Processo de trabalho em serviço de saúde mental na pandemia de Covid-19: estudo qualitativo
Natália de Magalhães Ribeiro Gomes1, Maria Odete Pereira1, Daniela Leite Garcia Silva1, Rosiane Azevedo Faleiro Rodrigues1, André Bárbaro Abrão1, Amanda Márcia dos Santos Reinaldo1
1 Federal University of Minas Gerais, MG, Brazil
RESUMO
Objetivo: O objetivo deste estudo é compreender o processo de trabalho de um Centro de Atenção Psicossocial em Minas Gerais durante a pandemia de Covid-19. Método: Trata-se de um estudo de caso, interpretativo, de natureza qualitativa. Resultados: A análise das entrevistas resultou em quatro categorias temáticas: impactos no processo de trabalho gerados pela pandemia de Covid-19; adaptações no processo de trabalho durante a pandemia; dificuldades enfrentadas durante a pandemia; e preparação para o retorno das atividades presenciais. Conclusão: A pandemia de Covid-19 impulsionou diversas mudanças no cenário dos serviços de saúde, que precisaram se adaptar, de forma rápida e efetiva, para garantir a continuidade dos tratamentos.
Descritores: Covid-19; Serviços de Saúde Mental; Trabalho; Saúde Mental; Avaliação de Processos.
INTRODUÇÃO
No início do ano de 2020, a população mundial se viu diante de uma nova pandemia causada pelo Covid-19. Inicialmente notificada na China, o novo coronavírus (SARS-CoV-2) se disseminou rapidamente pelo mundo. Em março de 2020, a Organização Mundial de Saúde decretou emergência sanitária global(1).
A emergência e a amplitude com que a Covid-19 se espalhou pelo mundo afetou o modo de vida em sociedade, assim como causou redução significativa do acesso a serviços e suporte de saúde. Em diversos países, foram decretados lockdown e adotados o isolamento e distanciamento social como meios para tentar conter a disseminação. Além dos impactos na saúde pública, imensos desafios e possibilidades de transformações sociais colocaram a população mundial à prova(2).
Com o avanço da pandemia no Brasil, foram decretadas políticas e ações governamentais necessárias à redução da velocidade de disseminação da doença e à mitigação de seus resultados na saúde das pessoas(3). Além disso, estados e municípios, declararam estado de calamidade pública, por meio de decretos, criando e regulamentando a adoção de medidas sanitárias e outras providências, para o enfrentamento da pandemia(4).
Nesse cenário, os serviços de saúde tiveram que tecer estratégias de forma rápida e efetiva para atender às exigências decretadas para conter a disseminação do novo coronavírus(5-6). Neste contexto, o município de Carmópolis de Minas, localizado na região centro-oeste de Minas Gerais, precisou readequar sua rede de saúde para atender as demandas da população que surgiram com a pandemia.
O município implantou um comitê para enfrentamento da Covid-19, composto por profissionais da saúde e da gestão local, o qual era responsável pelo acompanhamento dos padrões de disseminação do vírus no município e pelo estabelecimento de medidas de enfrentamento. Dentre as medidas de enfrentamento da pandemia, os serviços de saúde tiveram que reorganizar seu modo de trabalho. Essas mudanças afetaram o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) do município que precisou adaptar seu processo de trabalho.
A pandemia interrompeu serviços essenciais de saúde mental em 93% dos países em todo o mundo. Estudo realizado em agosto de 2020 mostrou que em ao menos 60% dos países, as instituições de saúde mental, que atendiam crianças e jovens (72%) e pessoas idosas (70%), tiveram que interromper suas atividades. Ademais, 30% dos países referiram que o acesso a psicofármacos para tratamento de transtornos mentais e uso de substâncias foi dificultado(7).
Diante do cenário pandêmico, o objetivo deste estudo foi compreender o processo de trabalho em um CAPS de Minas Gerais durante a pandemia de Covid-19. Justifica-se pela necessidade de compartilhar as práticas desenvolvidas em saúde mental, promovendo a visibilidade desses serviços.
Ademais, os resultados poderão promover a afirmação dos profissionais para o fortalecimento dos serviços de saúde mental no país, visto que a pandemia e suas consequências sociais, políticas e econômicas geraram muitas demandas de saúde mental.
MÉTODO
Trata-se de um estudo de caso, interpretativo, de natureza qualitativa.
Para assegurar o rigor no estudo, os Critérios Consolidados para Relatos de Pesquisa Qualitativa (COREQ) foram utilizados como ferramenta de apoio. Este é um checklist para promover a qualidade de relato dos estudos qualitativos, levando a uma melhor conduta e reconhecimento dos mesmos como esforço científico(8).
Como referencial teórico, os autores adotaram o modelo de avaliação de serviços de Donabedian(9). Para o autor, o ato de avaliar é acompanhar constantemente as instituições de saúde, para identificar possíveis falhas que possam ser corrigidas de modo a favorecer o aprimoramento dos processos e desenvolvimento do serviço.
Para desenvolver uma avaliação sistematizada dos serviços de saúde, o referido autor adaptou um sistema de indicadores focado em três dimensões: estrutura, processo e resultados. Este estudo teve como enfoque a avaliação de processo.
A avaliação de processo retrata as atividades do serviço de atenção à saúde. Esse tipo de avaliação está orientado, principalmente, para a análise das práticas assistenciais envolvendo profissionais de saúde e usuários(9).
Este estudo foi desenvolvido em um CAPS de tipologia I de um município de pequeno porte localizado na região Centro Oeste de Minas Gerais. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE(10), o município possui uma população de 19.335 habitantes. No âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), para as ações e serviços de saúde, o município conta com seis estratégias de saúde da família; Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF I); Santa Casa de Misericórdia; Núcleo de Saúde da Mulher e da Criança; Centro de Especialidades médicas; Laboratório Municipal e o CAPS I.
A população deste estudo foram os profissionais de nível superior: enfermeira; psiquiatra; assistente social; psicóloga e terapeuta ocupacional; profissional de nível técnico; duas oficineiras e a gerente do serviço, que é enfermeira. Salienta-se que ao todo foram convidados os nove profissionais que compunham a equipe técnica do CAPS. Todos aceitaram participar da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Para manter o anonimato dos participantes, os depoimentos foram codificados utilizando-se nomes de pedras preciosas.
A coleta de dados ocorreu durante o mês de outubro de 2020, tendo sido realizada por meio de entrevista não estruturada. Segundo Minayo(11), nessa técnica de coleta de dados, o entrevistador permite que o participante fale livremente acerca da temática em discussão, com intuito de dar mais profundidade às reflexões.
As entrevistas foram realizadas por meio de plataforma online, em período de trabalho no CAPS. Os agendamentos foram acordados, previamente, de modo a não acarretar prejuízos no desenvolvimento de suas atividades. Essas tiveram, em média, 60 minutos de duração, foram gravadas e posteriormente transcritas para a análise dos dados.
Para nortear a entrevista foram apresentadas aos participantes questões abertas referentes ao processo de trabalho no CAPS durante a pandemia de Covid-19. Os profissionais puderam se expressar e, diante da necessidade de aprofundar determinado aspecto, novas questões eram formuladas.
Para a análise dos resultados utilizou-se o software MAXQDA, versão 20.2.1. A metodologia de análise empregada foi a técnica de Análise Temática(11). Para tanto, foram seguidas as etapas: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados obtidos.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG sob o parecer n°4.329.244 e contemplou os princípios éticos da Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde brasileiro.
Com a organização dos dados, foram definidas quatro categorias temáticas: (1) Impactos no processo de trabalho gerados pela pandemia de Covid-19; (2) Adaptações no processo de trabalho durante a pandemia; (3) Dificuldades enfrentadas durante a pandemia; e (4) Organização para o retorno das atividades presenciais.
RESULTADOS
A equipe técnica do serviço era composta por: uma enfermeira; um psiquiatra; uma assistente social; uma psicóloga; uma terapeuta ocupacional; uma técnica de enfermagem; duas oficineiras e uma gerente, também com formação em enfermagem.
Na caracterização do perfil sociodemográfico dos nove participantes, prevaleceu: sexo feminino (n=8); casados (n=7); residentes em Carmópolis de Minas (n= 6) e renda mensal de 1 a 3 salários mínimos (n=5). A faixa etária variou entre 31 e 64 anos e o nível de escolaridade apresentou igual divisão (n=3) entre o ensino superior completo e pós-graduação.
Os impactos da pandemia no processo de trabalho
Diante do cenário pandêmico, os impactos da Covid-19 no processo de trabalho foram recorrentes nos discursos dos profissionais do serviço, como expressou a profissional:
Agatha: A pandemia impactou em tudo, o serviço teve que parar. Eu fui a primeira pessoa a ser afastada, por fazer parte do grupo de risco de Covid-19, tendo como fator a idade. A maioria dos usuários também faz parte do grupo de risco, por idade acima dos 60 anos. Então, ambas as partes tiveram que se afastar e foi um processo difícil.
Evidenciou-se, também, que algumas atividades do serviço tiveram que ser suspensas, como salientado por alguns participantes:
Esmeralda: Durante a pandemia foram suspensas todas as estadas dos usuários aqui no CAPS em permanência dia.
Safira: No momento, o matriciamento está suspenso por causa dessa questão da pandemia, pois o volume de pessoas que participa não é adequado para o quantitativo máximo no mesmo ambiente.
Ônix: Nós não podemos fazer reunião com os profissionais da Atenção Primária aqui no CAPS.
Com a suspensão dessas atividades-chaves, os profissionais referiram sobrecarrega de trabalho, como expressado por Ônix:
Nós estamos tendo que manter os usuários aqui no CAPS, porque com a impossibilidade das reuniões de matriciamento, mesmo aqueles usuários que estavam mais estáveis, não podíamos referenciar para a Atenção Primária, sem explicar o caso e o manejo para os profissionais de lá.
Além disso, os impactos foram observados também no processo de cuidado dos usuários acompanhados pelo serviço, como evidenciado pelas profissionais:
Esmeralda: [...] no início, os usuários sentiram muito essa questão de não poder vir para o CAPS.
Ametista: Foi um impacto muito forte, pois os usuários estavam acostumados com o serviço. Com a Pandemia, os usuários não vieram mais e muitos tiveram recaídas, voltaram a consumir bebidas alcoólicas, voltaram a ficar na rua, ficaram muito debilitados.
Quartzo: [...] nós vimos que a maioria deles que ficaram em casa teve recaídas, aqueles que estavam bem, que estava tendo um resultado positivo.
Adaptações no processo de trabalho para a continuidade dos atendimentos durante a pandemia de Covid-19
Frente aos impactos no processo de trabalho advindos com a pandemia, os profissionais adotaram mudanças necessárias para a continuidade dos atendimentos. Dentre essas mudanças, as visitas domiciliares foram uma das alternativas encontradas para a continuidade do cuidado dos usuários que eram acompanhados pelo serviço, como explicaram os profissionais:
Safira: nessa situação de pandemia, nem todos podem estar vindo ao CAPS, nesse caso eu vou à casa de todos. Fora da pandemia, normalmente, eu faço essa avaliação dos usuários no CAPS.
Esmeralda: Nós passamos a atendê-los no domicílio e em atendimento ambulatorial em psiquiatria, quando necessário.
Nessa perspectiva, para além da continuidade do cuidado dos usuários já assistidos pelo serviço, a garantia de assistência à população e aos profissionais de saúde do município também foi mencionado nos discursos a seguir:
Turmalina: Nós iniciamos o atendimento online para atender a população, os funcionários, enfim, qualquer pessoa que quiser atendimento psicológico no momento de insegurança e desespero. Esse atendimento online funciona como um “190”. Eles ligam a qualquer hora e conseguem o atendimento, seja um usuário ou um profissional.
Safira: na pandemia, eu tenho realizado os atendimentos online dos usuários.
Rubi: Eu comecei a fazer o atendimento online, mas na verdade não foi muito bom, eu não gostei. Então, quando eu via que era um caso que demandava mais, eu atendia presencial mesmo.
Dificuldades enfrentadas no processo de trabalho durante a pandemia
Dentre as dificuldades expressas nos discursos dos profissionais, em relação ao processo de trabalho durante a pandemia, destacou-se a preocupação com a possibilidade de transmitir o vírus para usuários e familiares, durante as visitas domiciliares.
Esmeralda: o atendimento da equipe tinha que ser no domicílio e não tinha muita coisa que eu pudesse fazer, porque no início eu não podia nem entrar na casa dos usuários. Eu tinha que conversar do lado de fora, então, nós tínhamos muitas dificuldades. Eu sempre ia acompanhada nas visitas, mas era difícil por causa da contaminação, nós tínhamos que pensar no usuário também.
Em complementação, os profissionais salientaram as limitações encontradas no atendimento online, implantado no município, como a instabilidade nas conexões da internet, que repercutiu nos atendimentos, deixando usuários e profissionais frustrados, conforme fala a seguir:
Safira: nós ficamos muito limitados em relação aos recursos terapêuticos, em realizar uma atividade terapêutica específica. Em alguns casos, quando existia um quadro de comprometimento cognitivo muito grande, não tínhamos como fazer o atendimento online. Além disso, nos atendimentos online, por causa da oscilação do sinal de internet, que atrapalha muito, “cai ou corta a ligação”, os usuários se frustram na tentativa de fazer alguma coisa, mas não conseguem.
Organização para o retorno das atividades presenciais
Com o acompanhamento epidemiológico da disseminação do vírus, o município adotou medidas de retorno com as atividades, nos diversos setores. Dentre esses, os serviços de saúde tiveram que se reorganizar para o retorno das atividades presenciais, segundo expressões abaixo:
Rubi: Vamos retornar com a permanência dia. Teve uma reunião para discutir quais usuários deveriam permanecer no CAPS, porque estavam mais graves e precisam ser inseridos, e como seria o projeto terapêutico singular de cada um. Na permanência dia serão quatro usuários nesta semana.
Turmalina: [...] começamos a atender os usuários que estão com alguma urgência, daqueles que estavam em atendimento domiciliar, mas que não estão tendo nenhuma resposta, então tem a necessidade do acompanhamento no CAPS.
Diante do retorno às atividades presenciais, os profissionais relataram as estratégias necessárias para que esse retorno fosse seguro para eles e para os usuários.
Ágata: Agora também temos EPIs para utilização no retorno do funcionamento. Vamos respeitar o distanciamento social, de dois metros entre cada um, em uma sala bem espaçosa e arejada. Creio que teremos bastante segurança no retorno.
Safira: Está acontecendo também o planejamento de quais atividades serão promovidas para esses usuários. A partir disso, vamos selecionar o material individual para cada um, por exemplo: lápis de cor, cada um vai ter o seu kit.
DISCUSSÃO
Com o advento da pandemia de Covid-19 são evidentes os impactos nos processos de trabalho e as necessidades de adaptações nos serviços de saúde. No entanto, por ser um evento em curso, a produção literária que aborda o processo de trabalho em serviços de saúde, em especial, em serviços de saúde mental, é escassa.
Os ambientes de trabalho, conforme salientado por Silva et al.(12), podem ter um papel relevante na disseminação do vírus, visto que, uma variedade de atividades pode promover e facilitá-lo. Nesse sentido, destaca-se a importância da caracterização dos processos de trabalho nos serviços de saúde, levando em conta as condições de trabalho.
Filho(13) complementa, referindo que para garantir condições de trabalho em que a propagação do vírus seja mitigada, medidas organizacionais para minimizar o risco de transmissão devem ser implementadas nos diversos ambientes de trabalho da instituição, além de considerar a saúde do trabalhador.
Nessa perspectiva, serviços dos setores públicos e privados adotaram medidas de governança de riscos que incluíram, desde o fechamento ou modificação da rotina de serviços até a suspensão ou reorganização de atividades da administração pública. Essas medidas foram adotadas pela maioria das unidades federativas (89%). O objetivo central envolveu reduzir a transmissão para frear a mortalidade pela pandemia de Covid-19 e não haver colapso do sistema de saúde. De modo simultâneo buscou minimizar os impactos socioeconômicos e sanitários da mesma(14).
No entanto, em detrimento da reorganização de rotinas das instituições, em destaque para os serviços de saúde, os profissionais referem sobrecarrega de trabalho. Diante de situações de pandemia, os profissionais da saúde têm maiores possibilidades de experienciar estressores, tais como a sobrecarga e fadiga(15). Além disso, os autores inferem que essa condição pode estar relacionada aos conflitos pessoais diante da incerteza do que está por vir e pelo conhecimento recente acerca da doença.
Cabe pontuar que o trabalho em saúde mental carece da relação entre profissional e usuário do serviço de saúde, para além da organização formal do serviço e dos processos de trabalho. Nesse sentido, é importante pensar que ao organizar o serviço para atendimentos remotos, onde não há o encontro, há uma disruptura das relações necessárias para o acompanhamento em saúde mental. Ademais, o vínculo construído ao longo do tempo passa a ser intermediado por uma tecnologia de comunicação. A adaptação do serviço e do processo de trabalho se fez necessária diante de algo inesperado, mas que impôs a necessidade de cuidado coletivo.
O cuidado do outro, nesse caso o usuário do serviço, pode ser considerado apenas um aspecto do movimento necessário para acomodar as ações do serviço, na lógica do distanciamento. Outra questão importante é o cuidado do profissional de saúde, que deveria ser afastado quando pertencesse a grupos de risco, ou por ter sido contaminado, como aconteceu no CAPS em questão. Nesse caso, é interessante pensar que esse deslocamento da força de trabalho para o trabalho remoto, ou da manutenção de profissionais nos serviços, contingenciando o cuidado, gera sobrecarga emocional e de trabalho percebida pelos profissionais.
Neste estudo, a sobrecarga de trabalho foi referida pelos profissionais de nível superior, que a associaram à existência de usuários estáveis clinicamente, em condições de serem acompanhados pela Atenção Primária, mas que devido à suspensão das reuniões de matriciamento às equipes das UBSs, os acompanhamentos no serviço eram mantidos, haja vista que não seria possível a transferência efetiva do cuidado.
Por outro lado, os profissionais evidenciaram também a preocupação dos usuários, que eram acompanhados pelo serviço, em relação ao acesso ao tratamento durante o período de isolamento social e a exacerbação dos sintomas dos transtornos mentais.
Corroborando com os resultados encontrados no presente estudo, Li(16) referiu que devido às restrições de tráfego e medidas de isolamento, os usuários de saúde mental, em atendimento ambulatorial, estavam enfrentando dificuldades para receber tratamento de manutenção, o que poderia desencadear crise psíquica, com agitação psicomotora.
Em consequência à pandemia, é esperado um aumento de indivíduos experienciando maiores níveis de estresse; ansiedade; respostas de enfrentamento ineficaz ao estresse, como o uso de substâncias psicoativas e o aumento da prevalência de transtornos mentais na sociedade.
Neste sentido, estudo realizado na Coreia, durante a epidemia da Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS), em 2015, evidenciou que pessoas com transtornos mentais pré-existentes estavam mais suscetíveis aos efeitos do estresse associados à situação de vida naquele momento. A ruptura do suporte social e do atendimento em serviços de saúde, durante a pandemia Covid-19, podem acarretar crises psíquicas nas pessoas em condição de adoecimento psíquico(17).
O serviço de saúde mental não deve ser central na vida do sujeito e esse é um importante princípio quando se tem a reabilitação psicossocial como norteador do cuidado. Ao mesmo tempo, é a rede de atenção psicossocial quem opera, articula, e coordena o cuidado, representada por seus dispositivos, enquanto existir necessidade por parte do usuário. Nesse sentido, é compreensível que o próprio deslocamento do sujeito do domicílio para o serviço seja uma possibilidade, autônoma, de gestão do cuidado.
Quando os serviços fecham suas portas por uma necessidade sanitária, o fluxo de usuários nessa rede de atenção e seus dispositivos é interrompido, o que gera insegurança e, consequentemente, aumento no número de usuários dos serviços experienciando desamparo em relação ao cuidado, assim como novos atores se apresentam com demandas de saúde mental associadas à pandemia.
Pesquisa realizada no Reino Unido demonstrou que a maioria dos participantes relatou ter vivenciado algum adoecimento psíquico durante a pandemia de Covid-19. As preocupações com maior prevalência referidas pelos participantes incluíam a falta de acesso aos serviços de saúde mental, com a exacerbação dos transtornos mentais pré-existentes e aumento da sintomatologia de ansiedade e depressão(18).
Nessa lógica, com intuito de assegurar atendimento aos usuários de saúde mental no CAPS participante do presente estudo, implantou-se o atendimento online durante o período de isolamento social, o que foi relatado também por Wells et. al(19), haja vista que diversos sistemas e serviços de saúde tiveram que se adaptar às restrições impostas pela pandemia. Dentre as formas utilizadas para garantir acesso às psicoterapias, foram adotadas as videoconferências pelos profissionais de nível superior, permitindo que usuários e profissionais se encontrem de maneira síncrona, respeitando o isolamento social.
O atendimento online, durante a pandemia de Covid-19, foi utilizado em outros países com relativo sucesso e limitações. Na China o acompanhamento de saúde mental e aconselhamento psicológico aos profissionais de saúde, foi realizado por meio de redes sociais ou aplicativos para celulares(13). Esse tipo de atendimento se caracteriza como uma das possibilidades do “telessaúde” e o formato oferece aos usuários cuidados de modo virtual e ao mesmo tempo respeita o distanciamento social(19). Assim sendo, pode-se afirmar que as plataformas digitais foram importantes aliadas no suporte social e no acesso aos serviços de saúde mental e aconselhamento psicológico, durante a pandemia da Covid-19(5).
No entanto, apesar de os estudos apontarem o uso das tecnologias de informação e comunicação como dispositivos para a manutenção do cuidado, faz-se necessário destacar que essas ferramentas têm suas limitações. Uma das dificuldades relatadas pelos profissionais foram os desafios para realizar os atendimentos online, diante da falta de acesso à Internet de qualidade.
De acordo com Schmidt et al.(15), a restrição de deslocamentos e a necessidade de realização de atendimentos psicológicos, por meio das plataformas digitais, na vigência da pandemia de Covid-19 no Brasil foram desafiadores. Dentre os desafios destacou-se a falta de acesso à Internet, o que limita a oferta de apoio. Além disso, ainda que uma parcela da população tenha acesso à Internet, muitos apresentam dificuldades no uso da tecnologia, e manuseio de aparelhos de celular e computadores, enfim, no uso das tecnologias e mídias digitais.
Percebeu-se ainda que esse modelo remoto de trabalho não se aplicou a todas as atividades presentes no CAPS, uma vez que as plataformas digitais limitam a possibilidade de desenvolvimento das atividades coletivas e que são essenciais para o processo terapêutico, de socialização e reabilitação dos usuários. Nesse sentido, destaca-se que apesar de as tecnologias de comunicação serem aliadas no processo de cuidado, essas não substituem a necessidade do contato face-a-face, entre profissional e usuário.
Os profissionais relataram medo da contaminação e da transmissão do vírus para os usuários e vice-versa. O surgimento repentino da Covid-19 representa uma ameaça à saúde mental das pessoas afetadas e de seus contatos próximos. Os profissionais de saúde, mesmo aqueles que não atuam na linha de frente, podem experimentar o medo de contágio pelo vírus e da transmissão para familiares, amigos ou outras pessoas próximas. Além disso, esses profissionais enfrentam também o medo à morte(1).
A insegurança gerada pelo desconhecido desencadeou ansiedade entre os profissionais, o que é compreensível. Apesar da rápida resposta dada por pesquisadores em todo o mundo acerca da história natural da doença e outras informações associadas à incerteza a respeito do futuro, pode ser compreendida como um fator de risco à saúde dos profissionais do serviço.
Ademais, o planejamento para a retomada das atividades presenciais, ainda que parcial, para os casos que se fizerem necessária, é cercado por incertezas, inseguranças e tensões que devem ser consideradas no momento de se planejar a retomada das atividades, em especial em relação à oferta de equipamentos de proteção individual; exames diagnósticos periódicos; rastreio dos comunicantes em caso de contaminação; e o acesso precoce à vacina para os profissionais.
Nesse sentido, quando do retorno das atividades presenciais no serviço, várias estratégias foram utilizadas, como o uso de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs); disponibilizar materiais para uso individual dos usuários; atendimento reduzido e distanciamento social, para garantir a segurança aos profissionais e usuários.
Na China, as autoridades governamentais divulgaram um documento de alerta acerca do fortalecimento do tratamento e da gestão de pessoas com transtornos mentais graves, durante a pandemia. Dentre as ações, pontua-se a adoção de medidas de prevenção de infecções nosocomiais pelas Instituições de saúde mental e o fornecimento de tratamento e cuidados comunitários para os usuários, no domicílio(16). Essas ações, adotadas na China, coadunam com as medidas utilizadas pelo serviço de saúde mental do município de Carmópolis, que adotaram as visitas domiciliares para acompanhamento dos usuários e buscaram estratégias preventivas à Covid-19, para o retorno das atividades presenciais no serviço.
As visitas domiciliares minimizam as questões relacionadas ao distanciamento e isolamento social, visto que, ao deslocar a equipe para a casa dos usuários, se faz um movimento simbólico que sinaliza responsabilização, por parte da equipe e da gestão do serviço, com as pessoas em tratamento e seu bem-estar. Trata-se de reforçar o vínculo, apesar da dificuldade de se realizar visita domiciliar, quando existe a necessidade de isolamento social. Nesse sentido, essa iniciativa é um indicativo de que o serviço tem clareza da importância do contato social para os usuários.
A literatura reforça que as orientações acerca das medidas de prevenção são essenciais para o gerenciamento do estresse causado pelas práticas de trabalho. Ademais, o provimento de EPI adequado, em quantitativo suficiente, associado às capacitações que sigam orientações de protocolos estabelecidos, pode favorecer para prevenir e reduzir o risco de infecção em trabalhadores de saúde(20).
Por fim, este estudo apresenta como limitações a não generalização dos seus resultados, tendo em vista que envolve dados referentes a um serviço específico. No entanto, os resultados deste estudo poderão contribuir para se aprimorar as práticas assistências do CAPS local e de serviços com perfil similar, além de provocar a realização de outros estudos que envolvam um número expressivo de serviços desta natureza, que permitam a generalização de seus resultados.
CONCLUSÃO
A pandemia de Covid-19 impulsionou diversas mudanças no cenário dos serviços de saúde. Este estudo evidenciou que a pandemia impactou na rotina de trabalho dos profissionais do CAPS do município de Carmópolis de Minas, com a suspensão temporária da maioria das atividades presenciais, inclusive atividades importantes de organização dos processos de trabalho, tal como as reuniões de equipe técnica e matriciamento às equipes da APS, o que acarretou sobrecarga de trabalho.
Entretanto, para assegurar o atendimento em saúde mental, a equipe técnica do serviço adaptou o processo de trabalho, de forma que os atendimentos se dessem de forma remota, respeitando o isolamento social imposto pela pandemia, de modo a prevenir possíveis contaminações.
Nessa perspectiva, verificou-se que as plataformas digitais foram importantes aliadas para a garantia de continuidade do cuidado, ao possibilitarem que os atendimentos psicoterapêuticos fossem realizados, mesmo que à distância. Todavia, os profissionais apresentaram dificuldades de adaptação à transição do atendimento presencial ao online e, neste sentido, a plasticidade cerebral de todos os envolvidos foi fundamental para se ajustarem à nova realidade, reconhecendo que as tecnologias de comunicação se constituíram ferramentas mediadoras das práticas assistenciais. Em adição, um importante fator extrínseco limitador ao processo de adaptação, naquele momento, foi o acesso limitado à internet.
No entanto, observou-se que apenas as visitas domiciliares e o atendimento virtual não foram suficientes para atender às demandas dos casos graves, que eram acompanhados pela equipe técnica do serviço. Assim sendo, se fez necessária a reorganização da estrutura física e dos recursos materiais disponíveis, de modo a preparar a equipe e o serviço para o retorno das atividades presenciais.
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Natália de Magalhães Ribeiro Gomes - Concepção do projeto; Obtenção de dados; Análise e interpretação dos dados; Redação textual; Aprovação final do texto a ser publicada; Responsabilidade pelo texto na garantia da exatidão e integridade de qualquer parte da obra.
Maria Odete Pereira - Concepção do projeto; Obtenção de dados; Revisão crítica do conteúdo intelectual; Aprovação final do texto a ser publicado.
Daniela Leite Garcia Silva - Obtenção de dados.
Rosiane Azevedo Faleiro Rodrigues - Obtenção de dados.
André Bárbaro Abrão - Análise dos dados; Revisão crítica do conteúdo intelectual.
Amanda Márcia dos Santos Reinaldo - Revisão crítica do conteúdo intelectual.
Submission: 04/08/2021
Approved: 08/18/2021