Enfermeiros militares na Força Auxiliar do estado do Rio de Janeiro: um estudo histórico
Margareth Teixeira de Souza de Almeida1, Tânia Cristina Franco Santos2, Antonio Jose de Almeida Filho2, Maria Angélica de Almeida Peres2, Pacita Geovana Gama de Sousa Aperibense2, Marcleyde Silva De Azevedo Abreu2
1 Military Fire Brigade of the State of Rio de Janeiro, RJ, Brazil
2 Federal University of Rio de Janeiro, RJ, Brazil
RESUMO
Objetivo: Analisar o processo de seleção da primeira turma de Oficiais Enfermeiros do Corpo de Bombeiros do Estado do Rio de Janeiro, realizado no período de 1992 a 1993. Método: Trata-se de uma pesquisa histórica, do tipo documental, cujas fontes históricas diretas foram documentos escritos relativos ao tema. Resultados: Foram oito vagas para oficiais enfermeiros, que se submeteram a um processo seletivo rigoroso, sendo selecionados cinco homens e três mulheres, após aprovação nas quatro etapas do concurso. Discussão: Integrar o Corpo de Bombeiros significava submeter-se às regras que o estruturavam, e para lograr êxito era necessária a atualização do habitus dos postulantes à patente de oficiais na Corporação. Conclusão: Enfermeiros foram selecionados dentro do rigor exigido pela Instituição, cujo domínio do conhecimento na área de enfermagem deveria caminhar pari passu com boas condições de saúde e condicionamento físico, atributos fundamentais no desempenho de um bombeiro militar.
Descritores: Enfermagem; Enfermagem militar; História da enfermagem.
INTRODUÇÃO
O Corpo de Bombeiros Militar, criado pelo Decreto nº 2.587, de 30 de abril de 1860, veio substituir o Corpo Provisório de Bombeiros instituído na Corte pelo Decreto nº 1.175, de 02 de julho de 1856. Sua finalidade principal era o serviço “extinção de incêndios”, podendo, se necessário, ser empregado como coadjuvante da Força Pública(1).
O Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro é Força Auxiliar e Reserva daquele Estado do Rio de Janeiro, e integra o Sistema de Segurança Pública e Defesa Social do Brasil. Pela Constituição Federal de 1988, seus integrantes passaram a ser denominados Militares do Estado, assim como os membros da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.
Em conformidade com a Lei nº 880, de 25 de julho de 1985, que dispõe sobre seu Estatuto, trata-se de uma instituição permanente, organizada com base na hierarquia e na disciplina, destinada aos serviços de prevenção e extinção de incêndios, de busca e salvamento, e a realizar perícia de incêndio e prestar socorro nos casos de inundações, desabamentos ou catástrofes, sempre que haja vítima em iminente perigo de vida ou ameaça de destruição de haveres(2).
Em 09 de julho de 1986, o Grupamento de Socorro de Emergência (GSE) foi criado pelo Comando Geral do Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro, com a finalidade de integrar e operacionalizar o Programa de Atendimento de Emergências Médicas em vias e logradouros públicos naquele Estado, tendo como principal missão o atendimento pré-hospitalar. Até a criação do GSE, os bombeiros socorriam a população sem preparo específico. O socorro de rua feito à população ficava a cargo dos Combatentes, que transportavam a vítima até o hospital mais próximo(3).
Considera-se atendimento pré-hospitalar (APH) móvel o socorro que procura chegar precocemente à vítima após ter ocorrido uma emergência médica, sendo necessário, portanto, prestar atendimento e/ou transporte adequado em um serviço de saúde devidamente hierarquizado e integrado ao Sistema Único de Saúde (SUS), como determina a Resolução nº 1.529/98 do Conselho Federal de Medicina (CFM)(4).
Na seleção da primeira equipe de GSE, que aconteceu em 1986, o concurso foi vedado para mulheres e para enfermeiros, uma vez que somente médicos e auxiliares de enfermagem do sexo masculino puderam compor a tripulação das ambulâncias que atuariam no socorro. Sendo assim, a equipe de saúde do Corpo de Bombeiros era composta por 180 médicos, 180 auxiliares de enfermagem, 180 motoristas e 45 mecânicos(5). Os enfermeiros que atuavam nas instituições de saúde da CBMERJ –o Hospital Central Aristracho Pessoa (HCAP) e as Policlínicas – eram servidores públicos civis cedidos pela Secretaria Estadual da Saúde.
Somente seis anos depois, com a publicação do Edital Nº 67 na edição do Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro (DOERJ, 08 de abril de 1992,(6) foi possível o ingresso na Corporação de enfermeiros de ambos os sexos na qualidade de militares. Essa abertura somente foi possível porque, dois anos antes, a Lei nº 1723, de 25 de outubro de 1990, havia fixado o efetivo do Corpo de Bombeiros do Estado do Rio de Janeiro, integrando enfermeiros ao Quadro de Oficiais BM de Saúde, distribuídos nas seguintes patentes: oito vagas para 2o Tenente BM, cinco vagas para 1o Tenente BM e duas vagas para Capitão BM, sendo esta a patente máxima a ser alcançada(7). Para médicos foram abertas oitenta vagas, em diversas especialidades e, para odontólogos, quinze vagas. Os médicos e odontólogos ingressariam como 1º Tenente, podendo chegar à patente máxima de Coronel. Portanto, dentro dos círculos hierárquicos da CBMERJ, essas duas profissões ocupavam postos de oficial superior(7). Já os enfermeiros ingressariam na condição de 2º Tenente, podendo chegar à patente máxima de Capitão, que, dentro do círculo hierárquico, corresponde a um oficial intermediário (Lei nº 1723, de 25 de outubro de 1990)(7). Tal patente, que correspondia à posição de um oficial subalterno, colocava os oficiais enfermeiros em desvantagem em relação aos médicos e dentistas – que, aliás, realizaram o mesmo concurso.
Essas considerações são importantes, uma vez que hierarquia e disciplina são a base institucional do CBMERJ, sendo a autoridade e a responsabilidade proporcionais à posição determinada pela patente. Quanto maior a patente, maior a reponsabilidade e a autoridade do militar. Vale ressaltar que, historicamente, ainda são reduzidas as posições de comando por enfermeiros de maneira geral, e não é diferente nas instituições militares(8-9).
Uma vez aprovados em todas as etapas do concurso, de caráter eliminatório – prova escrita, prova teórico-prática, exame médico e teste de aptidão física –, os candidatos a oficial enfermeiro ou enfermeira iniciariam o Estágio Probatório de Formação de Oficiais, para realizar o curso de formação para Bombeiro Militar. Ao término, os aprovados e classificados para as oito vagas viriam a ingressar na Corporação com o posto de 2º Tenente BM. A primeira turma foi nomeada em sessão solene, realizada em 15 de fevereiro de 1993.
O estudo se justifica pela necessidade de registrar o desenvolvimento profissional da enfermagem militar no Brasil, especialmente em uma Força Auxiliar do Exército que, nos anos anteriores a 1992, não contava com oficiais enfermeiros de ambos os sexos. O ingresso de oficiais do sexo feminino foi pouco expressivo em termos quantitativos, uma vez que das oito vagas oferecidas para ambos os sexos apenas três foram ocupadas por mulheres. Vale destacar que uma delas foi classificada em primeiro lugar.
Tendo em vista o contexto histórico exposto acima, o presente estudo tem como objetivo analisar o processo de seleção da primeira turma de Oficiais Enfermeiros do Corpo de Bombeiros do Estado do Rio de Janeiro (CBMERJ), realizado no período de 1992 a 1993.
MÉTODO
Pesquisa qualitativa, histórica, documental. O recorte temporal abarca os anos de 1992 e 1993, sendo que o marco inicial se refere ao ano de publicação do Edital e à realização das provas eliminatórias; e o marco final, ao ano em que ocorre o término do estágio probatório e a sessão solene de formatura dos aprovados e classificados.
As fontes históricas diretas utilizadas neste estudo foram documentos escritos, com destaque para o edital do concurso, os boletins da corporação, leis e decretos. Essas fontes foram localizadas no Quartel Central do Corpo de Bombeiros e no Hospital Central Aristacho Pessoa. A seleção das fontes nos arquivos mencionados ocorreu no período de outubro de 2018 a agosto de 2019, e foi realizada por uma das autoras, por ser oficial enfermeira do Corpo de Bombeiros do Estado do Rio de Janeiro e autora da dissertação de mestrado que originou o presente manuscrito. Após essa etapa, as fontes foram organizadas e classificadas, sendo aplicada a análise da adequação, de modo a avaliar a qualidade e a relevância das informações nelas contidas e determinar as evidências históricas, para posteriormente analisá-las de maneira crítica, inserindo-as no contexto em que foram produzidas. Tal análise se deu com base na literatura sobre o tema, localizada em livros e artigos, com ênfase no conhecimento produzido sobre enfermagem militar, especialmente em artigos que adotaram conceitos próprios para a metodologia histórica. Em conformidade com o método histórico, os achados foram analisados após o processo de classificação e organização(10). A confiabilidade dos resultados foi assegurada pela valorização do conjunto documental, típico da pesquisa histórica, e não apenas dos documentos isolados.
O estudo atendeu a todas as exigências formais contidas na Resolução nº 510, de 07 de abril de 2016, que dispõe sobre Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais.
RESULTADOS
Para fins de operacionalização do Programa de Atendimento de Emergência em Vias Públicas, o Corpo de Bombeiros do Estado do Rio de Janeiro criou, em 1986, o Grupo de Socorro e Emergência, composto por pessoal efetivo de seu quadro (Decreto nº. 9.053, de 09 de julho de 1986)(11).
Nesse contexto, teve início o ingresso de auxiliares de enfermagem, todos do sexo masculino, com a graduação de Praça. O enfermeiro não foi incluído no grupo, ficando o auxiliar de enfermagem subordinado ao oficial médico. A inserção do enfermeiro na CBMERJ com o posto de oficial, mais precisamente 2º Tenente BM, ocorreu em 1993, após realização de longo processo de seleção, iniciado em 1992, com a abertura do Edital Nº 67, de 8 de abril de 1992, publicado no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro, o qual demarcou o ingresso de enfermeiros de ambos os sexos no oficialato da Corporação.
As condições constantes no edital para os profissionais que almejassem ingressar no CBMERJ eram: ser brasileiro nato, ter no máximo 32 anos incompletos, diploma de enfermeiro e comprovação de inscrição no Conselho Regional de Enfermagem. No caso dos candidatos do sexo masculino, deveriam apresentar comprovação de serviço militar de 1ª ou 2ª Categoria, ou dispensa do serviço, constando o motivo. Também não poderiam estar sub judice ou ter condenação pela Justiça, seja a Comum, seja a Militar. Também era obrigatório, para ambos os sexos, estar com as obrigações eleitorais cumpridas(6). O edital determinava também altura mínima de l,65m para pessoas do sexo masculino e l,55m para o sexo feminino. Para pessoas com estatura de até 1,75m, o peso máximo deveria ser a soma do número acima de um metro acrescido de 10% desse valor; para pessoas com altura acima de 1,75m, o peso máximo deveria ser a soma do número acima de um metro acrescido de 15% desse valor(6).
As inscrições foram realizadas no período de 14 a 21 de abril de 1992 nos quartéis do Corpo de Bombeiros em diferentes cidades no Estado do Rio de Janeiro: Nova Iguaçu, Niterói, Barra Mansa, Angra dos Reis, Campos. No ato da inscrição, era preciso apresentar carteira de identidade, carteira do COREN ou franquia provisória dentro do prazo de validade, além do comprovante de pagamento da anuidade do COREN, referente ao ano de 1991. E também diploma reconhecido pelo MEC, com a habilitação registrada no verso ou declaração original da escola, constando obrigatoriamente a área de habilitação do candidato; e mais duas fotos 3X4, ficha de inscrição e pagamento da inscrição, que na época correspondia a 10% do soldo de 2º Tenente(6).
O concurso previa quatro etapas: prova escrita, prova teórico-prática, exame de saúde e teste de aptidão física. Todas as fases eram eliminatórias. Uma vez feita a inscrição, a primeira etapa seria a prova de conhecimento profissional. Neste caso, o exame intelectual segregaria aqueles candidatos mais bem preparados para compor o quadro de Saúde. Todos os candidatos tinham formação escolar e profissional como chancela inicial para a inscrição no concurso. Além disso, todo o investimento na acumulação de capital cultural e profissional certamente seria importante para a obtenção de melhores resultados e, por conseguinte, classificação no concurso.
A prova escrita foi composta por 100 (cem) questões de múltipla escolha, e para ser classificado, o enfermeiro deveria acertar 50% da prova, ou seja, 50 questões. Nesta etapa foram aprovados 233 candidatos, sendo 49 homens e 184 mulheres. O fato de 79% dos candidatos serem do sexo feminino pode ser explicado por tratar-se de profissão eminentemente feminina, mas também evidencia a preocupação feminina em adentrar espaços tradicionalmente consagrados aos homens(12).
A nota mais alta na prova escrita foi 76, e a mais baixa, 22. Os candidatos que tivessem dúvida em relação à nota da prova escrita poderiam requerer revisão da correção, mediante pagamento de 30% do valor da inscrição. A solicitação deveria ser encaminhada ao Diretor de Pessoal do CBMERJ, preenchendo e assinando um requerimento no qual era especificada a questão a ser submetida a revisão. Para solicitar a revisão, o candidato tinha o prazo de dez dias após a publicação de nota no Diário Oficial(6).
Segundo o edital, apenas 24 candidatos seriam convocados para a segunda etapa eliminatória, a prova teórico-prática. Os aprovados e não classificados ainda poderiam ser chamados, dentro do prazo máximo de 24 meses. E foi o que aconteceu, após um ano de formação dos primeiros oficiais enfermeiros(6).
Na prova teórico-prática, os candidatos deveriam mostrar suas habilidades nas áreas de Enfermagem de Urgência, Médico-Cirúrgica, Obstetrícia e Saúde Pública. Tais habilidades seriam pertinentes às atividades a serem desenvolvidas pelo enfermeiro e pela enfermeira, e seriam demonstradas tanto em pacientes quanto em manequins, dependendo da disponibilidade da ação. O tema seria escolhido a critério do examinador para todos os candidatos, que deveriam obter nota maior ou igual cinco(6).
O exame de saúde era uma etapa importante, pois limitações físicas e de saúde eram fatores incompatíveis com o trabalho de BM. Os exames foram realizados no Hospital do CBMER e em laboratórios credenciados. O eletroencefalograma era de responsabilidade do próprio candidato, e deveria ser realizado em instituição de sua escolha. Além da imagem, o laudo médico também era necessário para a aprovação do candidato.
Os candidatos aprovados no exame de saúde eram encaminhados para a etapa do Teste de Aptidão Física (TAF)(6). Os exercícios nesse teste atendiam ao requisito de qualidade física no atendimento pré-hospitalar. Homens e mulheres realizavam as mesmas atividades, porém com limites diferentes, e havia exercícios específicos para homens e mulheres(13). Tais diferenciações encontravam respaldo nas diferenças biológicas entre homens e mulheres.
Embora algumas atividades do TAF tenham sido distintas para ambos os sexos, o resultado final do processo seletivo demonstrou que, dos 24 candidatos, sendo 12 do sexo masculino e 12 do sexo feminino, apenas três mulheres compuseram o grupo de oito aprovados e classificados para realizar o estágio de formação e ingressar na Corporação. Esse resultado leva a acreditar que as diferenças biológicas entre homens e mulheres refletiram diretamente na aptidão física necessária ao trabalho de Bombeiro Militar, certamente consideradas relevantes para o quadro.
O estágio de formação ocorreu de segunda a sexta-feira, das 7:00 às 11:30, no período de 24 de agosto de 1992 a 15 de fevereiro de 1993. Os oficiais estagiários tiveram excelente desempenho. As estagiárias do sexo feminino se destacaram nas provas teóricas, nas de instrução de tiro com revólver calibre 38, obtendo o maior número de acerto no alvo, e na de instrução de salvamento de pessoas em aeronave helicóptero, realizada no CGOA(14).
DISCUSSÃO
O Edital Nº 67, publicado no DOERJ em 8 de abril de 1992, evidencia a longa e criteriosa seleção dos oficiais que, com suas qualificações profissionais, teriam a chancela para ingressar no Corpo de Bombeiros do Estado do Rio de Janeiro em 1992, especificamente no GSE, na qualidade de oficiais militares.
Em face da relevância do GSE, bem como de seu impacto na queda crescente dos índices de morbimortalidade, fazer parte de uma equipe de socorro de alto nível demandava uma qualificação profissional condizente com a natureza do trabalho, bem como estrutura física capaz de suportar condições adversas de trabalho, em relação ao ambiente e à exposição a fortes emoções. Isso ocorre porque os efeitos exercidos por uma nova experiência sobre o habitus dos postulantes às patentes de oficiais enfermeiros dependem da relação de compatibilidade prática entre essa experiência e as demais já integradas ao habitus. Por outro lado, no processo de reinterpretação seletiva resultante desta dialética, a eficácia informadora dessa experiência nova tende a diminuir continuamente(15).
Integrar o CBMERJ significava submeter-se às regras que o estruturavam, e o êxito neste intento demandava a atualização do habitus dos postulantes à patente de oficiais na Corporação. Um indivíduo que não tenha tais características, ou que não consiga atualizar o habitus para o convívio em um novo grupo será excluído do mesmo por lhe faltar o sentido de pertencimento a esse grupo. O não enquadramento resulta no desligamento desse indivíduo. Uma vez que essa ligação não é consciente, por mais que se tente fazer parte de um campo determinado, isso não acontecerá apenas pela vontade: se não existirem disposições favoráveis, o desligamento será automático, devido à dificuldade de incorporação dos princípios que regem esse campo determinado(16).
A aceitação tácita das condições para o ingresso no CBMERJ teve início com a abertura do edital, mediante a inscrição no concurso. Trata-se de um concurso impregnado de significados, pois pela primeira vez, em mais de um século de existência da Corporação, foi oferecida às enfermeiras a oportunidade de fazer parte do quadro de Saúde da Corporação na qualidade de oficiais, em aparente igualdade com os homens – diferentemente do concurso ocorrido em 1986, quando somente os candidatos do sexo masculino puderam participar do concurso. Tal situação havia ensejado reações de um grupo de médicas que almejavam concorrer a uma das 180 vagas oferecidas a candidatos do sexo masculino.
O concurso de 1992 atraiu um total de 3.180 candidatos, sendo 2067 mulheres – ou seja, quase 65% dos inscritos(17). Embora a maioria dos concorrentes fosse do sexo feminino, os militares do sexo masculino continuaram sendo maioria no quadro mesmo após o concurso. Ainda assim, no primeiro curso de formação de oficiais femininas, com apenas nove médicas, uma odontóloga e três enfermeiras, essas profissionais se destacaram em aulas e estágios, superando as expectativas em relação ao sexo feminino, cujas diferenças biológicas eram justificativas naturais para a interdição de mulheres em espaços sociais tradicionalmente consagrados aos homens(14).
Embora com o currículo fechado e instrutores escalados (todos do sexo masculino) para ministrar as aulas durante o estágio de formação, o Coronel médico BM Portes solicitou a cessão da Capitão Tenente Helsen (enfermeira) do Ministério da Marinha para participar estágio, na qualidade de instrutora, ensinando especificamente preceitos e rotinas militares, de modo a contribuir para o processo de incorporação do capital militar pelas aspirantes ao oficialato(14).
Na sessão solene de formatura, realizada no dia 15 de fevereiro de 1993, o excelente desempenho das mulheres no estágio de formação foi destacado no discurso do Coronel Médico Jorge Alberto Soares de Oliveira (Diretor de Saúde do CBMERJ, afirmando que as mulheres estavam rompendo uma barreira de muitos anos de participação exclusivamente masculina(14). Proferidas por uma autoridade militar em uma sessão solene de formatura, as palavras alusivas ao excelente desempenho das oficiais no estágio de formação – ou seja, em um rito de comunicação de uma nova identidade – têm a magia social de dar existência à pessoa ou ao grupo, uma vez que a nomeação bem-sucedida é proporcional à autoridade daquele que enuncia as palavras e da plateia à qual são dirigidas(15), uma vez que o poder sobre o grupo reside na objetivação do fato levada a cabo pela nomeação pública.
Não obstante a inegável conquista de ingressar em um espaço historicamente masculino, o resultado final do concurso, com apenas três mulheres em oito aprovados – apesar da predominância significativa de mulheres inscritas e aprovadas na primeira etapa, de caráter eliminatório, 65% e 79%, respectivamente – reafirma as relações de desigualdade entre homens e mulheres. O resultado ressalta também relações de poder, as quais são derivadas de construções simbólicas, calcadas nas diferenças entre os gêneros, certamente refletindo precauções e preocupações pela possibilidade de efeitos perturbadores, uma vez que a enfermagem, uma profissão com predominância feminina, está agora inserida em um ambiente militar de prevalência masculina.
Ademais, é pertinente ressaltar que a natureza e o rigor do processo seletivo dos futuros oficiais enfermeiros visavam a seleção de candidatos aptos à incorporação das práticas militares que, em última instância, representavam o aprendizado de um comportamento adequado à nova posição profissional e social. Tal incorporação evidenciava a necessidade de internalização de uma prática calcada nos propósitos dos espaços militarizados, fundados nos valores da disciplina e da hierarquia(18).
CONCLUSÃO
A criação do GSE em 1992 foi um fator determinante para a criação de um quadro de oficiais enfermeiros no CBMERJ, ainda que com um quantitativo pouco expressivo na primeira seleção. Para os oito enfermeiros selecionados dentro do rigor exigido pela Instituição, o domínio do conhecimento na área de enfermagem deveria caminhar pari passu com boas condições de saúde e condicionamento físico, uma vez que tais atributos são fundamentais para o desempenho das atividades de um bombeiro militar.
Com a nova composição do quadro da Saúde, o CBMERJ teve que adaptar o espaço consagrado aos homens durante 136 anos. Assim, até mesmo a estrutura física do quartel foi modificada para que fosse possível integrar mulheres, sem perder a identidade de Bombeiro Militar.
A divulgação do ingresso de mulheres no CBMERJ, em 1992, congestionou os telefones da corporação, buscando informações sobre a admissão de mulheres combatentes no seu quadro. Certamente, tal situação foi ensejada pelo ineditismo do fato, mas também porque fazer parte do CBMERJ simboliza a conquista de uma capital simbólico – reputação, prestígio, fama – que, por sua vez, gera mais capital simbólico, uma vez que ser um bombeiro militar significa ter credibilidade perante a sociedade.
REFERÊNCIAS
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Recebido: 16/01/2021
Revisado: 03/03/2021
Aprovado: 11/03/2021