Interface entre saneamento ambiental e saúde: estudo participante com estudantes de enfermagem

 

Marcela de Abreu Moniz1, Ingrid da Silva Souza1, Mayara Pacheco da Conceição Bastos1, Raila Neumann Pacheco1, Layla Correa Linhares1, Rayara Mozer Dias2

 

1 Universidade Federal Fluminense

2 Universidade do Estado do Rio de Janeiro

 

RESUMO

Objetivo: descrever a percepção de graduandos de enfermagem sobre a interface do saneamento ambiental com a saúde humana. Método: Empregou-se o estudo participante, a técnica World Café e a análise temática de conteúdo. Participaram 23 graduandos de enfermagem da Universidade Federal Fluminense, campus Rio das Ostras, no período de agosto de 2017 a maio de 2018. Resultados: A percepção limitada dos participantes sobre as dimensões físicas, biológicas, toxicológicas, sociais e políticas que envolvem a relação saneamento-saúde revela uma formação dedicada ainda ao modelo biomédico e despolitizada das questões socioambientais que repercutem na saúde. Conclusão: Constatou-se a importância da educação ambiental centrada nos estudantes e em metodologias ativas de aprendizagem, com vistas ao pensamento crítico e à formação de competências dos futuros enfermeiros para a realização de ações que reduzam as condições de riscos à saúde relacionadas ao saneamento ambiental.

Descritores: Estudantes de Enfermagem; Saneamento; Saúde Ambiental.

 

 

INTRODUÇÃO

 

O acesso à água e o manejo adequado dos resíduos sólidos e do esgoto sanitário constituem-se em desafios ambientais globais que exigem grandes esforços de participação de diversos atores sociais (cientistas, profissionais da saúde, educação e meio ambiente, população em geral e governantes) para o alcance da garantia destes direitos humanos, principalmente a populações vulneráveis socialmente1.

Nesse cenário ambiental, enfermeiros são profissionais da área da saúde indispensáveis ao processo de transformação e melhoria dos determinantes socioambientais do processo saúde-doença-cuidado no território, inclusive de condições e fatores ambientais condicionados pelos quesitos do saneamento básico. Ressalta-se a importância do papel desses profissionais para se consubstanciar ações assistenciais a indivíduos e grupos afetados por problemas ambientais e de promoção da saúde, que permeiem o cuidado ambiental2-4.

Em todo o mundo, as demandas de sustentabilidade ambiental vêm impactando os recursos e os sistemas de saúde, fato que vem exigindo competências e habilidades dos enfermeiros para gerenciamento das necessidades de saúde e de situações, riscos e respostas dos serviços de saúde e territórios, conforme os preceitos do desenvolvimento sustentável4.

Nesse sentido, o conhecimento de como os estudantes de enfermagem percebem a discussão da problemática ambiental relacionada ao saneamento e à saúde pública é fundamental para que possam ser reformuladas as ações educativas e as matrizes curriculares dos cursos de graduação na direção do desenvolvimento de um profissional crítico, competente e responsável por essas questões.

A percepção de graduandos de enfermagem é um dos aspectos que possibilita a avaliação da formação em enfermagem sobre situações complexas e rotineiras relacionadas ao campo da saúde ambiental. A relação entre a percepção ambiental e a atitude ambiental dos estudantes deve ser explorada com a finalidade de se conhecer e avaliar os fatores que influenciam a percepção-ação humana e, consequentemente, impactam sobre o processo educacional e a formação profissional5.

Nessa linha de raciocínio, os estudos de percepção socioambiental devem preceder as ações de educação ambiental e podem se caracterizar em uma ferramenta de ensino-aprendizagem no contexto universitário da enfermagem. Contudo, reconhece-se que a percepção ambiental de estudantes não é simplesmente resultado de informações obtidas em disciplinas curriculares ou outros momentos da vida acadêmica, mas também é fruto de interesses, experiências e conhecimentos aprendidos em seu convívio social6. Com base nesse conhecimento, o presente estudo tem como objetivo descrever a percepção de graduandos de enfermagem sobre a interface do saneamento ambiental com a saúde humana.

 

MÉTODO

 

Estudo de abordagem qualitativa do tipo participante, que foi conduzido com o emprego da técnica World Café e da análise de conteúdo de dados na modalidade temática. Estudos com aproximação da abordagem participativa têm sido utilizados de forma crescente para avaliação da percepção ambiental de estudantes e profissionais de enfermagem2-3.

O World Café consiste em uma técnica participativa de investigação qualitativa, ainda utilizada de forma incipiente pelos pesquisadores da área das ciências da saúde e da Enfermagem no Brasil. Tal técnica se sustenta na interação flexível e dialógica entre seus participantes de diversos subgrupos, que são criados reproduzindo o ambiente descontraído de uma conversa em um café. As trocas de informações, valores, ideias e saberes são efetivadas por meio da movimentação de seus participantes entre os subgrupos e da abertura do espaço para escuta geral, reflexões e percepção coletiva sobre um tema problematizado8.

O world café é estruturado a partir da formação de pequenos grupos de participantes que se reúnem em torno de uma mesa, ponderam e discutem questões ou situações-problemas de interesse. Após determinado período, os participantes ou pelo menos um representante realiza rodízio de grupo e passa a escutar as ideias expostas pelos participantes anteriores para que possa emitir suas opiniões acerca das respostas. Em seguida, ocorre a argumentação e as trocas de ideias dentro de um mesmo grupo para a construção de um novo conhecimento. Ao final do café, cada porta-voz apresenta os resultados de forma sintetizada para todos os grupos e, assim, os conhecimentos são compartilhados com todos os participantes por meio de uma grande conversa em grupo com a finalidade de se obter a percepção coletiva do grupo. O lanche pode ser disponibilizado em cada mesa ou ao final do world café9.

Participaram 11 estudantes de enfermagem durante o segundo semestre letivo do ano de 2017 (Turma 1) e 12 estudantes no primeiro semestre letivo do ano de 2018 (Turma 2). Os critérios de inclusão dos participantes foram: ser estudante matriculado na disciplina Enfermagem em Saúde Pública e Meio Ambiente do quinto período do curso de graduação em Enfermagem da Universidade Federal Fluminense, campus Rio das Ostras, e ter idade a partir dos 18 anos. Como critério de exclusão, ser estudante com matrícula trancada na disciplina.

A coleta de dados ocorreu em dois momentos distintos, a saber: no mês de setembro de 2017 com a turma 1 e no mês de maio de 2018 com a turma 2, em sala de aula, com duração média de 2 horas. O esquema do World Café aplicado no presente estudo, em cada uma das turmas, demonstra a reprodução do ambiente de um café dialógico entre seus participantes, conforme a Figura 1.

 

 

 

 

 

Figura 1- Esquema do World Café com os estudantes de enfermagem. Rio das Ostras, RJ, Brasil, 2017-2018

 

 

Figura1

 

 

 

 

 

 

O estudo de caso e as questões propostas aos estudantes foram elaboradas pelos pesquisadores/moderadores do café, com base em uma situação de saneamento básico inadequada diagnosticada em uma pesquisa prévia realizada com uma equipe de saúde da família de um território próximo à universidade. Um esquema de fluxograma (Figura 2) foi construído segundo o estudo de Moniz et al.10 para demonstrar uma análise estrutural do problema de saneamento inadequado do território analisado, conforme a relação causa-efeito do problema socioambiental priorizado pelos profissionais de saúde.

 

 

Figura 2-Análise estrutural do problema de saneamento ambiental inadequado para o estudo de caso, segundo profissionais da Estratégia Saúde da Família. Casimiro de Abreu, RJ, Brasil, 2017

Figura4

 

 

 

As questões utilizadas no World Café foram: Quais ações de promoção de saúde podem ser realizadas pelo enfermeiro nesse cenário de saúde? Você incluiria algum outro efeito à saúde como consequência da situação de saneamento ambiental inadequado? Qual? Justifique.

As falas gravadas do grande grupo foram transcritas e, em conjunto com os comentários escritos de cada grupo em folha separada e os registros de campo, os dados foram categorizados à luz da análise de conteúdo na modalidade temática11. Esta técnica de análise pressupõe três fases sequenciais, a seguir: pré-análise; exploração do material; e tratamento dos resultados, inferência e interpretação11.

Na primeira fase de pré-análise, os índices identificados nos conteúdos, que originaram os núcleos de análise foram: serviços de saneamento, atuação do enfermeiro, análise ambiental do território, riscos e efeitos à saúde, doenças transmissíveis e não-transmissíveis. Em seguida, na fase de exploração do material, houve a codificação temática com o surgimento das unidades de significação e de contexto, e a categorização. Na última fase de tratamento analítico, os dados foram examinados profundamente e confrontados com a literatura. No fim do processo analítico, emergiram duas categorias finais.

Aspectos éticos

Esse estudo é parte integrante do projeto intitulado Educação Ambiental e Enfermagem: caminho para a ética, a sustentabilidade e a promoção da saúde, do grupo PET Conexões Enfermagem Puro vinculado ao Programa de Educação Tutorial da Universidade Federal Fluminense de Rio das Ostras. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal Fluminense, sob o número de parecer 1.934.809, em fevereiro de 2017, em conformidade com a Resolução 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde.

Respeitou-se o anonimato dos participantes, mediante o modo de sua identificação nos grupos, que se deu por meio de adesivos com suas respectivas numerações, e nos resultados, nos quais foram identificados como Turma 1 ou Turma 2. Cada participante mencionou seu número de identificação antes de emitir sua opinião no grande grupo, para que as falas transcritas assegurassem o sigilo e o anonimato das informações. A participação na pesquisa foi autorizada mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

 

RESULTADOS

 

Participaram do estudo 23 graduandos de enfermagem com idade entre 18 e 35 anos. Foram elaboradas duas categorias analíticas, a saber: Atuação do enfermeiro sobre a situação territorial do saneamento ambiental; e Identificando riscos à saúde relacionados ao saneamento ambiental inadequado.

Atuação do enfermeiro sobre a situação territorial do saneamento ambiental  

O saneamento básico inadequado foi identificado pelos estudantes como situação ainda comum na maioria das áreas urbanas e rurais da região sudeste brasileira e como fator determinante de diversas doenças transmissíveis e não transmissíveis no estudo de caso apresentado. Contudo, os participantes apresentaram conhecimento insuficiente sobre os quesitos deste setor. A maioria dos participantes relacionou o saneamento apenas com a oferta dos serviços públicos de tratamento de água e esgotamento sanitário:

Em relação ao saneamento básico, por exemplo, nesta localidade é bem comum o uso do poço. As pessoas lá usam os poços e nessas casas não têm um sistema de esgoto; então, assim, tem essa questão do sumidouro. Isso vai poluir o solo, polui o lençol freático daquele local e isso pode contaminar os poços das pessoas que estão bebendo água em casa. Então, elas têm sumidouro e têm poço, tem essa relação: qual a qualidade da água que elas estão bebendo? A distância talvez não só do sumidouro da casa dela, mas do vizinho, que pode contaminar o da sua própria casa, então essa questão de saneamento dentro das casas é importante (Participante 3).

Por saneamento ambiental entendo que seriam os serviços básicos relacionados à coleta de lixo, esgoto e tudo relacionado a problemas que podem causar danos à saúde dos moradores de certo local (...) (Participante 5).

São fatores e medidas que fornecem saneamento básico adequado para as pessoas, água potável e medidas que tornem menos prejudiciais a saúde, trazendo melhor qualidade de vida para população (Participante 3).

 

Apesar de três estudantes informarem sobre o problema da enchente, nenhum dos participantes citou a drenagem pluvial como um dos quesitos do saneamento. Tal percepção é evidenciada nos seguintes trechos de falas:

(...) Tem também a questão da enchente, quando a pessoa mora próximo ao local  (Participante 4).

A gente vê que o local enche devido à represa ali, de um rio que vem de uma reserva e deságua ali (...) (Participante 7).

(...) quando a pessoa mora muito próxima ao valão, na hora que vai chover, aquele valão vai encher e aquele esgoto a céu aberto vai entrar para dentro da casa (Participante 6).

 

Os participantes mencionaram ao final das discussões sobre a importância do investimento político no setor de saneamento, porém, que este dever do Estado não tem sido cumprido, uma vez que é um fato evidenciado pela crise do saneamento no Brasil. Assim, os estudantes corroboraram com as percepções dos profissionais no que se refere à necessidade de ampliação da rede de serviços para tratamento de água e esgoto sanitário e de aplicação de métodos alternativos, como a instalação de fossa séptica em localidades com dificuldades de implantação de rede de tratamento do esgoto.

Dá pra você perceber que saneamento básico tem que ter infraestrutura, porque se você pensar até na questão do esgoto, isso demanda uma mão de obra da gestão, da secretaria de obras; se você mexe na infraestrutura, mexe na parte de calçamento, mexe com tudo (Participante 10).

 

A garantia desse direito ambiental e social da população referente à ampliação da cobertura dos serviços de saneamento parece ser um aspecto desvinculado das ações assistenciais realizadas pelo enfermeiro.

Contudo, notou-se, também, que a discussão sobre as ações do enfermeiro no campo da promoção da saúde, inclusive de educação ambiental, contribuiu para os estudantes perceberem que tais ações são fundamentais para estimular a mudança de atitudes das pessoas e das comunidades em relação à participação social e à transformação da realidade. Identificamos este resultado nas seguintes falas:

(..) O enfermeiro possui um grande papel na promoção da saúde, como na realização de palestras, visitas domiciliares, notificações e mutirões junto aos moradores para estimular sua participação (Participante 06).

(..) o papel do enfermeiro é realizar vigilância em saúde, como identificar medidas para prevenir e controlar os riscos à saúde e planejar medidas educativas e ações comunitárias para incluir a população na resolução desses fatores (Participante 1).

 

 

Identificando riscos à saúde relacionados ao saneamento ambiental inadequado

Constatou-se que a maioria dos participantes relacionou o risco de doenças infecto-parasitárias da comunidade estudada à ausência dos serviços de saneamento. Contudo, houve limitação do conhecimento sobre os tipos de morbidades infecciosas que poderiam ser desencadeadas pelo saneamento inadequado. O risco de adoecer por leptospirose, cólera, febre tifoide, hepatites A e E não foi citado.

(..) exposição a verminoses por contato direto com solo contaminado, além de foco de pombos que pode causar criptococose (Participante 4).

Doenças gastrointestinais que podem causar diarreia, vômitos, letargias e náuseas devidas à contaminação da água que não é tratada... (Participante 8).

 

Apenas uma pessoa relacionou o problema das enchentes ao risco das arboviroses (infecção pelo vírus Zika, Dengue, Chikungunya):

 

(...) redução da disponibilidade hídrica e risco para doenças virais causadas por artrópodes (dengue, zika e Chikungunya) (Participante 4).

 

As doenças crônicas não infecciosas e os agravos à saúde informados foram: hipertensão, doenças dermatológicas, fúngicas e respiratórias, acidentes e transtornos mentais.

 

Em relação ao asfalto, aos buracos, tem que pensar um pouco além, nas chuvas, no lixo acumulando naquele buraco que fica ali e aquela contaminação ali pode causar danos à saúde daquela população e a poeira que fica do transporte, quando o ônibus passa, daquela falta de asfalto, e vai causar impactos à saúde daquela população (Participante 6).

O próprio chorume que vai ser produzido pela degradação do lixo pode causar inúmeros danos à saúde (Participante 10).

Aquele esgoto a céu aberto vai entrar pra dentro da casa dele, então, aquilo é uma perturbação mental muito grande, então esse estresse pode causar outras doenças como hipertensão, porque ficou muito estressada com aquilo e elevou a pressão arterial. Essa coisa do lixo, da chuva, da falta de saneamento básico gera uma série de doenças (Participante 8).

 

 

Não foi citado o risco de intoxicações agudas e câncer como possíveis problemas de saúde resultantes da situação inadequada do saneamento. Nenhum estudante informou sobre problemas de saúde que podem decorrer do risco de exposição aos agrotóxicos presentes na água. Apenas um estudante relacionou o risco de exposição infantil com a contaminação ambiental a substâncias.

 

O esgoto mexe numa criança porque você não sabe qual o tipo de substância que tem nele (Participante 10).

 

 

DISCUSSÃO

 

A ideia coletiva dos participantes é sobre a responsabilidade exclusiva do Estado sobre a situação do saneamento nas cidades. A participação social e a necessidade de representatividade do segmento dos profissionais da saúde da localidade estudada em espaços decisórios em saúde e meio ambiente não foram mencionadas pelos estudantes como possíveis soluções para a problemática em questão. Este fato revela o despreparo dos estudantes para atuarem na constituição de ações e movimentos coletivos em distintos espaços sociopolíticos dentro e fora do território e que são indispensáveis à garantia dos direitos de acesso aos serviços de saneamento.

Tais resultados são corroborados pelo fato de que os profissionais de saúde não se percebem como atores corresponsáveis por esse processo de luta dos direitos sociais da população assistida. A representatividade pelos profissionais de saúde que atuam nos serviços da Atenção Primária à Saúde nos órgãos e nas instâncias deliberativas em saúde parece ser um aspecto isolado e desvinculado das atribuições destes profissionais3.

No contexto brasileiro, o controle social é uma das medidas legais fundamentais para se lograr os direitos à saúde e a seus determinantes, tal como, o acesso à água potável. A condução da política pública de saneamento em termos de controle social é limitada e pode se beneficiar de práticas no campo da saúde que orientam a mecanismos mais efetivos para este controle12.

Uma das situações que exemplificam a importância da participação dos profissionais da saúde nas instâncias deliberativas em saúde é a crescente influência das proposições e discussões das últimas conferências nacionais de saúde sobre as políticas públicas de ambiente e de informação em saúde e, assim, sobre a relação entre informação, saúde e ambiente13.

Enfermeiros não têm demonstrado envolvimento com problemas de saúde possivelmente originados de condições ambientais globais e locais e, tampouco, com a execução de práticas de sustentabilidade que previnam tais problemas14-15. Todavia, a atenção voltada para os critérios, conteúdos e estratégias de ensino-aprendizagem nos currículos dos cursos de graduação em enfermagem sobre sustentabilidade social e ambiental ainda é bastante restrita16.

Neste sentido, os resultados do presente estudo evidenciam que existem lacunas no processo de ensino-aprendizagem e no contexto formativo do enfermeiro no que se refere ao desenvolvimento de competências de um profissional crítico e participativo para cuidar do ambiente e da saúde da população brasileira, pois a busca da garantia dos direitos ambientais relativos ao saneamento também faz parte das ações de cuidado primário à saúde da população.

Na linha de pensamento de que o ensino está atrelado à pesquisa, a baixa produtividade científica sobre saneamento por pesquisadores da área das ciências da saúde17 pode ser outro fator associado à pouca e/ou ausente inclusão de temas ambientais como o saneamento no processo formativo do profissional enfermeiro.

Essa baixa produção de conhecimento sobre saneamento e saúde nas últimas décadas pode refletir o desinteresse sobre o tema saneamento como um relevante determinante ambiental de doenças humanas, em detrimento de outros que vêm sendo explorados e debatidos mais intensamente pela academia, como a exposição ocupacional e ambiental por agrotóxicos e metais pesados e a poluição atmosférica17-18.

Embora o número de mortes de pessoas, principalmente crianças menores de cinco anos, causadas por doenças relacionadas ao saneamento inadequado tenha declinado ao longo dos últimos 20 anos no mundo, ainda vivemos situações emergentes de doenças, epidemias, tragédias e sofrimento humano decorrentes de condições inadequadas de saneamento ambiental17.

Grande parte da população brasileira ainda adoece e morre por doenças e eventos causados pela contaminação da água e do solo por diversos patógenos e substâncias tóxicas, enchentes, desastres e inundações, que poderiam ser evitados pelo consumo de água potável e adequado destino dos resíduos sólidos, esgotamento sanitário e manejo e drenagem de águas pluviais18.

O risco de exposição ambiental a agrotóxicos, resíduos de medicamentos e metais pesados é elevado em comunidades sem acesso aos serviços públicos de saneamento. Tal exposição, por sua vez, eleva o risco de doenças crônicas, tais como o câncer e os transtornos metabólicos. Em crianças, a exposição aos contaminantes químicos ambientais (chumbo, mercúrio, agrotóxicos, dioxinas e furanospoliclorados, bifenilaspolicloradas), caracterizados como desreguladores endócrinos, podem provocar alterações hormonais e prejuízos ao crescimento e desenvolvimento físico e neurocognitivo infantojuvenil1,9. Estes problemas de saúde pública ainda são invisíveis para muitos profissionais e gestores da área da saúde9. Esta realidade está em consonância com os resultados de visão restrita dos estudantes sobre o risco de doenças infectoparasitárias decorrente das condições precárias de saneamento do território analisado.

Desse modo, a ausência da incorporação de conteúdos sobre a relação entre saneamento e saúde humana na formação do enfermeiro, provavelmente, se deve ao despreparo de professores para desenvolver ações de educação ambiental de forma efetiva ao ponto de sensibilizar os acadêmicos sobre valores e atitudes profissionais essenciais à superação dos problemas ambientais locais e globais2.

Nada obstante, um estudo demonstrou que docentes corroboraram que os conteúdos sobre determinantes socioambientais da saúde, sob a perspectiva global, devem ser obrigatórios e incluídos na grade curricular dos cursos de graduação em enfermagem, de modo que os futuros enfermeiros valorizem este conhecimento15.

Outro estudo revelou que estudantes de enfermagem consideraram que o currículo de sua formação apresentava uma abordagem superficial e incipiente das questões ambientais e de sua relação com a saúde coletiva4.

Destarte, a reformulação do currículo de graduação em enfermagem e a inserção de práticas pedagógicas socioambientais neste processo devem considerar a percepção e as atitudes ambientais dos estudantes, para que possam contribuir para a construção de conhecimentos e o desenvolvimento de habilidades dos estudantes sobre questões contemporâneas de sustentabilidade, em uma perspectiva holística e sistêmica socioambiental2,6.

O estudo de Betül Sayan & kaya5 constatou que a percepção de riscos ambientais e a atitude ambiental de estudantes de enfermagem foram relacionadas com os seguintes fatores: gênero, interesse em problemas ambientais, participação em atividade ambiental, desconhecimento de organizações não-governamentais de cunho ambiental e aproximação da noção de ambiente pelo curso.

Assim, urge a necessidade de inclusão de conteúdos relativos à subárea de conhecimento Enfermagem em saúde ambiental e de aplicação de metodologias ativas de ensino apropriadas para otimizarem o processo pedagógico sobre estes conteúdos nas matrizes curriculares e nos projetos político-pedagógicos dos cursos de graduação em enfermagem16,19.

Recomenda-se que a abordagem metodológica de ensino sobre desenvolvimento sustentável no currículo de enfermagem seja baseada na aprendizagem problematizadora e centrada nos estudantes, assim como uma educação ambiental eficaz seja planejada de forma multidisciplinar e transversal em todas as fases da formação do enfermeiro2,4,16

Um estudo demonstrou que práticas de educação ambiental baseadas na metodologia da problematização, em consonância com os preceitos da pedagogia freireana, têm culminado em resultados de percepção ambiental dos educandos próxima à reflexividade e criticidade sobre questões ambientais e mudança social20.

Outrossim, o uso de método ativo de ensino com estudantes de enfermagem pode estar vinculado a práticas de visita e assistência no território e nos serviços de saúde. O estudo de Nalom et al.21 evidenciou que a inserção dos estudantes em cenários da atenção primária à saúde como mecanismo ativo de aprendizagem possibilitou-lhes ampliar uma visão sistêmica sobre determinantes do processo saúde-doença.

Outros estudos2,6,19 revelaram que práticas de ensino associadas a atividades extensionistas e de pesquisa podem tornar viável o contato dos estudantes de enfermagem com o território e a complementação da aprendizagem em sala de aula, e, assim, constituírem-se em recursos valiosos para a aplicabilidade da metodologia ativa baseada na problematização para o ensino do cuidado em saúde ambiental.

Nesse ínterim, entre teoria e prática, a abertura de espaços acadêmicos poderá contribuir no preparo dos estudantes de enfermagem para compreenderem e atuarem sobre a dinâmica viva e complexa do processo saúde-doença no território, face à complexidade de fatores ambientais que impactam a saúde humana.

Ressalta-se, assim, a importância da realização de atividades de extensão, pesquisa e ensino teórico-práticas, a partir de propostas metodológicas ativas de educação ambiental, direcionadas ao empoderamento e ao engajamento dos acadêmicos de enfermagem, no âmbito das universidades e dos serviços de saúde, em ações que reduzam as condições de risco à saúde associadas aos serviços de saneamento ambiental.

Desse modo, o ambiente acadêmico tem a função de promover relações e ações necessárias para o entendimento da complexidade que envolve o cuidado, a ética e a sustentabilidade ambiental e sua interface com a qualidade de vida e a saúde humana22.

 

CONCLUSÃO

 

Os resultados evidenciam que existem lacunas no processo de ensino-aprendizagem e na formação do enfermeiro no que se refere às competências de um profissional crítico e participativo para adotar ações preventivas de doenças relacionadas ao saneamento ambiental.

A percepção limitada dos participantes sobre as dimensões físicas, biológicas, toxicológicas, sociais e políticas que envolvem a relação saneamento-saúde revela uma formação dedicada ainda ao modelo biomédico e despolitizada das questões socioambientais que repercutem na saúde.

Sugere-se que estratégias pedagógicas inovadoras de ensino, além de ações de extensão e de pesquisa, que contemplem metodologias ativas de aprendizagem, e propostas transversais nas matrizes curriculares dos cursos de graduação em enfermagem sejam utilizadas como ferramentas que possibilitem a ampliação da capacidade crítica e do conhecimento técnico-científico de graduandos de enfermagem sobre promoção da saúde, cuidado e sustentabilidade ambiental, inclusive sobre a interface entre saneamento e saúde.

Assim, as instituições formadoras devem fomentar o desenvolvimento de futuros profissionais enfermeiros para a compreensão dos fenômenos e busca da melhoria das condições ambientais e de saúde de indivíduos e grupos assistidos em contextos de vulnerabilidade socioambiental associados à ausência de serviços de saneamento.

Sinalizam-se limitações do presente estudo, que decorrem do fato da coleta de dados ter ocorrido apenas com estudantes de duas turmas de uma disciplina prevista no quinto período da matriz curricular de um curso de graduação em Enfermagem de um campus universitário do interior. Diante disso, destaca-se a necessidade de investigações futuras abordarem graduandos de enfermagem em diferentes períodos de aprendizagem do curso e de diferentes universidades brasileiras, para se evidenciar de modo mais visível a situação do ensino e da formação de enfermeiros para atuarem sobre questões contemporâneas de saúde e meio ambiente.

 

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Todos os autores participaram das fases dessa publicação em uma ou mais etapas a seguir, de acordo com as recomendações do International Committe of Medical Journal Editors (ICMJE, 2013): (a) participação substancial na concepção ou confecção do manuscrito ou da coleta, análise ou interpretação dos dados; (b) elaboração do trabalho ou realização de revisão crítica do conteúdo intelectual; (c) aprovação da versão submetida. Todos os autores declaram para os devidos fins que são de suas responsabilidades o conteúdo relacionado a todos os aspectos do manuscrito submetido ao OBJN. Garantem que as questões relacionadas com a exatidão ou integridade de qualquer parte do artigo foram devidamente investigadas e resolvidas. Eximindo, portanto o OBJN de qualquer participação solidária em eventuais imbróglios sobre a matéria em apreço. Todos os autores declaram que não possuem conflito de interesses, seja de ordem financeira ou de relacionamento, que influencie a redação e/ou interpretação dos achados. Essa declaração foi assinada digitalmente por todos os autores conforme recomendação do ICMJE, cujo modelo está disponível em http://www.objnursing.uff.br/normas/DUDE_final_13-06-2013.pdf

 

 

Recebido: 19/11/2019

Revisado: 29/01/2020

Aprovado: 29/01/2020