O acolhimento na rede de atenção psicossocial: estudo descritivo-exploratório
Aline Barros de Oliveira1, Valquiria Farias Bezerra Barbosa1, Ana Carla Silva Alexandre1, Silvana Cavalcanti dos Santos1, Dária Catarina Silva Santos1
1 Instituto Federal de Pernambuco, PB, Brasil
Objetivo: Descrever as práticas e estratégias de acolhimento aos usuários em processo de adoecimento mental desenvolvidas na Rede de Atenção Psicossocial. Método: Estudo descritivo, exploratório, qualitativo, realizado no período de dezembro de 2017 a fevereiro de 2018 com 10 profissionais de saúde dos serviços da Rede de Atenção Psicossocial de um município do Estado de Pernambuco. Os dados foram coletados através de entrevistas semiestruturadas, observação não participante e registros em diário de campo e analisados segundo a análise textual discursiva. Resultados: As práticas de acolhimento predominantes foram a escuta qualificada, o estabelecimento de vínculo e o diálogo. Evidenciou-se consonância com a Política Nacional de Humanização e com o modelo de atenção psicossocial. Conclusão: A formação permanente permite que não sejam reproduzidas práticas vinculadas ao modelo biomédico. As ferramentas de escuta qualificada e diálogo são primordiais para conhecer a trajetória do usuário e, com isso, estabelecer um vínculo com o mesmo.
Descritores: Acolhimento; Serviços de Saúde; Saúde Mental; Desinstitucionalização.
O acolhimento é uma prática em saúde compreendida como forma de se comunicar, escutar e receber as demandas da população auxiliando na busca de resolutividade desde a recepção, marcação, atendimento, até o encaminhamento ou retorno. Desta forma, o acolhimento vai além do sentido de recepção e encaminhamento, pois nele está incluído todo o processo terapêutico do indivíduo(1).
Enquanto diretriz operacional, o acolhimento envolve a inversão da lógica de organização e funcionamento dos serviços de saúde. Tem por base os princípios de universalidade de acesso, resolução das demandas de saúde e mudança dos processos de trabalho. Objetiva alcançar a qualificação da relação entre o profissional e o usuário na construção de vínculo. No que se refere ao modo de se trabalhar com as demandas de saúde do usuário, evidencia-se nova forma de agir segundo a clínica ampliada, em que o cuidado é centrado no usuário como ser integral e não somente na sua patologia(2).
A Política Nacional de Humanização (PNH) ou HumanizaSUS, reformulada em 2003 pelo Ministério da Saúde (MS), intensificou os investimentos na humanização das práticas de gestão e de atenção, dos modos de gerir e de cuidar no âmbito dos serviços da rede do Sistema Único de Saúde (SUS)(3).
Com a implementação da PNH, consolidaram-se marcas específicas como a redução das filas e do tempo de espera; ampliação do acesso com atendimento acolhedor e resolutivo; conhecimento dos usuários em relação aos profissionais e serviços de saúde responsáveis pela referência no território; garantia de gestão participativa das unidades incluindo seus profissionais e usuários, bem como educação permanente aos profissionais(4).
A reforma da atenção psiquiátrica teve como marco a Lei nº 10.216/2001, que dispõe sobre os direitos dos portadores de transtornos mentais, como também redirecionou o modelo assistencial em saúde mental. Proporcionou as condições para a composição de uma Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), composta prioritariamente por serviços substitutivos com base comunitária e de caráter territorial(5).
A ausência de acolhimento do usuário com adoecimento mental, pelos profissionais de saúde que atuam nos serviços da atenção primária, estabelece dificuldades para garantia da universalidade de acesso e integralidade do cuidado que podem ser identificadas em vários municípios, sejam eles de pequeno, médio ou grande porte. Com frequência, estão relacionadas à inexistência de capacitação dos profissionais para cuidar desse público(1).
Os usuários com adoecimento mental têm a Estratégia Saúde da Família (ESF) como porta de entrada para o sistema e ordenadora do cuidado; no entanto, o acolhimento deve existir em todos os dispositivos da rede de forma integral e resolutiva. Assim, justifica-se a relevância da realização desse estudo, com vistas a fortalecer os ideais da PNH e proporcionar reflexão sobre o ato de acolher que reforça a postura profissional frente ao cuidado ao indivíduo em processo de adoecimento mental.
Diante do exposto, o estudo teve como objetivo descrever as práticas e estratégias de acolhimento aos usuários em processo de adoecimento mental desenvolvidas na RAPS.
MÉTODO
Trata-se de um estudo descritivo e exploratório, de abordagem qualitativa, que foi desenvolvido nos pontos de atenção da RAPS do município de Pesqueira, Estado de Pernambuco, Brasil, entre dezembro de 2017 e fevereiro de 2018.
A amostra do estudo foi composta por profissionais de saúde que atuavam em uma ESF, dois Núcleos Ampliados de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF – AB), um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) II, um Centro de Especialidades e no hospital de média complexidade do município.
Os participantes da pesquisa foram selecionados por conveniência. Os critérios de inclusão foram: realização de atendimento a usuário em adoecimento mental no período de coleta de dados; atuação no serviço há pelo menos 6 meses, pois sugere-se que nesse período o profissional esteja mais bem inserido no processo de trabalho, além de possivelmente ter uma melhor vinculação com os usuários. Foram incluídos dez profissionais de saúde, dois de cada serviço, com exceção dos NASF’s – AB, nos quais foi selecionado um profissional de cada unidade.
Foram excluídos os profissionais que não estivessem em pleno exercício de suas atividades laborais devido a gozo de férias, licença médica ou maternidade. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação de Hematologia e Hemoterapia de Pernambuco, e recebeu parecer favorável nº 1.803.905.
A coleta de dados se deu mediante entrevistas individuais semiestruturadas, observação não participante e registros em diário de campo. Os roteiros de entrevista e de observação foram elaborados com base no referencial teórico da PNH. Foram submetidos a uma pré-testagem, a fim de analisar a clareza da linguagem e a reprodutibilidade durante a aplicação a profissionais de saúde da rede SUS que não compõem a amostra do estudo.
O roteiro de entrevista semiestruturada foi composto por questões que versavam sobre dez dimensões relacionadas à compreensão dos profissionais acerca do acolhimento, incluindo-se a forma com que o usuário era acolhido, aspectos gerais dessa prática e condições sociodemográficas (função, tempo de serviço, formação profissional). O roteiro observacional foi composto pela dimensão de como o usuário era acolhido.
Quanto à prática do acolhimento, em ambos os instrumentos havia um checklist composto por sete aspectos a serem considerados, a saber: Chama-o pelo nome? Estabelece diálogo com ele? Esclarece o procedimento que será realizado? Procura saber como está? Esclarece dúvidas do usuário/família? Utiliza linguagem simples e clara? Preocupa-se com o próximo atendimento? Esses parâmetros foram agrupados de acordo com as respostas fornecidas pelos entrevistados e a observação da pesquisadora, e considerados como comportamento adequado, parcialmente adequado e inadequado com relação ao atendimento ao usuário do SUS.
A coleta de dados no CAPS II, nos NASF’s - AB e na ESF se deu mediante agendamento prévio com a equipe. No CAPS II e em um NASF - AB a observação aconteceu no próprio CAPS durante a assistência prestada pelos profissionais aos usuários, e logo após foi aplicada a entrevista. Na ESF, a observação de um atendimento ocorreu no próprio serviço; já a observação seguinte, assim como aquela realizada junto à equipe do outro NASF – AB, se deram por meio de visita domiciliar. No serviço hospitalar e no Centro de Especialidades foi observado o processo de trabalho da equipe enquanto aguardava-se o atendimento de um usuário com adoecimento mental. Ao término da assistência prestada foram aplicadas as entrevistas.
Em todos esses contextos as observações dos atendimentos e as entrevistas só foram desenvolvidas após a leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido por ambos, usuário e profissional de saúde.
Os dados levantados mediante a realização das entrevistas e observação não participante foram complementados com registros do diário de campo da pesquisadora. Para preservar o anonimato dos profissionais entrevistados, foram utilizados códigos para identificá-los no texto (E1, E2...).
A análise dos dados ocorreu por meio do software ATLAS.ti® versão 8 free demo. A análise do conteúdo das entrevistas foi desenvolvida pelo método de análise textual discursiva, que abrange elementos da análise de conteúdo tradicional e da análise do discurso, representando um movimento interpretativo de caráter hermenêutico(6). A primeira etapa compreendeu o processo de desmontagem dos textos, seguido pelo procedimento de codificação dos dados. Os códigos foram utilizados como dispositivos de classificação em níveis diferentes de abstração, a fim de criar conjuntos de unidades de informação relacionados para fins de comparação. A última etapa envolveu a formação de redes de sentido entre os códigos que permitiram a formulação de categorias analíticas(6).
Foi possível elaborar 8 códigos que compuseram a rede de sentidos (Network View), os quais expressam relações discursivas sobre as práticas e estratégias de acolhimento como se pode mencionar: “Conceito de acolhimento”; “Práticas e estratégias de acolhimento”; “Aspectos importantes no atendimento”; “Avaliação do atendimento”; “Aspectos limitantes do atendimento”; “Parcerias entre os pontos de atenção da RAPS”; “Conhecimento dos usuários sobre serviços e profissionais da RAPS” e “Vínculo profissional/usuário”.
Posteriormente, os códigos foram agrupados para formar as seguintes categorias analíticas: “I. Conceito de acolhimento”, “II. Práticas e estratégias de acolhimento” e “III. Gestão do cuidado”. Essas categorias foram utilizadas como eixos temáticos para composição do metatexto que elucida novas relações discursivas entre os diferentes códigos(6).
Dos dez profissionais participantes da pesquisa, uma era Agente Comunitária de Saúde (ACS), uma enfermeira, uma fisioterapeuta, dois médicos, uma nutricionista, duas psicólogas e duas técnicas em enfermagem. Apenas três possuíam especialização, dois em saúde mental e um em medicina de família e comunidade; quatro fizeram cursos de curta duração em saúde mental e os outros três não possuem nenhuma formação complementar em saúde mental. O tempo que desempenham a função variou entre 2 a 35 anos.
Conceito de acolhimento
Foi predominante a concepção de acolhimento como relação de compromisso, vínculo e confiança entre os profissionais dos serviços de saúde e o usuário:
[...] é você ter um olhar bastante receptivo, carinhoso e afetuoso com a pessoa que tá chegando pra você; procurar deixá-lo à vontade pra ele se colocar e tentar passar confiança pra ele, que você tá ali pra recebê-lo, você só tá ali única e exclusivamente para recebê-lo e pra mais nada, que o espaço é todo dele, que a atenção é toda dele, que ele é a prioridade. (E3)
No entanto, o conceito acolhimento muitas vezes é confundido com a recepção ou triagem do usuário no serviço de saúde:
[...] é o primeiro contato que eu tenho com o paciente para poder determinar que tipo de serviço eu vou poder oferecer a essa pessoa [...] porta de entrada, absorção do serviço de saúde com a comunidade ou com o indivíduo. (E7)
Práticas e estratégias de acolhimento
A fim de analisar de que forma o usuário em processo de adoecimento mental era acolhido pelo profissional de saúde na RAPS, houve um agrupamento das perguntas para servirem de parâmetros comparativos entre o comportamento durante o atendimento ao usuário do SUS e a resposta do profissional participante da pesquisa à entrevista (Figura 1).
Participante da Pesquisa |
Desenvolve práticas de acolhimento? |
|
Resposta do entrevistado |
Observação da pesquisadora |
|
E1 |
SIM |
SIM |
E2 |
SIM |
SIM |
E3 |
SIM |
PARCIALMENTE |
E4 |
SIM |
NÃO OBSERVADO |
E5 |
SIM |
SIM |
E6 |
SIM |
PARCIALMENTE |
E7 |
SIM |
SIM |
E8 |
SIM |
NÃO |
E9 |
SIM |
SIM |
E10 |
SIM |
PARCIALMENTE |
Figura 1 - Desenvolvimento de práticas de acolhimento pelos profissionais de saúde da RAPS ao usuário com adoecimento mental. Pesqueira, PB, Brasil, 2018
Fonte: Elaborado pelos autores, 2018.
Entre os participantes da pesquisa, cinco tiveram sua percepção condizente com suas atitudes em todos os aspectos observados e registrados no checklist, tendo seu comportamento sido considerado como adequado.
De outro modo, três participantes tiveram sua conduta parcialmente condizente com sua resposta. Não se pôde observar a profissional E3 em alguns aspectos, como: se a profissional esclarecia o procedimento que era realizado, se respondia às dúvidas do usuário ou do familiar e se ela se preocupava com o próximo atendimento. Esses aspectos não foram observados durante o momento da consulta em sala, em razão do sigilo profissional. Sendo assim, os outros fatores foram observados na recepção.
A não obtenção desses dados reflete o Ethos da profissional, bem como da pesquisadora, uma vez que o sigilo profissional foi respeitado e associado aos princípios bioéticos da autonomia e não maleficência.
A profissional E6 também teve sua conduta parcialmente correlata em relação à sua resposta: não chamou o usuário pelo nome e nem procurou saber como ele estava. E por fim, a profissional E10 não chamou o usuário pelo nome, não procurou saber como ele estava e nem esclareceu dúvidas do usuário ou familiar.
Apenas E8 não teve a postura condizente com suas respostas em quase todos os aspectos, tendo seu comportamento sido considerado como inadequado pois apenas procurou saber como a usuária se sentia enquanto administrava a medicação. Esse fato, observado na assistência prestada pela profissional, não está de acordo com a PNH nem com os princípios éticos que regem as profissões da área de saúde. No entanto, muitas vezes essas atitudes são potencializadas pela alta demanda do serviço em que ela atua, o que, ao lado do cansaço profissional, ocasionam prejuízos para uma assistência qualificada.
Na fala a seguir observa-se que, na prática do acolhimento, é dada toda a ênfase ao usuário, sem excluir a família como participante direta no seu processo de cuidado:
[...] a gente senta, a gente escuta o usuário, a gente escuta o familiar, às vezes o usuário não quer vir, mas a família vem e a gente já acolhe a família [...]. (E2)
A prática de acolhimento mais referida pelos participantes foi a escuta:
[..] escuta sem julgamentos e não enfatizar diagnóstico [...] e sim no cuidado com a pessoa, que cada pessoa tem uma estratégia diferente de atuação e dentro do SUS a gente entende como PTS (Projeto Terapêutico Singular) né?! Pra gente isso também precisa ser importante e acho que é muito fundamental a interdisciplinaridade [...]. (E4)
A escuta é uma ferramenta primordial, pois a partir dela se traça um plano de intervenção para o usuário, como também se estabelece o diálogo e o vínculo entre o mesmo e o profissional de saúde.
O cuidado da profissional E4 é centrado na pessoa com adoecimento mental e suas singularidades; nesse sentido, a mesma citou o PTS, instrumento da clínica ampliada, uma das diretrizes da PNH.
O vínculo profissional/usuário foi observado em muitos atendimentos, a exemplo da assistência prestada por E9. A profissional já tinha o vínculo estabelecido com a usuária e fez diversos questionamentos sobre a situação de saúde, realização de exercícios físicos que a mesma tinha proposto no último atendimento, pediu para ver os exames e a encaminhou para outro serviço, com esclarecimento de dúvidas e auxiliando-a na reinserção social pós trauma sofrido.
O estudo evidenciou que a postura da participante caminha em conjunto com a PNH e com o modelo de atenção psicossocial, uma vez que ouve a usuária sem julgamentos, esclarece dúvidas existentes sobre serviços e não enfatiza a patologia, vendo a usuária como um todo e respeitando sua autonomia.
A gestão do cuidado será analisada sob os aspectos limitantes do atendimento, parcerias entre os pontos de atenção da RAPS e conhecimento dos usuários acerca dos serviços e profissionais da RAPS.
A profissional E1 foi acompanhada durante consultas que eram iniciadas com questionamentos de como o usuário estava se sentido e outros decorrentes dessa abordagem inicial. Em sua maioria, eram concluídas com a prescrição de medicações, uma vez que os usuários iam justamente com esse intuito. A demanda excessiva de usuários e o acúmulo de vínculos de trabalho podem ter comprometido a qualidade das consultas, pois foram realizadas de maneira apressada, de forma automática.
Quanto à questão dos aspectos limitantes do atendimento, foi mencionado que a rotatividade de profissionais compromete o estabelecimento de vínculo, como no caso da profissional E9 que iria mudar de equipe, prejudicando a continuidade do cuidado. No entanto, houve predomínio de questões como falta de infraestrutura e falta de recursos materiais. Isso pode ser evidenciado nas falas a seguir:
Uma dificuldade que a gente tem infelizmente é a questão da estrutura [...] a questão do sigilo a gente fica meio prejudicado nisso às vezes, agora tá melhor, mas antes a pessoa escutava lá fora, o som não fica vedado, se alguém fala mais alto aí de repente sai [...]. (E3)
[...] uma sala [...] onde tivessem instrumentos melhores [...] precisa de instrumentos mais específicos, letras, jogos [...]. (E4)
Foram evidenciados não só aspectos referentes a estrutura física, como também recursos materiais, e esses fatores, segundo os entrevistados, acabam dificultando a realização de uma assistência qualificada.
No que se refere ao conhecimento dos usuários sobre os profissionais e serviços existentes na RAPS, o entrevistado 7 enfatiza o desgaste no plantão por atender demandas que não deveriam ser atendidas em serviço de urgência:
Não [...] porque se eles soubessem que deveriam ir ao posto de saúde, ao CAPS, ao Núcleo de Atenção a Família, eles não viriam aqui pra pedir uma receita, pra pedir um encaminhamento, por uma doença crônica que não está descompensada [...] urgência e emergência mesmo aqui nós vemos pouquíssimos casos. O que mais desgasta o plantão, o que mais consome recursos são pacientes que têm perfil de atenção primária. (E7)
Outra profissional diverge do entrevistado anterior quando diz que os usuários têm conhecimento dos profissionais e dos serviços existentes na RAPS:
Têm, eles preferem ir para o CRAS e o hospital às vezes, na atenção básica eles não gostam muito de ir, só que cada vez eu já venho trabalhando isso com eles [...] mas eles não se sentiam muito à vontade antes pra ir pra atenção básica, porque eles não eram muito bem quistos pela população [...]. (E2)
Quando questionados sobre práticas e estratégias de acolhimento específicas para pessoas em adoecimento mental, sete participantes relataram não haver um padrão específico para esse público. Afirmaram que as práticas de acolhimento são iguais para todos os usuários. No entanto, quando indagados sobre os aspectos importantes no atendimento a essas pessoas, mencionaram vários fatores que corroboram com a PNH.
DISCUSSÃO
A realização do acolhimento abrange a recepção e a triagem, no entanto, vai além desses momentos, compondo todo o período de convivência entre a equipe e os usuários(2). O acolhimento é construído de forma coletiva, e tem como objetivo o estabelecimento de relações de compromisso, vínculo e confiança entre as equipes dos serviços de saúde e seus usuários(4).
É confundido muitas vezes com a recepção ou triagem do indivíduo e compreendido de várias formas (porta de entrada, pronto atendimento), que ultrapassam o limite do próprio conceito(7).
Tanto a especialização como a formação complementar são de extrema relevância, principalmente quando o trabalhador presta assistência a pessoas em adoecimento mental. O processo de capacitação em saúde mental traz grandes contribuições que proporcionam aos profissionais mais segurança para prestar assistência de qualidade a esse público. Uma das marcas a serem alcançadas pela PNH é a educação permanente para os trabalhadores, cabendo aos gestores analisar as demandas por atualização e oferecer capacitação para as equipes(5).
Nos serviços de saúde o acolhimento é considerado como tecnologia leve, que exerce grande influência no processo de trabalho. Representa uma estratégia de mudanças. Por meio das relações estabelecidas entre profissionais, usuários e familiares torna-se possível prestar uma assistência de qualidade, atendendo suas necessidades de forma humanizada(8).
Nesse contexto, o respeito à autonomia do sujeito reforça o vínculo entre profissional e usuário(9). Contribui para a superação das dificuldades encontradas nos serviços públicos hospitalares, nos quais os profissionais sofrem com sobrecarga de trabalho devido ao quantitativo reduzido de profissionais face a alta demanda assistencial, resultando numa assistência com baixa qualidade(10).
No campo da saúde mental, a partir do processo de desinstitucionalização, a família passou a ser a principal provedora de cuidados desses indivíduos. Desse modo, todo o processo terapêutico ocorre nos serviços de saúde com base comunitária, onde as equipes tentam dar todo o suporte necessário ao indivíduo com sofrimento mental e seus familiares(11).
Nessa perspectiva, espera-se que o profissional seja resolutivo ao deparar-se com as queixas trazidas pelos indivíduos e que demonstre atitude de corresponsabilização com sua terapêutica, considerando sua trajetória familiar e histórica. Antes de organizar qualquer intervenção, é preciso estar atento ao que o usuário traz(12).
A capacidade de escutar os usuários é considerada de suma importância, pois ser ouvido faz com que o indivíduo se sinta respeitado na comunicação com os profissionais. As habilidades de comunicação do profissional proporcionarão a construção do vínculo com o usuário desde que também leve em consideração os seus recursos comunicativos e dê relevância à sua história de vida e percepção de mundo(13).
Os usuários devem trabalhar em conjunto com os profissionais de saúde, a fim de traçar seu plano de cuidados. O princípio da tomada de decisão compartilhada favorece que os usuários dos serviços de saúde se responsabilizem lado a lado com a equipe para alcançar seus objetivos(14).
A prática do acolhimento está presente em todas as relações de cuidado, na junção entre profissionais de saúde e usuários, nos atos de recepcionar e escutar os indivíduos, e podem ocorrer de vários modos conforme cada cenário profissional(7).
O vínculo é um dispositivo decisivo na relação entre o profissional de saúde e o usuário, uma vez que traz consigo a ideia do usuário como sujeito autônomo, participante do processo de saúde e possibilita a responsabilização pactuada e compartilhada(5).
Nesse sentido, para alcançar as metas pactuadas no processo terapêutico, uma das estratégias indispensáveis é o vínculo estabelecido entre usuários e a equipe de saúde, para que possam trabalhar em conjunto e garantir que as estratégias e intervenções de cuidados traçadas estejam de acordo com as necessidades do usuário(15).
Para que o acolhimento seja uma prática indissociável na atenção à saúde em todos os níveis de complexidade, faz-se necessário o dimensionamento adequado de profissionais para que as consultas e atendimentos não sejam realizados apressadamente, e para que não sejam centralizados na prescrição medicamentosa(16).
Existem outros aspectos a serem explorados, como as necessidades individuais e sociais do indivíduo, que poderiam ser priorizados nos atendimentos(17).
Além desse, outros fatores limitam a qualidade dos atendimentos, como a escassez de recursos materiais e didáticos, que acabam trazendo prejuízos na realização de oficinas terapêuticas, além da estrutura física inadequada dos serviços(18).
Um estudo realizado em Minas Gerais reforça que quanto mais efetiva a atenção básica, menor o fluxo hospitalar. Portanto, a adequação da demanda em cada um dos níveis de atenção à saúde estimula um ambiente propício ao desenvolvimento das práticas de acolhimento. Conforme suas características, os serviços de atenção primária à saúde seriam os mais apropriados para se responsabilizar pela coordenação do processo terapêutico do indivíduo. Atuando como porta de entrada, as estratégias de coordenação podem ser determinadas com base em uma comunicação efetiva entre os níveis de atenção. Nesse sentido, a informação apresenta-se de maneira benéfica para o usuário e satisfatória para os profissionais(19).
A ESF é considerada relevante para a criação de formas de as pessoas se relacionarem com diversas dimensões da saúde, entre elas a mental. Dessa forma, é necessário trabalhar para desconstruir pensamentos negativos e concepções estigmatizantes de muitos usuários e profissionais sobre o adoecimento mental, pois o direito de usufruir do serviço de saúde é de todos(5).
Assim, existem alguns entraves da atenção primária para cumprir esse papel, entre eles a fragilidade na formação de alguns profissionais que atuam nesse nível de atenção, pois muitas vezes não foram capacitados para trabalhar com essa demanda e acabam prestando uma assistência de baixa qualidade.
No âmbito hospitalar foi criada uma estratégia para alcançar uma das metas que a PNH busca atingir, que é a organização da fila de espera. Além de propor ordem prioritária de atendimento, o Acolhimento com Avaliação e Classificação de Risco (AACR) é um processo dinâmico de identificação dos usuários que requerem cuidado imediato conforme a sua gravidade, e não por ordem de chegada como anteriormente nos serviços de emergência(20).
O AACR está em processo de implantação no serviço hospitalar integrante da pesquisa, o que é importante tanto para a população quanto para os profissionais que poderão prestar assistência imediata às pessoas com grau mais elevado de criticidade, agindo de acordo com o princípio de equidade do SUS.
CONCLUSÃO
As práticas e estratégias de acolhimento aos usuários em adoecimento mental que foram identificadas na RAPS, no município pesquisado, em sua maioria estão em consonância com a PNH e com o modelo de atenção psicossocial. Essas práticas são fundamentais para uma assistência qualificada. Apesar de ainda existirem posturas focadas no modelo biomédico, esse não foi o predomínio no presente estudo.
Os profissionais não têm um padrão específico de acolhimento a ser seguido na assistência a pessoas com adoecimento mental. Mas, apesar disso, suas condutas são humanizadas e para isso utilizam as ferramentas de escuta qualificada e diálogo, primordiais para conhecer a trajetória do usuário e com isso estabelecer um vínculo com o mesmo.
Recomenda-se uma maior cooperação da gestão com os serviços e os profissionais que neles atuam, principalmente no que concerne a estrutura física, recursos materiais e capacitações, pois para trabalhar com a demanda de saúde mental é necessário que as equipes estejam atualizadas, para que não reproduzam práticas que possam ir contra os princípios da reforma psiquiátrica.
É preciso igualmente analisar possibilidades de redirecionamento do processo de trabalho das equipes, que contemplem estratégias de redução da demanda excessiva dos serviços, entre outras, pois a sobrecarga dos profissionais muitas vezes impossibilita a realização de assistência qualificada.
AGRADECIMENTO
Ao CNPq pelo apoio na concessão de bolsa de iniciação científica.
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Recebido: 24/03/2020
Revisado: 07/05/2020
Aprovado: 18/05/2020