Rumo a uma nova geração de ensaios clínicos: pesquisa-ação participativa em saúde

 

 

Irma da Silva Brito1

 

 

1 Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, Portugal

 

 

A abordagem de Pesquisa-ação Participativa em Saúde (PaPS) é uma proposta promissora para uma nova geração de ensaios clínicos, sobretudo em estudos de base comunitária. Por isso iremos refletir sobre a sua relevância e como aumentar o uso da PaPS na academia e outros contextos.

Está por demais reconhecido que os ensaios clínicos eficientes e eficazes (desenho experimental) são os principais meios de fornecer evidência científica para avalizar intervenções de saúde ou sociais. Mas constata-se que os ensaios clínicos controlados e randomizados (RCT) parecem não ser eficazes para esse fim, sobretudo em contextos como: comunidades, escolas ou populações empobrecidas (Rootman et al., 2001). As fragilidades mais comuns nesses estudos de RCT foram: falha de atribuição aleatória verdadeira, falta de dupla ocultação e escassez na análise de abandono do estudo. Ora para que seus resultados sejam válidos, os RCT devem empregar métodos rigorosos que possam alcançar e preservar a comparabilidade dos grupos de intervenção e controle e evitar ameaças potenciais à validade. O processo de ocultação de alocação mantém os investigadores, os participantes e avaliadores de resultados inconscientes da futura atribuição. Este pressuposto é impossível de garantir quando se trata de grupos comunitários como escolas ou bairros. Outra dimensão é a utilidade e transferibilidade do conhecimento. As propostas de RCT são feitas pelos pesquisadores e beneficiam apenas o grupo experimental enquanto o grupo controle é monitorado com poucas ou nenhumas intervenções. E, após o término da pesquisa, em geral, não há fundos e recursos para expandir a intervenção, causando deceções na população-alvo e nos pesquisadores. Várias pesquisas estão já a estudar os efeitos das características do estudo em diferentes intervenções, configurações e resultados e poderão fornecer mais evidência sobre a temática dos RCT.

A PaPS está a ser difundida mundialmente e é considerada como um meio para alcançar e produzir evidência sobre transformações positivas na sociedade, no interesse da saúde das pessoas: Por exemplo, alterando a forma como os profissionais de saúde são formados, a forma como as instituições de cuidados de saúde trabalham, ou como são concebidas as políticas que afetam a saúde das comunidades. Considera-se uma alternativa para novas metodologias de pesquisa experimental pois abordam os desafios atuais como: o uso de tecnologias emergentes de saúde e estratégias de envolvimento de pacientes/comunidade para cocriarem produtos úteis; a gestão dos dados; a emergência da epidemiologia participativa.

O pressuposto principal da PaPS é que a participação daqueles cuja vida ou trabalho são o tema do estudo, o que afeta todos os aspetos da pesquisa. O envolvimento dessas pessoas no estudo é um fim em si mesmo pois reconhece o valor da contribuição de cada pessoa para a cocriação de conhecimento, num processo que não só é prático, mas também colaborativo e de empoderamento (Onwuegbuzie et al., 2009). A PaPS envolve as pessoas cuja experiência de vida é o tópico da pesquisa e, por isso, participam no desenho de estudo, na análise, na implementação da pesquisa-ação e disseminação de resultados (ICPHR, 2013). Então a PaPS produz conhecimento e ação que podem dar uma contribuição única ao abordar questões crescentes relacionadas à utilidade da pesquisa, iniquidade em saúde e aumento do impacto nos diferentes tipos de pesquisa experimental. A PaPS incorpora métodos qualitativos e quantitativos, dependendo do tipo de dados requeridos, o que geralmente significa não conformidade com os padrões metodológicos tradicionais, estabelecidos para os ensaios clínicos de pesquisa em saúde. Mas observa-se na PaPS a adesão a critérios de validade específicos de abordagens participativas:

Validade Participativa. A medida em que todas as pessoas interessadas são capazes de tomar parte ativa no processo de investigação em toda a extensão possível;

Validade Intersubjetiva. A medida em que a pesquisa é vista como sendo credível e significativa pelas partes interessadas segundo uma variedade de perspetivas;

Validade Contextual. A medida em que a pesquisa se relaciona com a situação local;

Validade Catalítica. A medida em que a pesquisa é útil em termos de apresentar novas possibilidades para a ação social;

Validade Ética. A medida em que os resultados da investigação e as mudanças exercidas sobre as pessoas pela pesquisa são sólidas e justas;

Validade Empática. A medida em que a investigação tem aumentado a empatia entre os participantes.1

 

Aplicando a PaPS para produzir evidência científica, pode-se desenvolver projetos experimentais inovadores. Os ensaios clínicos de PaPS assumem estudos sobre desempenho e melhor controle de problemas ou condições de saúde complexas, assumindo o envolvimento e maximizando a participação daqueles cuja vida ou trabalho é o objeto da pesquisa. Juntos, mapeiam problemas ou condições e iniciam processos participativos de recolha de dados para cocriar e validar produtos úteis e/ou reorganizar serviços de saúde/sociais. Então, também irão medir o efeito dessas intervenções e discutir os resultados obtidos. Estudos de caso único ou de etapas escalonadas (steeped wedge) podem fornecer evidências sobre: intervenções centradas nas pessoas e envolvimento na gestão de dados; impacto sustentável no estilo de vida e indicadores de saúde/sociais; impacto sustentável nos serviços de saúde/sociais; transferência rápida e sustentável de conhecimento; evidência científica para garantir intervenções em saúde ótimas. Mas o mais importante é que

A pesquisa não é feita "nas" pessoas como sujeitos passivos que fornecem "dados", mas "com" elas para fornecer informações relevantes no sentido de melhorar as suas vidas. O processo de pesquisa é visto como uma parceria entre as partes interessadas, que podem incluir pesquisadores académicos; profissionais das áreas de saúde, educação e bem-estar social; membros da sociedade civil; decisores políticos e outros. Para ser chamada de participativa, as pessoas cuja vida ou trabalho é o tema da pesquisa têm de participar ativamente no processo de pesquisa.1

 

Aumentar a participação das pessoas afetadas pelos problemas de saúde, tem levado a melhorias, por exemplo, em relação ao recrutamento e retenção de participantes (menor perda de sujeitos nas medições sucessivas), mais qualidade dos dados, na análise e interpretação dos resultados e na divulgação das evidências. Ao aumentar o número de projetos de PaPS, esperamos estabelecer uma nova metodologia de ensaios clínicos de base comunitária e melhorar a relevância, a qualidade e a eficiência da pesquisa participativa. A Colaboração Internacional para Pesquisa-ação Participativa em Saúde (ICPHR) opera desde 2009 e apoia os pesquisadores de PaPS a garantir a sustentabilidade dos seus projetos. Desde então, o ICPHR também lida com o desafio do reconhecimento de PaPS de modo a que seja mais usado na academia e fora dela.

A pesquisa participativa não é um método de pesquisa, mas uma abordagem de pesquisa que inclui um processo relacional através do qual o novo conhecimento é produzido coletivamente, e não por apenas uma equipe de investigadores. O objetivo desse novo conhecimento é provocar mudanças ou ações, enquanto o processo de fazê-lo é um contínuo de aprendizagem, reflexão e ação. Significa envolver pessoas cujas vidas ou trabalho estão no tópico da pesquisa, na tomada de decisões-chave para produzir mudança ou ação. Então elas definem qual deve ser o foco da pesquisa, quais são as questões de pesquisa, como responder a essas questões, que informações coletar, como analisar essas informações, como compartilhá-las e que alteração ou ação deverá ser tomada como resultado desse processo. Então o desenho da pesquisa desenvolve-se em conversação com as pessoas. Embora se possa identificar etapas principais de um processo de pesquisa participativa de maneira linear, essas etapas não são desenvolvidas dessa maneira. É isso que torna esse tipo de pesquisa tão rico, empolgante e abrangente, e o reconhecimento da validade deste fluxo permitirá estabelecer novas metodologias de ensaios clínicos (desenho experimental) com especial relevância para a pesquisa baseada na comunidade.

Para provar isso, consideramos o caso das pessoas que vivem com doença crônica porque elas representam um grupo de patologias com uso intensivo de recursos e elevado custo para o sistema de saúde. As contínuas lacunas na gestão de doenças crônicas e a persistente fragmentação no sistema de saúde, gera a necessidade de novas estratégias para promover modelos de assistência em parceria. Muitos programas abordam essa temática, mas revelam-se abordagens desintegradas e isoladas, com alta variabilidade de contextos e culturas, muitas vezes concentrando-se em um contexto ou doença específica. Essa infinidade de atividades não são avaliadas e demonstram valor, efeitos e segurança pouco claros. Aplicando a PaPS com o objetivo criar evidência sobre intervenções participativas pode-se obter um melhor controle de problemas ou condições crónicas, mas também outros resultados. A participação de pessoas que vivem com doença crónicas permitirá: mapear necessidades e recursos (epidemiologia participativa), priorizar problemas para resolver, cocriar e validar intervenções que mobilizam pessoas e recursos para implementar mudanças comportamentais e organizacionais. Essa mobilização pode aumentar a conscientização e atitudes positiva desses pacientes, suas famílias e profissionais de saúde sobre estilo de vida saudável, gestão do processo saúde/doença e controle de incidentes agudos relacionados a doenças crônicas. Ao mesmo tempo, poderia aumentar o relacionamento sustentável entre pacientes e profissionais de saúde/sociais para evitar situações de crise e promover um atendimento integrado. A replicação de projetos de PaPS em diferentes contextos produzirá dados robustos e abordagens universais, convergindo para intervenções mais seguras no autogerenciamento de condições crônicas, por exemplo.

A PaPS traz o conceito de epidemiologia participativa como nova metodologia que simplifica a mensuração de indicadores quantificáveis, garantida pela participação de pacientes e familiares e profissionais de saúde em todas as fases do estudo. Nos estudos de intervenção essa abordagem participativa é consentânea com o atendimento centrado no paciente, assegurando sua adesão voluntária, reduzindo a complexidade operacional, assegurando transparência e confiança, acompanhando o senso de relevância na ótica do paciente.

Aplicando a abordagem participativa, reuniremos todas as partes interessadas que, sendo apoiadas por soluções digitais, podem levar à produção de metadados e eliminar as barreiras de comunicação em diferentes níveis de atenção (hospital, atenção primária à saúde e comunidade).

Para asseverar a comparabilidade dos dados coletados em diferentes clusters, deve ser definido um padrão comum, com o qual todos os participantes concordam. Esse padrão deve ser baseado em um consenso para recolha de dados e a análise dos resultados. E esse é o principal desafio do pesquisador de PaPS: garantir a participação. Aumentando a competência cultural ou, como afirma Campinha Bacote (1991), a mediação intercultural ou a competitividade cultural, o pesquisador viabiliza a cocriação de produtos úteis, a sua validação imediata e a transferência sustentável de conhecimento. Além de envolver as pessoas e suas famílias, muitas vezes consideradas marginalizadas, envolve pessoas com problemas na pesquisa sobre esses tópicos, envolve profissionais de saúde na pesquisa de melhorias nas práticas ou condições, envolve cidadãos locais na pesquisa de ambientes mais seguros e saudáveis para a saúde. A participação torna-se, portanto, o principal método de pesquisa e significa que os métodos de pesquisa qualitativa e quantitativa existentes precisam ser adaptados para promover a participação.

Este trabalho inovador contribuirá em grande parte para uma melhor compreensão dos problemas de saúde/sociais, mas pode conter várias limitações importantes, a maioria metodológica e ética. Dai que a competência em pesquisa e as considerações interdisciplinares devem ser tomadas em consideração, quando se torna relevante aplicar a PaPS para passar de intervenções focadas nos serviços de saúde para intervenções focadas em pessoas cuja vida/trabalho é o foco de pesquisa e do desenvolvimento de produtos.

 

REFERÊNCIA

 

  1. International Collaboration for Participatory Health Research (ICPHR). Position Paper 1:What is Participatory Health Research? [Internet]. Berlin: International Collaboration for Participatory Health Research. 2013 Maio [cited 2020 maio 12]. Available from: http://www.icphr.org/position-papers--discussion-papers/position-paper-no-1