Ergonômica. Por conta da posição do computador, do tamanho da mesa, com a questão do mouse [...] (D2-ESFC).
Observando o fluxo de atendimentos aos pacientes a partir da utilização do PEC, foi muito comum ouvir profissionais questionando sobre “lentidão do sistema”, “hardware danificado”, gerando “atrasos no atendimento aos usuários do serviço”, “conflitos” e “insatisfação profissional”, fragilizando a utilização do PEC (NO).
Complexidades relacionadas ao prontuário eletrônico do cidadão e ao seu uso
[...] o PEC pede uma forma de alimentação que às vezes eu não tenho clareza de tudo que ele pede (ENF2- ESFB);
Outro participante endossa: [...]se eu registrei apenas no atendimento no PEC, já cai no CDS, para faturamento? E pra questão de produtividade mensal? [...] (M2- ESFB).
As fragilidades no processo de capacitação para uso do PEC também contribuíram para tornar complexa sua utilização:
[...] a falta de capacitação que a gente tem acaba que aprende sozinho, e às vezes é muito difícil [...] Alguma questão de apagar, de deletar, de inativar uma família, a gente não está aprendendo (M1- ESFA).
Alguns profissionais tiveram dificuldades para excluir informações do PEC. Pediam ajuda para a enfermeira da unidade, que por várias vezes também tinha dificuldades, e dizia: “Vou ligar na central” (NO).
Outro entrevistado relatou:
[...] teve uma reunião lá e passaram para gente [...] não deu para pegar nada [...] aí a gente vai mexendo, vai vendo como é que a coisa funciona [...] (ENF1- ESFA).
A ausência de capacitação dos órgãos responsáveis pelo processo de implantação do PEC também foi apontada pelo participante:
[...] não veio uma pessoa do ministério, não veio uma pessoa da regional capacitar o pessoal. Não teve, a gente não teve isso [...] (ENF4- ESFD).
O reconhecimento dos profissionais de que o PEC é extenso e detalhado também contribuiu para ampliar a percepção de sua complexidade:
[...] ele é um prontuário muito extenso, ele é cheio de detalhes. Então é isso que complica [...] (M3- ESFC); [...] achei muito extenso, muito detalhado. Podia ser mais resumida aquelas partes de subjetiva, objetiva, avaliação [...] (ENF3- ESFC).
As observações realizadas também endossaram os achados das entrevistas: fragilidades em capacitações; o PEC reconhecido como muito extenso e demandando muitas informações e tempo para o registro; a dificuldade dos profissionais em compreender os itens a serem preenchidos no PEC. Todas essas situações acabaram por aumentar o tempo de espera dos pacientes para serem atendidos (NO).
A experimentação como um breve período de adaptação
Durante as observações, foi comum ouvir os profissionais reconheceram que não houve um período de teste em que pudessem experimentar e opinar sobre possibilidades de adequações às reais demandas do cotidiano de trabalho na Atenção Básica, mas tiveram apenas um breve período de adaptação. Nas entrevistas tal situação também foi relatada:
[...] tivemos um período de adaptação. Tinha que ser rápido, a gente nem teve como falar do que precisava alterar, adaptar, melhorar [...] (D3- ESFE); [...] nem vou falar que foi um período de teste, porque já falaram: começa a usar que nós vamos abandonar o papel, é uma exigência do governo [...] (ENF6- ESFF).
Possibilidade de observação: contribuições do prontuário eletrônico do cidadão para a integração das informações do paciente na rede assistencial e entre profissionais
Em relação ao atributo “possibilidade de observação”, inicialmente, os profissionais relataram que o PEC já está proporcionando a integração da rede assistencial:
[...] o paciente consultou aqui, se ele for consultar em outra unidade, o médico tem acesso lá, vai aparecer o histórico dele [...] (ENF5- ESFE). A integração vai além dos pontos da rede assistencial no município: o paciente é atendido como um todo, independente se ele tá aqui em Formiga, se ele tá em Divinópolis, se ele tá em Belo Horizonte[...] (M1- ESFA).
Também já se percebe a integração das informações entre os profissionais de saúde:
[...] com o PEC eu não tenho que ir ao prontuário médico, aqui não era aquele prontuário comum, não. O nosso ficava aqui, o do médico ficava na recepção, e tinha o da enfermeira. (ENF5- ESFE).
Outro entrevistado endossa:
[...] em um único lugar, você lança sua consulta, pressão e peso. Agora está desburocratizando e integrando tudo [...] (ENF4- ESFD).
Os entrevistados também observaram como resultado do PEC a facilidade de recuperação das informações, agilizando a assistência e contribuindo para o acompanhamento dos pacientes:
[...] você tem acesso rápido às prescrições de medicação, não precisa ficar procurando nos prontuários em papel. É só reimprimir para atualizar as receitas de diabéticos e hipertensos acompanhados [...] (M4- ESFG).
O PEC foi reconhecido como um instrumento de trabalho fundamental e indispensável:
[...] A gente está dependente dele. É uma ferramenta hoje essencial no serviço da gente [...] (M1- ESFA); [...] na minha realidade, eu não consigo imaginar mais o nosso serviço sem o PEC [...] (ENF3- ESFC).
Neste sentido, observamos que nas mudanças provocadas pela implantação do PEC predominam contribuições que potencializam sua aceitação (NO). Por outro lado, há também fragilidades relacionadas ao PEC que potencializam sua rejeição, conforme sintetizado na Figura 3.
Atributos da Inovação |
Contribuições proporcionadas pelo PEC que potencializam sua aceitação |
Fragilidades relacionadas ao PEC que potencializam sua rejeição |
Vantagem Relativa Compatibilidade Complexidade Experimentação Possibilidade de observação |
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Figura 3 – Atributos, contribuições e fragilidades relacionadas ao PEC no cenário estudado. Divinópolis, MG, Brasil, 2019
Fonte: Elaborado pelos autores, 2019.
DISCUSSÃO
A análise da difusão do PEC à luz de seus atributos (Vantagem Relativa, Compatibilidade, Complexidade, Experimentação, Possibilidade de observação) revela contribuições da tecnologia favorecendo sua adoção entre os profissionais. Entretanto, também emergiram fragilidades relacionadas aos atributos do PEC, potencializando sua rejeição.
Em relação ao atributo “vantagem relativa”, o PEC tem sido reconhecido como mais vantajoso em detrimento do prontuário em papel, sobretudo no que tange a organização da informação, agilidade para registrar e recuperar a informação, credibilidade e segurança das informações, e respaldo legal proporcionado pelo registro da assistência prestada aos usuários. Neste sentido, o reconhecimento das vantagens proporcionadas pela inovação contribui para a adoção do PEC, pois os profissionais adotarão uma inovação se perceberem que ela oferece vantagens sobre as práticas anteriores(9,13). A adoção de inovações tecnológicas é potencializada quando uma tecnologia é melhor que a anterior(7).
A compatibilidade do PEC com as demandas dos profissionais e de pacientes na APS é outro avanço relacionado à inovação. O atributo “compatibilidade” destaca a consistência de uma inovação em relação ao ambiente técnico e social existente(6). Se uma inovação puder integrar valores já existentes, ou coexistir com esses valores, a experiência passada e as necessidades de possíveis adotantes serão maiores, assim como suas perspectivas de difusão e adoção(14,6). Neste sentido, o PEC mostrou-se compatível com a realidade da APS, com ressalvas para a ausência de alguns campos necessários e que não foram contemplados no software, podendo ser corrigidos a partir de novas versões. No início de sua difusão, uma inovação tecnológica não se configura como um recurso definitivo: passará por adaptações ao longo do tempo, à medida que é utilizado e alterado para atender às necessidades dos usuários em seu cotidiano de trabalho(14).
Os resultados do PEC observados no cotidiano de trabalho também foram reconhecidos: a integração das informações do paciente na rede assistencial e entre os profissionais e a agilização da assistência e sistematização do acompanhamento dos pacientes tornam o PEC um instrumento de trabalho indispensável. Os resultados verificados potencializam a qualidade do atendimento, a gestão do cuidado e a segurança dos pacientes(15,16).
Na difusão do PEC verificamos também fragilidades relacionadas a seus atributos que potencializam a rejeição à inovação. Primeiramente, verificamos a necessidade de ampliar o acesso à internet, a conectividade, a disponibilização de mobiliário e a infraestrutura adequada para manter a tecnologia em perfeitas condições de uso. O plano nacional de implantação do PEC prevê a necessidade de disponibilizar computadores e impressoras nos ambientes de atendimento, além de acesso à internet e conectividade estável(1). No Brasil, em função dos custos elevados, que tornam as redes inviáveis, ainda há um déficit considerável na área de telecomunicações, impondo barreiras ao acesso à internet e à conectividade para a difusão de inovações tecnológicas na área da saúde(17). Em localidades remotas, como áreas rurais, o acesso à internet é ainda mais difícil, e a velocidade de conexão é inferior à que seria necessária, situações ainda típicas no cenário brasileiro(18).
Outra fragilidade verificada esteve relacionada com o software do PEC e sua adequação às demandas do trabalho realizado na APS. Faltam campos para registrar informações necessárias produzidas no cotidiano de trabalho, e há itens em excesso a serem registrados no PEC, alguns deles não compreendidos pelos profissionais. Agravadas pelo período insuficiente de experimentação, tais situações tornam a inovação complexa e potencializam sua rejeição. A avaliação dos usuários do PEC contribui para o aperfeiçoamento de suas funcionalidades e, consequentemente, para a sua adoção. A inovação não deve ser um elemento apenas de domínio técnico: é preciso que os usuários experimentem e avaliem a inovação antes de sua implementação(19,20).
Em relação às limitações desta pesquisa, considera-se a aplicabilidade de seus resultados ao cenário em estudo, não permitindo generalizações. Entretanto, sua originalidade e seu ineditismo podem contribuir para a continuidade do processo de difusão da inovação PEC.
CONCLUSÃO
A análise da difusão do PEC à luz de seus atributos revelou que o mesmo é mais vantajoso do que a tecnologia anterior, é compatível com as necessidades dos usuários, não é percebido como uma tecnologia complexa e, apesar do pouco tempo de experimentação, seus resultados e suas contribuições para o cotidiano de trabalho são perceptíveis pelos profissionais: organização da informação; agilidade para registrar e recuperar informações; credibilidade, segurança das informações e respaldo legal proporcionado pelo registro sistematizado; integração das informações na rede assistencial e entre os profissionais; agilização da assistência e sistematização do acompanhamento dos pacientes.
Entretanto, a análise da difusão do PEC à luz de seus atributos também revelou fragilidades que precisam ser superadas: há algumas incompatibilidades do PEC diante de necessidades dos profissionais; o acesso e a conectividade à internet no contexto estudado são limitados; há deficiências de infraestrutura e no mobiliário que limitam a difusão; influências sobre a relação entre profissionais e pacientes potencializam resistências; a fragilização do processo de capacitação e a ausência de experimentação dificultam o uso do PEC e a compreensão de suas funcionalidades. Tais fragilidades têm contribuído para desenvolver nos profissionais a percepção de que a inovação é complexa, desencadeando possibilidades de rejeição.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos à Ricardo Bezerra Cavalcante e Daniela Sousa Gomes pela contribuição substancialmente para a concepção e planejamento do projeto, obtenção de dados e análise e interpretação dos dados.
Agradecemos à Ricardo Bezerra Cavalcante, Daniela Sousa, Tarcisio Laerte Gontijo, Valeria da Conceição Oliveira, Eliete Albano de Azevedo Guimarães e Regina Consolação dos Santos pela contribuição significativa na elaboração do rascunho, revisão crítica do conteúdo e da aprovação da versão final do manuscrito.
CONFLITO DE INTERESSE
Os autores declaram não haver conflito de interesse.
FONTE DE FINANCIAMENTO
FAPEMIG (APQ-00337-15) e CNPq (404653/2016-2).
REFERÊNCIAS
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Submissão: 10/06/2021
Aprovado: 04/11/2021
CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA |
Concepção do projeto: Cavalcante RB |
Obtenção de dados: Gomes DS |
Análise e interpretação dos dados: Gomes DS, Cavalcante RB |
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Aprovação final do texto a ser publicada: Gomes DS, Santos RC, Gontijo TL, Oliveira VC, Guimarães EAA, Cavalcante RB |
Responsabilidade pelo texto na garantia da exatidão e integridade de qualquer parte da obra: Gomes DS |