Ser enfermeiro no quotidiano da Atenção Primária à saúde:o fazer, o aprender e o conviver

 

Lívia Silveira Silva1, Selma Maria da Fonseca Viegas1, Cássia Menezes1

 

1 Universidade Federal de São João del-Rei

 

RESUMO

Objetivo: compreender o quotidiano do enfermeiro na Atenção Primária à Saúde (APS) e suas vivências como ser, no fazer, aprender e conviver. Método: estudo de casos múltiplos holístico-qualitativo, fundamentado na Sociologia Compreensiva do Quotidiano, com 54 enfermeiros. Resultados: o ser enfermeiro na APS vivencia o protagonismo, a autonomia, a aplicabilidade de conhecimentos e as habilidades profissionais, ao desempenhar o fazer com humanização, empatia, responsabilidade e ética. Os enfermeiros vivem, aprendem e convivem com os desafios quotidianos, como o elevado número de pessoas cadastradas, a falta de recursos humanos, a elevada demanda espontânea e reprimida, a atenção centrada no adoecimento e a necessidade de Educação Permanente. Considerações finais: o ser, fazer, aprender e conviver dos enfermeiros é pautado por grandes responsabilidades e cobranças em torno do que é ideal e o que é real no quotidiano da APS. A infraestrutura e a funcionalidade das unidades de APS encontram-se longínquas da realidade idealizada e desejada.

Descritores: Enfermagem de Atenção Primária; Papel do Profissional de Enfermagem; Competência Profissional; Enfermeiros e Enfermeiras; Prática Avançada de Enfermagem.

 

 

 

INTRODUÇÃO

O “enfermeiro é o pilar da Atenção Primária à Saúde (APS)”(1:157). Em seu dia a dia, associa a sua identidade profissional ora harmoniosa, ora conflituosa em relação às suas percepções do eu, do próximo, do ambiente e de suas práticas cotidianas ligadas intimamente ao contexto social, histórico e cultural da população adscrita. O enfermeiro relaciona o seu ser, fazer, aprender e conviver ao sentido que está envolto na palavra tudo atribuindo-lhe significados positivos e negativos marcados pela percepção de suas ações e de seu espaço profissional que podem ou não o distanciar de seu referencial identitário(1).

Em âmbito internacional, ser enfermeiro significa redesenhar e ressignificar a todo momento seus conhecimentos, suas técnicas e suas práticas às rápidas mudanças demográficas, sociológicas e culturais da população. Evidências internacionais indicam que os enfermeiros têm ganhado cada vez mais destaque e autonomia, ao prestar cuidados de saúde individualizados e holísticos, permeados em uma abordagem respeitosa e flexível. Tal abordagem vem se estruturando a partir das relações terapêuticas, que enfatizam cada vez mais a conscientização dos usuários, apesar das inegáveis práticas técnicas-curativas do tradicional modelo biomédico(2).

No âmbito nacional, o enfermeiro no quotidiano da APS assume atribuições que abrangem ações assistenciais de promoção, proteção, reabilitação e manutenção da saúde, prevenção de riscos e agravos, diagnóstico e tratamento, nas dimensões assistencial e gerencial, em benefício individual e coletivo(3), atribuições estas que lhes confere “a noção sociológica de essencialidade no âmbito das profissões”(4:08).

No quotidiano de trabalho na APS, o enfermeiro tem se mostrado fundamental para a realização de atividades inerentes à organização, coordenação, planejamento, gerência e promoção do cuidado(5). Mediante a complexidade das demandas, ele desenvolve as atividades guiado por seus conhecimentos, habilidades e atitudes capazes de contribuir para a efetividade e a qualidade da atenção(6).

Ademais, um estudo realizado na Noruega identificou que a importância do enfermeiro na APS está além das atividades inerentes ao cuidado. Ao desempenhá-las, torna-se aquele que empodera e trabalha sob uma perspectiva de cuidado relacional e resolutivo(7).

Contudo, em relação ao quotidiano do enfermeiro na APS, o ser, o fazer, o aprender e o conviver podem ser marcados pelas possibilidades e desafios. Um estudo realizado com 23 enfermeiros noruegueses, visando identificar conhecimento e identidade do profissional, evidencia que o trabalho em saúde pública confere ao enfermeiro possibilidades de autonomia, protagonismo e reconhecimento, além dos desafios de caminhar com os usuários/famílias sob a responsabilidade ética, sobrecarga de trabalho e sujeito ao esgotamento físico/emocional(8).

As diversas atribuições assumidas pelos enfermeiros na APS podem aproximá-los de uma nova forma de assistir e cuidar em saúde, assim como também prejudicá-los e distanciá-los de seus saberes e atribuições específicas. Essa situação, muitas vezes, favorece a perda de espaço de trabalho e de autonomia e, por consequência, a desvalorização, a sobrecarga, o sofrimento e até mesmo a invisibilidade da profissão(1-6).

Assim, considerando o exposto questiona-se: Como é ser enfermeiro no quotidiano da APS? Quais suas vivências no fazer, aprender e conviver? Este estudo teve por objetivo compreender o quotidiano do enfermeiro na APS, em duas capitais do Brasil, e suas vivências como ser, no fazer, no aprender e no conviver.

 

 

MÉTODO

O estudo é de abordagem qualitativa, delineado pelo referencial metodológico de Estudo de Casos Múltiplos Holístico(9), fundamentado no referencial teórico da Sociologia Compreensiva do Quotidiano(10), originado de uma Dissertação de Mestrado.

O estudo de caso baseia-se na investigação e na compreensão global de um fenômeno de interesse individual ou coletivo; organizacional ou social; político ou relacionado, inseridos em algum contexto da vida real(9).

Para compreender determinados fenômenos do ser, do viver e do conviver inerentes à vida cotidiana e ao trabalho, torna-se oportuno lançar o olhar da Sociologia Compreensiva do Quotidiano(9) sobre o objeto deste estudo, considerando-se o ser enfermeiro. Ao propor uma razão aberta e sensível, a Sociologia Compreensiva do Quotidiano valoriza os saberes do quotidiano, o senso comum e os aspectos constitutivos à vida cotidiana dos sujeitos e suas interações(10).

A pesquisa teve como proposta realizar um estudo de caso individual em duas capitais brasileiras: Florianópolis (421.240 habitantes), capital do estado de Santa Catarina (SC), com 89,53% de cobertura populacional pela ESF; e Belo Horizonte (2.375.151 habitantes), capital do estado de Minas Gerais (MG), com 78,67% de cobertura populacional pela ESF. Os dois casos foram definidos pelos cenários do estudo, configurando um estudo de casos múltiplos holístico(9).

Os participantes foram 54 enfermeiros atuantes em 30 unidades de APS das duas capitais brasileiras, sendo 23 enfermeiros do município de Florianópolis e 31 do município de Belo Horizonte, cujas participações foram voluntárias. O critério de inclusão foi a atuação de, no mínimo, seis meses na função ou no cargo. O de exclusão foi enfermeiro em férias ou afastado do trabalho no período da coleta de dados, totalizando cinco. Houve uma recusa em participar da pesquisa e onze enfermeiros não puderam participar devido à elevada demanda de trabalho nos dias previamente agendados para a coleta de dados.

Em relação ao sexo, 93% dos participantes eram do sexo feminino; a média de idade entre eles foi de 41 anos; o tempo médio de exercício da profissão de enfermeiro foi de 16 anos; 63% dos participantes formaram-se em instituições públicas; 33% da amostra trabalham na APS Tradicional, com média de atuação de 6 anos; 67% trabalham na ESF, com média de atuação de 7 anos; 89% dos enfermeiros possuíam algum tipo de especialização, sendo 56% em Saúde da Família, 31% em Saúde Pública, 10% em Gestão em Saúde, 8% em Enfermagem Obstétrica; 8% têm Mestrado, dentre outras.

As fontes de evidências foram a entrevista individual aberta intensiva com roteiro semiestruturado; as notas de campo (NC); a Portaria no. 2436, de 21 de setembro de 2017, com fins de análise das experiências cotidianas segundo as atribuições do enfermeiro e as atribuições comuns aos membros da equipe; o Código de Ética da Enfermagem. A entrevista abordou as características dos participantes da pesquisa, a segurança do profissional enfermeiro e os problemas éticos e bioéticos na APS. As NC tiveram fins operacionais de desenvolvimento da pesquisa, descrevendo características peculiares dos cenários do estudo, das equipes, das unidades de APS/ESF e da coleta de dados, sendo analisadas e incorporadas ao texto deste artigo. A priori, foi realizado um pré-teste do roteiro de entrevista, sob a orientação da pesquisadora responsável.

A coleta de dados ocorreu em agosto de 2018 e maio/junho de 2019. As entrevistas foram conduzidas pela pesquisadora; tiveram uma duração média de doze minutos com os participantes da pesquisa de Florianópolis e de dezessete minutos com os de Belo Horizonte. Foram realizadas conforme a disponibilidade do enfermeiro, em espaço privativo na unidade de saúde onde atuavam, estando presentes, apenas a pesquisadora e o participante.

A entrevista foi gravada em arquivo digital e validada, depois de realizada, pela audição do participante, ciência e liberdade de autorização dos dados na íntegra ou com a opção de correção. Vale ressaltar que todos os participantes autorizaram utilização dos dados da sua entrevista em sua totalidade. As entrevistas foram transcritas na íntegra, preservando-se a fidedignidade das informações.

A coleta foi encerrada na 54a entrevista quando se constatou a saturação dos dados em cada um dos casos deste estudo, isto é, quando se obteve um número suficiente de informações replicadas, configurando a replicação literal dos dados(9:64-65).

A análise dos dados da pesquisa foi fundamentada na técnica da Análise de Conteúdo Temática(11), definida pelo critério semântico, isto é, pela análise dos “significados” segundo as fases: pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados, inferência e a interpretação. A análise teve consonância com o referencial metodológico de estudo de Casos Múltiplos Holístico-Qualitativo(9), fundamentada no referencial teórico da Sociologia Compreensiva do Quotidiano(10). Originaram três categorias temáticas: Segurança do profissional enfermeiro e problemas éticos e bioéticos vivenciados na Atenção Primária à Saúde; Ser(bio)ético no quotidiano da Atenção Primária à Saúde: noções do enfermeiro; Ser enfermeiro no quotidiano da Atenção Primária à Saúde: o fazer, aprender e o conviver. Este artigo abordará a terceira categoria temática.

Para a interpretação e discussão dos resultados, tornou-se necessário apropriar-se, também, da visão ética aplicada como Hermenêutica Crítica, fundamentada na filosofia kantiana e na visão da Bioética Cotidiana de Giovanni Berlinguer para atender aos preceitos da ética e bioética na APS.

É válido ressaltar que a pesquisa foi desenvolvida segundo a Resolução do Conselho Nacional de Saúde no 466, de 12 de dezembro de 2012, obedecendo às diretrizes e normas reguladoras de pesquisas que envolvem seres humanos. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi elaborado em duas vias, sendo assinadas pelo participante da pesquisa e pela pesquisadora responsável. A coleta de dados iniciou-se após as aprovações do projeto, sob o Parecer nº. 3.137.192 do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São João del-Rei, Campus Centro-Oeste; e do Parecer no. 3.260.376 do Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte. A entrada em campo de pesquisa para coleta de dados foi após autorização das secretarias municipais de saúde. O anonimato dos participantes foi garantido por meio da identificação alfanumérica, na qual a letra “E” representa o entrevistado, e a numeração consecutiva se deu pela sequência das entrevistas (E1, E2, E3...).

 

 

RESULTADOS

A apresentação do tema “Ser enfermeiro no quotidiano da Atenção Primária à saúde: o fazer, o aprender e o conviver” se configura em duas subcategorias: Atuação do profissional enfermeiro no quotidiano da APS e O ser enfermeiro no quotidiano da APS.

A subcategoria Atuação do profissional enfermeiro no quotidiano da APS promove a reflexão sobre as condutas, características ou competências necessárias ao desempenho de atividades ou função do enfermeiro perante as práticas cotidianas no Sistema Único de Saúde (SUS).

O protagonismo do enfermeiro na APS foi declarado, neste estudo, na organização, planejamento e funcionamento das unidades de APS, desempenhando atividades de natureza administrativa, assistencial e educativa, contribuindo significativamente para a efetivação das ações individuais e coletivas perante as necessidades de saúde dos usuários-famílias e comunidade.

Segundo 33 dos 54 participantes da pesquisa, a atuação do enfermeiro transita pela resolutividade e corresponsabilização, pelo conhecer e fazer a diferença, pela empatia e o caminhar junto ao usuário, sendo uma porta aberta:

Eu sou uma pessoa bem ativa, eu tento solucionar o máximo possível dos problemas dos pacientes que me buscam. Para eu não precisar ficar naquele vai e vem jogando-os de um canto para o outro, mas sempre dentro do meu limite. Tentando fazer com que o paciente entenda que ele precisa fazer a parte dele, porque a gente não pode fazer tudo por ele [...] tem 16 anos que eu luto e penso que o enfermeiro tem que ter o seu espaço! Usar os nossos conhecimentos para ajudar o paciente, exercer nossa profissão como está ali, tim por tim-tim, com todos os direitos de realizar consultas e procedimentos [..] com qualidade. (E14)

Eu gosto muito do que eu faço, então eu tento sempre fazer para o usuário da forma como eu gostaria de ser atendida. Eu entendo Atenção Primária como porta de entrada de todos os Serviços de Saúde. Precisa ter uma visão bem ampliada [...] e tento alcançar os objetivos que o paciente veio buscar. (E15)

Eu percebo que eu estou fazendo a diferença na vida de algum paciente, eu vejo que eu realmente pude ajudar, esclarecer uma dúvida, dar uma orientação que ele pode compreender [..] e sair satisfeito com aquilo resolvido. (E31)

No meu dia-dia, é importante exercer assistência à comunidade, o enfermeiro, ele tem um elo entre a comunidade e o cuidado, então a prática do enfermeiro é importante para guiar o usuário naquilo que ele precisa. É importante ter-se domínio na questão dos fluxos e a gente tem um papel muito importante nesse sentido, de conduzir o paciente ao longo da sua vida e das necessidades que ele apresenta em cada idade, em cada época da vida. (E53)

 

A autonomia na consulta de Enfermagem, a sobrecarga de trabalho, o esgotamento emocional e físico e o fazer a diferença na vida das pessoas fazem parte do quotidiano do enfermeiro:

Acho que nós enfermeiros temos autonomia tanto com consulta agendada quanto na demanda espontânea. A gente sempre se vê um pouco sobrecarregado, um pouco não, bastante! [...] mas consigo atuar e fazer diferença nas vidas das pessoas. Só que é bem puxado emocionalmente e fisicamente. (E8)

 

O fazer quotidiano do enfermeiro é pautado por grandes responsabilidades que não condizem com as condições de trabalho que lhes são oferecidas. Sendo assim, observam-se situações entre o que se deve fazer para aquilo que se pode fazer, uma luta constante entre o ideal versus o real:

Percebo que a cada dia que passa, têm-se aumentando as atividades que são de responsabilidade do enfermeiro, eu me sinto sobrecarregada, sem muita saída [...] então, tenho que estar atuando em todas as ações do entorno, tem que dar assistência e ainda tem que acompanhar o técnico e orientar o técnico, então, essa sobrecarga do enfermeiro, ela é massacrante. (E44)

A demanda vem aumentando muito devido à situação do país, e já não têm mais regras na saúde, é muita indignação! Aqui tem uma área adscrita, mas não se respeita essa área, as condições de trabalho muito precárias, não tem um banheiro legal, não tem copa e nem ventilador, isso em 2019, aqui é referência. Mesmo assim, oferecemos um atendimento bom, uma resposta boa, as pessoas vêm mesmo de planos de saúde e falam “ah, ‘mais’ aqui eu sou bem atendida, sou atendida mais rápido”. Mas, nós trabalhadores estamos sobrecarregados e as condições para o trabalho bem difíceis. (E45)

Enfrentamos muitos desafios, então, entre o ideal e o real, tem uma distância, como em qualquer local ou qualquer categoria, e na área da saúde a gente vivencia muito isso, a gente chega cheio de ideias e planos e não consegue efetivar. A todo o momento é sobrecarga de trabalho, a dinâmica interfere nisso, gostaria de implementar, aí chega uma outra coisa na frente e acaba ficando no desejo. (E46)

 

A subcategoria O ser enfermeiro no quotidiano da APS revela o viver e o conviver com os desafios quotidianos na APS, representados pelo elevado número de pessoas cadastradas, falta de recursos humanos, elevada demanda espontânea e reprimida, atenção centrada no adoecimento e necessidade de capacitações, o que implica ser preciso a Educação Permanente:

Bastante sobrecarregada porque trabalhamos com o extra teto de pessoas no território [...] a vivência está fora da nossa governabilidade como profissional e servidor de uma Instituição Pública, porque há falta de recursos humanos [...] e isso gera uma demanda reprimida de pessoas que buscam atendimento e acabam não conseguindo. A gente trabalha com o limite humano, então sempre que possível fazemos aquilo que pode, mas sabemos que muita gente vai embora sem atendimento e que não é possível, às vezes, atender a todos [...] também pelo modelo que temos vivenciado agora, na minha opinião, desconfigura um pouco do que eu venho da minha formação e do que eu aprendi a exercer nesses 11 anos de ESF que era mais centrado na pessoa, no indivíduo, na promoção e prevenção, a gente trabalhava com saúde. Eu costumo pensar qual será o dia em que eu vou voltar a trabalhar numa Secretaria Municipal de Saúde e não na Secretaria Municipal da Doença? Está muito voltado para doença porque fomos trabalhando em um sistema de ampliar o acesso do usuário ao serviço, então diminuiu as nossas agendas com atendimento programado para aumentar o acesso à demanda espontânea. O cuidado de uma consulta, onde você demanda mais tempo para orientações para o autocuidado, a prática de atividade física, a alimentação, de poder ensinar como manejar sua própria saúde [...] estão ficando um pouco atropeladas e engolidas pela demanda espontânea. (E8)

Houve uma descaracterização muito grande da ESF. Estamos atendendo muita demanda de urgência e a parte educativa e preventiva. O cuidado com os nossos crônicos foi meio que perdido nesse caminho [...] essa proposta de ESF aqui está muito descontextualizada, na verdade, começamos a viver uma questão do apagar incêndio, não temos mais capacitações, não tem mais investimento no profissional. [...] não é capacitado, a gente não recebe instrumentos novos e estamos na época do fazer, do fazer, do fazer! (E27)

 

A humanização, o acolhimento com escuta sensível e o caminhar com o usuário fazem-se presentes no quotidiano do ser, conviver e fazer do enfermeiro. Porém, a cultura de o usuário buscar a atenção e cuidado no adoecimento predomina:

A gente tenta fazer uma escuta sensível, fazer um acolhimento e, se possível, direcionar este usuário para algum caminho que ele possa ter a demanda dele ouvida. (E8)

Eu tento, dentro do meu senso de conhecimento a humanização e percepção, tratar o paciente bio-socio-economicamente, aí eu junto isso tudo e tento colocar na balança aquele atendimento meu da urgência do paciente e de qual urgência eu devo tratar aqui. Aí eu fico muito cansada, sobrecarregada e, às vezes, enxugando gelo porque o paciente não quer fazer a promoção da saúde, ele quer só a cura. (E43)

 

Ser enfermeiro no quotidiano da APS é ser protagonista na organização, administração e planejamento das ações, na assistência e educação necessárias à efetivação das ações de saúde individuais e coletivas. O fazer transita pela resolutividade e corresponsabilização, autonomia, humanização e acolhimento com escuta sensível, pela empatia e pelo fazer a diferença ao caminhar junto com o usuário em suas necessidades. Nesse fazer quotidiano, o enfermeiro vivencia condições de trabalho precárias. Todavia, os enfermeiros vivem, aprendem e convivem com os desafios quotidianos representados pelo elevado número de pessoas cadastradas, falta de recursos humanos, elevada demanda espontânea e reprimida, atenção centrada no adoecimento e necessidade de “capacitações” o que denota a precisão da Educação Permanente. Sendo assim, observam-se situações entre o que se deve fazer e aquilo que se pode fazer, uma luta constante entre o ideal e o real (NC).

 

 

DISCUSSÃO

Como direito o enfermeiro deve exercer suas atividades com liberdade, autonomia e deve ser tratado segundo os pressupostos e princípios legais, éticos e dos direitos humanos. Como dever o enfermeiro precisa exercer a profissão com justiça, compromisso, equidade, resolutividade, dignidade, competência, responsabilidade, honestidade e lealdade(12). Entrelinhas os participantes da pesquisa aludem sobre os direitos e deveres da profissão.

A presença do enfermeiro tem se mostrado fundamental à funcionalidade e consolidação do SUS no Brasil, ao deter conhecimentos, técnicas e características que o torna gerenciador do cuidado, capaz de impactar na saúde de usuários por meio de controle, acompanhamento, prevenção de riscos e agravos e promoção da saúde(1).

Estudos internacionais revelaram que a assistência e cuidados prestados pelos enfermeiros proporcionam resultados de saúde melhores, em comparação aos outros profissionais de saúde. O enfermeiro da APS é capaz de alcançar e proporcionar elevados índices de satisfação dos usuários e suas famílias porque oferecem duração e qualidade em suas consultas superior à de outros profissionais. As orientações e intervenções do enfermeiro podem proporcionar mudanças significativas no estilo de vida de usuários. Além disso, usuários que receberam algum tipo de cuidado, orientação ou intervenção vindas do enfermeiro possuem uma maior compreensão do problema de saúde, além de lidar melhor com o diagnóstico e as novas mudanças de vida(13-14).

Assim, o enfermeiro “é preciso ver aí um tipo de sabedoria instintiva. Sabedoria que não deve ser considerada de um ponto de vista moral [...] que não remete, obrigatoriamente, para a razão, mas que sabe integrar essa parcela de paixão que, sabe-se, é uma componente essencial da vida social”(15: 267).

Os resultados trouxeram o quotidiano de trabalho dos enfermeiros “de modo que garantam amplamente acesso, o vínculo entre as pessoas e profissionais, a continuidade, coordenação e longitudinalidade do cuidado”(3:14). Esses atributos são vivenciados implicando a valorização da relação do vínculo e indicam o caminhar com o usuário e não o encaminhar.

Os atributos que relacionam as dimensões sinérgicas, relacionais e interpessoais desenvolvidas pelos profissionais em seu quotidiano de trabalho promovem o equilíbrio entre o expressivo e o técnico, o individual e o coletivo, o diálogo e a escuta, os significados e os valores individuais ou coletivos(16). Assim, é nesse quotidiano que o enfermeiro oportuniza, amplia e otimiza as perspectivas da sua atuação ao ser a ser cuidado(1-6).

As relações e inter-relações, expressas pelas atividades do cuidar, devem se pautar nas legitimações e responsabilidades morais, éticas e bioéticas dos conhecimentos, valores e ações, permeadas por uma postura crítica competente e reflexiva, ponderadas a partir da visão do indivíduo em toda a sua totalidade – emocional, física, ambiental, relacional e trabalhista(17).

Destarte, para cuidar do ser em sua totalidade deve se considerar que “no conhecimento a priori nada se pode atribuir aos objetos salvo aquilo que o sujeito pensante tira de si mesmo; [...] e nenhum princípio pode ser encontrado com segurança em uma relação, sem examiná-lo ao mesmo tempo, no seu relacionamento total”(18:23).

Todavia, a realidade pesquisada mostrou que o fazer dos enfermeiros está centralizado mais no adoecimento e na demanda espontânea do que na prevenção de riscos e promoção da saúde. Priorizar as atividades curativistas da demanda espontânea descaracteriza os objetivos da APS e a identidade profissional dos enfermeiros(8). Dessa maneira, vivencia-se um crescente distanciamento entre as atribuições específicas do enfermeiro na APS(3), em detrimento das necessidades de vazão/resolução de atividades ou demandas mais urgentes.

Este estudo apresenta a necessidade de capacitações o que denota ser precisa a Educação Permanente como ferramenta capaz de fortalecer, refletir e construir práticas integrais e mais resolutivas na APS. Incorporá-la traria ao quotidiano dos enfermeiros um norteamento e uma remodelação atitudinal e cultural frente aos desafios vivenciados(19).

Ademais, o protagonismo, a importância e a essência do enfermeiro dentro da APS são capazes de expô-lo ao sofrimento, atribuídos à sobrecarga de trabalho, ao esgotamento emocional e físico, aos riscos biológicos e erros. O desejo pela práxis livre de riscos é utópico, mas esforçar-se para melhorá-lo não é apenas responsabilidade profissional, mas um dever moral(18).

Nessa premissa, ser enfermeiro no quotidiano da APS significa, em sua forma mais ampla, aprender, viver e conviver com os desafios quotidianos representados neste estudo pelo elevado número de pessoas cadastradas, falta de recursos humanos, elevada demanda espontânea e reprimida e atenção centrada no adoecimento. Tais fatores podem perpassar pelas dimensões emocionais, físicas, psíquicas e éticas do enfermeiro em seu trabalho. Um estudo realizado na APS das cinco regiões do Brasil evidenciou que as atribuições e responsabilidades dos enfermeiros atrelados aos desafios, características e contextos do SUS podem desencadear ou não distresse moral a esses profissionais, tornando-se um fator limitante para a atuação ética, a continuidade e qualidade do cuidado, a efetivação e provimento dos serviços da APS(20).

Outrossim, um estudo multicêntrico realizado com enfermeiros da ESF revelou, que perante a este quotidiano desafiador, os enfermeiros motivam-se pela magnificência da qualidade do cuidado, expresso pelo trabalho em equipe, do gostar do que fazem, no apoio por parte das equipes do Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB) e nos bons relacionamentos com os usuários e colegas de trabalho(21).

Na teoria maffesoliana, existe o ser ora pessoa (persona) ora indivíduo único e singular dotado de variadas características, dimensões e experiências individuais ou coletivas, racionais ou sensoriais(22). Neste estudo, o enfermeiro, ao assumir o ser cuidador, seus gostos e seu lugar no mundo, o interesse não se volta apenas para os fenômenos descritos, mas, sim para as representações e apresentações casuais, banais e subjetivas desse ser em seu quotidiano imaginário, sensório e sensível(15-22). “Isso força uma conversão do olhar: apreciar cada coisa a partir de sua própria lógica, de sua coerência subterrânea, e não de um julgamento exterior que dita o que ela deve ser”(23:143-144). Assim, o ser e o estar tornam-se elementos de um ser plural.

Por fim, observa-se que o ser, o fazer, o aprender e o conviver dos enfermeiros é pautado por grandes responsabilidades e cobranças em torno do que é ideal e o que é real no quotidiano da APS. Em vários cenários, a infraestrutura e a funcionalidade das APS brasileiras encontram-se distante da realidade idealizada e desejada. Por isso, tornam-se oportunos o conhecimento e a reflexão em torno dos determinantes e das dificuldades inerentes à prática profissional, assim como o provimento de ambientes favoráveis e eficientes à produtividade e a promoção da excelência do cuidado e segurança do paciente(7) como, também, a segurança do profissional.

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ser enfermeiro na APS vivencia o protagonismo, a autonomia, a aplicabilidade de conhecimentos e as habilidades profissionais ao desempenhar o fazer com humanização, empatia, responsabilidade e ética as atividades de natureza administrativa, gerencial, assistencial e educativa, significativas às necessidades de saúde da população.

O fazer do enfermeiro transita pela resolutividade e corresponsabilização, em um quotidiano marcado pela sobrecarga de trabalho, esgotamento emocional e físico, pela cultura, ainda predominante, do usuário buscar a atenção e o cuidado no adoecimento, pelo elevado número de pessoas cadastradas, falta de recursos humanos, elevada demanda espontânea e reprimida e pela necessidade de Educação Permanente. Esses fatores não condizem com as condições de trabalho que lhes são oferecidas, além de provocar uma descaracterização crescente entre a identidade deste profissional e as atribuições preconizadas que desejam vivenciar.

Observa-se, portanto, que os enfermeiros convivem com situações e desafios quotidianos que ressignificam suas ações, identidade e processos de fazer e aprender.

* As autoras declaram que não há conflito de interesses.

*Contribuições das autoras:

Lívia Silveira Silva: concepção, delineamento, coleta, análise, interpretação dos dados, redação do artigo. Selma Maria da Fonseca Viegas: concepção, delineamento, coleta, análise, interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica e aprovação da versão a ser publicada. Cássia Menezes: coleta, análise, interpretação dos dados e redação do artigo.

*Financiamento: Este estudo foi financiado por bolsa do Programa de Incentivo à Pós-Graduação Stricto Sensu (PIPG) da UFSJ, como também por bolsa de iniciação científica pelo Edital 009/2017 PIBIC/FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais).

 

 

REFERÊNCIAS

 

 

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Recebido: 14/01/2020

Revisado: 23/02/2020

Aprovado: 23/02/2020