Habitus no cuidado à população de rua: um estudo etnográfico
Fabiana Ferreira Koopmans1, Donizete Vago Daher2, Magda Guimarães de Araujo Faria1, Hermes Cândido de Paula3, Emília Gallindo Cursino2
1 Universidade do Estado do Rio de Janeiro, RJ, Brasil
2 Universidade Federal Fluminense, RJ, Brasil
3 Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, RJ, Brasil
RESUMO
Objetivo: Analisar os elementos constituintes do habitus de profissionais de saúde pertencentes a duas equipes de Consultório na Rua, localizadas na zona oeste do município do Rio de Janeiro. Método: Estudo etnográfico, com realização de entrevistas, questionários e observação etnográfica. Os dados foram analisados segundo o conceito de habitus, proposto por Pierre Bourdieu. Resultado: Alguns elementos relacionados especificamente a estes profissionais foram semelhantes nas duas equipes, como trajetória profissional, percepção de suas práticas de cuidado e vinculação com populações vulneráveis. Discussão: Pode-se afirmar que estes profissionais possuem antecedentes que os fazem defender esse espaço de cuidado e tornam-se importantes para o desenvolvimento de suas práticas, como um habitus cultivado. Conclusão: A trajetória pessoal e profissional de todos os profissionais que participaram do estudo, somados à postura e à percepção sobre suas práticas foram determinantes na construção das práticas singulares de cuidado realizadas junto à população de rua.
Descritores: pessoas em situação de rua; vulnerabilidade; antropologia cultural.
INTRODUÇÃO
Para a efetivação do cuidado à população em situação de rua (PSR) deve-se, antes de tudo, conhecer a pessoa que mora na rua, tanto no âmbito pessoal quanto no social: as causas de morar na rua, as estratégias de sobrevivência, os formatos de vínculos socializados e construídos. Também se devem considerar novas formas de cuidado, superando o modelo tradicional, não focando especificamente a doença, mas no sujeito, ou melhor, no grupo de sujeitos (população em situação de rua). Isto implica em modificar e ampliar alguns aspectos como a escuta, o processo terapêutico, reconstruindo o trabalho proposto em manuais, considerados “normativos”. Assim, a proposta atual é discutir a singularização das práticas de cuidado, hoje realizadas pelas Equipes de Consultório na Rua (eCnaR). Para a compreensão de como são construídas estas práticas de cuidado e que elementos estão ligados a estas práticas, precisa-se compreender e entender como os profissionais constroem esse habitus de cuidado com esta população. Partimos do pressuposto que este habitus é construído a partir da trajetória dos sujeitos, tanto profissionais e pessoais, aliados a própria percepção.
O conceito utilizado pela Organização das Nações Unidas (ONU) para “população em situação de rua” está relacionado a desabrigados ou shelterless, como indivíduos que vivem na rua devido a tragédias naturais, guerras ou desemprego; ou homeless, como aqueles que não se enquadram como desabrigados(1). O decreto que instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua apresenta que as pessoas em situação de rua fazem parte de um grupo populacional, heterogêneo, que possuem em comum meios de sobrevivência em atividades produtivas, desenvolvidas na rua, com vínculos familiares rompidos ou fragilizados, sem referência de moradia regular(2).
Quando o Ministério da Saúde apresenta a proposta de instrumentalizar os profissionais de saúde da Atenção Básica para o trabalho com população da rua, apresenta a possibilidade da ampliação e construção de novas formas de atuação(3), demonstrando que não tem como “normatizar” estas práticas. Formas de cuidado são criadas no decorrer dos processos de trabalho e nas práticas dos profissionais que atuam diretamente com população de rua, levando em conta as necessidades de saúde destes sujeitos e das equipes de CnaR.
O Consultório na Rua (CnaR) se consolida após um movimento de luta pela ampliação do acesso à saúde para a população de rua, por meio de equipes especializadas e serviços da Atenção Básica. A abordagem de trabalho constitui em ofertar o cuidado em saúde para a pessoa no local onde se encontra, considerando suas condições de vida e cidadania(4).
Para analisar as concepções de cuidado das eCnaR, de acordo com as necessidades de saúde das pessoas em situação de rua, percebe-se que as interações entre os profissionais de saúde e as pessoas que moram na rua perpassam por influências culturais e sociais. Pretende-se discutir estas concepções de cuidado a partir da categoria de habitus de Pierre Bourdieu(5,6).
A noção de habitus para Pierre Bourdieu(5,6) está relacionado com as estruturas sociais, inseridas em determinadas condições sociais e históricas que “moldam” os corpos dos indivíduos introjetando-lhes valores, significados e condutas, que a partir daí constroem seu mundo social. Desta forma, os profissionais que atuam com a população de rua incorporam elementos específicos que são “construídos” através de suas vivências e no desenvolvimento de práticas com esta população. Esses elementos fazem parte deste habitus do profissional das eCnaR.
Para entender quais elementos estão inseridos nos profissionais, elegemos como objetivo: Analisar os elementos constituintes do habitus dos profissionais de saúde pertencentes a duas eCnaR.
Este trabalho é derivado de uma tese de doutorado do Programa Acadêmico em Ciências do Cuidado em Saúde, da Universidade Federal Fluminense.
MÉTODO
Trata-se de um estudo etnográfico, de cunho antropológico, desenvolvido em duas eCnaR, localizadas na zona oeste, do município do Rio de Janeiro. O estudo etnográfico facilitou a compreensão das práticas dos profissionais e a obtenção dos elementos ligados ao cuidado, através da imersão e observação da pesquisadora no campo. O fazer etnográfico pressupõe uma descrição da interpretação de cada indivíduo, dos acontecimentos, dos fatos, dos fenômenos, todos permeados pela cultura. Na descrição etnográfica, o que se interpreta é o fluxo do discurso social e a interpretação envolvida(7).
A pesquisa foi realizada por meio de observação participante, de entrevistas individuais e de questionário autoaplicado sobre as interações dos profissionais de saúde com os residentes de rua. Todo o processo de coleta dos dados ocorreu durante seis meses em cada equipe, com inserções dos pesquisadores nos espaços de trabalho dos profissionais, que constituíam espaços fechados como nos consultórios e nas Unidades de Saúde e em espaços abertos, como nas atuações nas ruas, entre os anos de 2018 e 2019. Todos os profissionais das duas eCnaR foram observados em suas práticas tanto dentro das Unidades de Saúde quanto nas ruas.
O questionário autoaplicado continha informações específicas sobre o perfil do profissional e elementos sobre a trajetória e percepção do sujeito da pesquisa. Estes dados foram agrupados em dois quadros (Quadro 1 e 2) para que pudessem ser analisados conjuntamente com os dados das entrevistas e da observação.
A observação etnográfica tinha o enfoque de acompanhar os profissionais e anotar em diário de campo como os profissionais atuavam e construíam suas práticas de cuidado. O questionário foi dado a cada profissional assim que foi apresentada a pesquisa e os termos de consentimento livre e esclarecido.
As entrevistas foram realizadas em diversos espaços de acordo com a disponibilidade de cada profissional, podendo ocorrer na rua ou na Unidade de Saúde. Todos os profissionais aceitaram participar das entrevistas. As perguntas das entrevistas foram baseadas no perfil do profissional, constituído de elementos baseados na trajetória educacional, familiar e profissional e na percepção de cada sujeito sobre sua trajetória de cuidado em saúde.
Os participantes constituíram de 22 profissionais, das duas equipe de CnaR. Todos os participantes constituíram de profissionais que atuam como “apoio” à eCnaR e profissionais que atuam nas eCnaR, oriundos de várias categorias da área da saúde: médico, enfermeiro, psicólogo, dentista, assistente social, técnico de enfermagem, agente de rua. O critério de inclusão foi ser profissional que trabalhasse com cuidado à pessoa que mora na rua e que fizesse parte das eCnaR há mais de um ano. O critério de exclusão perpassou pelos profissionais que estavam de licença trabalhista durante o período da pesquisa.
Os dados gerados na pesquisa de campo foram analisados e discutidos através de categorias que emergiram, a partir do conceito de habitus proposto por Pierre Bourdieu.
Para Bourdieu, analisa-se o agente individual real dentro do campo; na sua formação, trajetória e posicionamento, constituindo de traços individuais das características dos indivíduos(8). Para pesquisa, isto significa trabalhar aspectos como biografia, trajetória (pessoal e profissional) e a prática local em relação à lógica de prática dos campos em que elas ocorrem(9).
Este artigo apresenta uma parte dos dados analisados mais referentes aos elementos do perfil profissional. Para apresentar estes dados e a análise, foram construídos dois quadros com as informações do questionário autoaplicado e os dados referentes às entrevistas e observações etnográficas foram apresentados através de duas categorias: “Vivência profissional com populações vulneráveis” e “Percepção sobre práticas de cuidado à população da rua”.
O estudo foi aprovado pelo Comité de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, do Hospital Universitário Antônio Pedro, da UFF e pela Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, pelo n.º 2.308.442. Foi garantido o anonimato dos participantes através da utilização da letra “E”, seguida do n.º da entrevista, com números sequenciais de E1 a E10 para a equipe da Área Programática 5.3 e números sequenciais de ER1 a ER12 para a equipe da Área Programática 5.1, ambas do município do Rio de Janeiro.
RESULTADO E ANÁLISE
Para apresentar os elementos ligados ao cuidado entre os profissionais participantes da pesquisa que atuam nos dois CnaR e, desse modo, buscar compreender quem são esses sujeitos, construiu-se um quadro com algumas variáveis relacionadas especificamente aos profissionais, como a trajetória profissional e a percepção do seu trabalho. Para análise e apresentação, foram construídas duas tabelas para cada equipe de consultório na rua. Será apresentada primeiro o Quadro 1, com dados referentes à equipe de CnaR da Área Programática 5.3 e, posteriormente, o Quadro 2, com os dados referentes da Área Programática 5.1.
Quadro 1: Elementos ligados ao habitus dos sujeitos das eCnaR – Área programática 5.3 do município do Rio de Janeiro, 2019:
Identificação/ Idade |
Profissão/ Ocupação |
Tempo de Trabalho com PSR |
Conexões com populações vulneráveis |
Trajetória Profissional |
Vinculação com a prática |
E1 68 anos |
Médico |
4 anos |
Ações no Sistema prisional |
Professor de psiquiatria e médico do sistema penal |
Atendimento a pacientes |
E2 31 anos |
Psicóloga |
3 anos |
Ações na graduação e na pós-graduação |
Desde formação, atendeu demandas de PSR |
Satisfação pelo trabalho desenvolvida |
E3 35 anos |
Enfermeira |
4 anos |
Ações no PSF |
PSF com populações vulneráveis |
Vínculo com transferência de realidade |
E4 33 anos |
ACS |
1 ano |
Ações como ACS em equipes tradicionais |
ACS de equipe tradicional |
Paciência |
E5 54 anos |
ACS |
4 anos |
Ações como ACS |
ACS de equipe tradicional |
___ |
E6 45 anos |
Agente social |
4 anos |
Ações como ACS |
ACS de equipe tradicional |
Fazer a diferença |
E7 45 anos |
Apoiador enfermeiro |
4 anos |
Ações como enfermeiro na ABS |
Professor e Enfermeiro de Atenção Básica |
Facilitar o acesso |
E8 40 anos |
Apoiador dentista |
4 anos |
Ações na Amazônia com população indígena |
Dentista na ESF e com população ribeirinha na Amazônia |
Ajudar pessoas em grau de vulnerabilidade |
Fonte: Elaborado e adaptado pela autora, a partir do quadro de extração de habitus, apresentado no capítulo Espaço Social de Cheryl Hardy (10).
Referente à eCnaR, os profissionais eram médico, enfermeiro, psicólogo, assistente social, agente social e dois outros agentes de saúde. Nesta equipe há presença de dois “apoiadores” que também fizeram parte da pesquisa. O quadro 1 mostra que todos os profissionais estão entre a faixa etária de 30 e 49 anos. Com relação ao tempo cronológico de trabalho no espaço da Atenção Básica à Saúde, a grande maioria atua há mais de 10 anos. Em relação ao trabalho na equipe de CnaR, a maioria atua há mais de 4 anos.
Quadro 2: Elementos ligados ao habitus dos sujeitos das eCnaR – Área Programática 5.1 do município do Rio de Janeiro, 2019
Identificação/ Idade |
Profissão/ Ocupação |
Tempo de Trabalho com PSR |
Conexões com populações vulneráveis |
Trajetória Profissional |
Maior vinculação à prática |
E1 R 31 anos |
Enfermeiro Apoiador |
3 anos |
Ações como enfermeira e gerente na ABS |
Na ESF, como enfermeira e gestora da Unidade desde 2011 |
Condução dos casos e implementação de estratégias |
E2 R 44 anos |
Psicólogo Apoiador |
15 anos |
Ações desenvolvidas desde a graduação |
Atua como psicólogo na ABS e como apoiador |
Dar visibilidade e o resgate a cidadania |
E3 R 38 anos |
Agente social |
3 anos |
Como ACS |
Na ABS (15 anos) |
Garantir o acesso e a retomada social |
E4 R 42 anos |
Agente social |
5 anos |
Como ACS e no desenvolvimento de práticas integrativas |
Na ESF (11 anos), com desenvolvimento de terapia comunitária e práticas integrativas |
Cuidado integral à PSR |
E5 R 47 anos |
Assistente social |
2 anos |
Somente no CnaR |
Não atuava na saúde, atuava como promotora de vendas |
Trabalhar com pessoas |
E6 R 24 anos |
Terapeuta ocupacional, Residente |
1 ano |
Como terapeuta na saúde mental |
Atuou na Psiquiatria (1 ano), depois no CAPs e no NASF (1 ano), agora no CnaR |
Favorecer o acesso e construir possibilidades de cuidado |
E7 R 37 anos |
Técnica em saúde bucal |
3 anos |
Como técnica de saúde bucal |
Na ESF (6 anos) como técnica de saúde bucal |
Acolhimento e vínculo |
E8 R 38 anos |
Terapeuta ocupacional |
2 anos |
Desenvolvendo trabalhos sociais desde os 18 anos, depois com adolescentes na rua |
Na ABS (4 anos), trabalhando com adolescentes em situação de uso abusivo de substâncias psicoativas |
Vínculo |
E9 R 43 anos |
Enfermeiro |
1 ano |
Como enfermeiro na ESF |
Na ESF (2 anos) como enfermeiro, em comunidades com muitos casos de gravidez e tuberculose |
Poder de atuação nos casos e pactuação nas redes |
E10 R 49 anos |
Médico de Família |
9 anos |
Como médico na ESF no Rio e em SP |
Residência médica em Ginecologia e obstetrícia (2002 a 2004), com atuação desde 2004 na ESF (PSF Manguinhos/ FIOCRUZ) |
Relações humanas de usuários e serviços, adaptação de protocolos à realidade local |
E11 R 56 anos |
Técnica de enfermagem |
3 anos |
Experiência anterior como ACS |
Na ESF, como ACS há 12 anos |
Ajudar ao próximo |
E12 R 39 anos |
Agente social |
3 anos |
Como ACS |
Na ESF como ACS há 12 anos |
Trabalho em equipe |
Fonte: Elaborado e adaptado pela autora, a partir do quadro de extração de habitus, apresentado no capítulo Espaço Social de Cheryl Hardy (10).
O quadro 2 apresenta os elementos dos profissionais da eCnaR da Área Programática 5.1. Evidenciam-se semelhanças, mas, também, atributos específicos que estão contidos neles. A maioria está compreendida entre a faixa etária de 30 e 49 anos. Sobre suas trajetórias profissionais, a maioria também tem experiência na área da Atenção Básica, com atuação na equipe de consultório na rua há mais de um ano. Mas, no geral, a média é de 3 anos.
Vivência profissional com populações vulneráveis
Em ambas as equipes, os sujeitos apresentam trajetórias profissionais com populações vulneráveis, o que de certa forma favorece o perfil profissional para realizar práticas de cuidado com população de rua.
Em relação às conexões com o trabalho com populações vulneráveis, os sujeitos demonstram aproximação com práticas junto a diversos tipos de população em situação de vulnerabilidade. Desta forma, estes sujeitos trazem para o cenário do Consultório na Rua formas já construídas anteriormente de trabalho com grupos vulneráveis, o que lhes conferem possíveis formas diferenciadas de cuidado:
Na verdade, com o CnaR eu trabalho há 4 anos e meio, mas eu já tenho experiência em ESF em PSR. Ao todo tenho 9 anos. (E7)
[...] Mesmo trabalhando em comunidade e tendo pessoas vulneráveis, a gente viu que a vulnerabilidade de quem está na rua é muito diferente. (E3 R)
[...] nessa Unidade, três e pouquinho, que é o tempo de existência da equipe e em São Paulo, eu trabalhava no CAPS AD que faz atendimento... tinha um consultório na rua também, mas eu era médico do CAPS AD. Então, a gente fazia o atendimento de população de rua. [...] Eu acho que é isso o que casou com esse trabalho, né? De conseguir trabalhar com quem é mais vulnerável, né? E não é um vulnerável simples, é um vulnerável complexo. (E10 R)
Mas há, também, profissionais que relataram mesmo trabalhando agora no Consultório na Rua, o contato com esta população já vinha de atuações anteriores, como mostram os depoimentos:
Não, nunca atuei, quer dizer, na cadeia tem. Eu trabalhava no sistema penal, como psiquiatra. (E1)
Sim, trabalhei em CAPSAD, já tinha contato com PSR, agora trabalhar profissionalmente mesmo foi no início de 2014, que eu trabalhava no Hospital Geral, na Ortopedia, emergência, não era especialmente a pessoa que (es)tava morando na rua, mas a gente recebia muito os pacientes que (es)tavam na situação de rua na internação. (E2)
Sim, por causa da igreja, fora do consultório, eu também exerço, já fazia antes como ação social, sempre na rua trabalhando com eles, já tem uns 15, 20 anos. (E6)
O perfil profissional conecta-se como um atributo indispensável para o trabalho na rua. Ele não aparece no começo de uma prática de cuidado, como muitos apontam. Ele foi sendo introjetado, incorporado ao sujeito-profissional, representando o somatório de sua trajetória pessoal e profissional acrescido de suas percepções e seus valores.
[...] eu já tinha um perfil para esse atendimento mesmo sem saber que perfil era esse. É... então quando eu fui trabalhar..., o perfil daquela população é muito precário, era muito vulnerável. Então... já que quando eu entrei para Saúde da Família, essa mudança já foi... é... natural (E10R)
[...] ter um perfil para trabalhar com essa população, porque se você não tiver, você também não consegue, né? Porque você vê de tudo um pouco, você tem que colocar muitas coisas de lado quando você entra no consultório na rua... parte religiosa... coisa que... coisas que você acredita... muitas coisas você tem que colocar de lado, pra você estar no consultório na rua. Eu acho que tem que ter perfil, perfil e articulação (E11R).
As falas trazem a importância de se ter perfil singular para se trabalhar com população em situação de rua, e que a presença desse outro vulnerável na vida profissional faz com que repensem e revisitem não somente suas práticas de trabalho, mas os fazem rever práticas cotidianas da vida:
[...] de me colocar no lugar do outro né, o que quero pra mim eu não quero pro outro, então é uma coisa que ainda me choca muito porque eu tenho muito pouco tempo com a PSR, [...] que me incomoda é que o olhar das pessoas com naturalidade para aquelas pessoas que estão deitadas em colchões nas ruas é uma coisa que realmente ainda, incomoda de ver como aquilo ali passa despercebido pros outros, isso não quero pra mim. Quero que sempre me incomode pra poder trazer isso pro nosso dia a dia aqui no trabalho, então é isso. (E8)
[...] de permitir mudança, essa transformação, porque nenhum lugar é igual ao outro, eu sou uma pessoa que estou sempre me permitindo me transformar, tomara que me transforme numa pessoa melhor, né? (E8)
[...] não só população de rua, eu me coloco muito no lugar do outro. Às vezes, a gente vê, tô falando no geral, a gente tem que tratar a pessoa de igual pra igual [...] nós precisamos do dinheiro pra se manter, mas se você não tiver o perfil pra trabalhar, pra fazer aquilo, o dom de cuidar do outro, de chegar, de fazer a mudança, de fazer a barba, porque não é só fazer a medicação, [...] eu acho essa ação muito importante, o cuidar do outro. (E2)
Percepção sobre práticas de cuidado à população da rua
As diferentes percepções em relação ao cuidado desenvolvido para com a população de rua conectam-se e podem ser resumidas em três fortes categorias: vínculo, acolhimento e resolutividade. Os profissionais apontam em suas falas: “condução dos casos e implementação de estratégias”, “dar visibilidade e o resgate à cidadania”, “garantir o acesso e a retomada social”, “favorecer o acesso e construir possibilidades de cuidado”, “poder de atuação nos casos e pactuação nas redes”, “adaptação de protocolos à realidade local” e “ajudar ao próximo”.
A percepção que os sujeitos da pesquisa têm do lugar que ocupam para promover saúde à população de rua e o entendimento de ser importante para que este cuidado aconteça está presente nas falas e foi também observado nas incursões etnográficas. A própria percepção deles sobre seu trabalho os faz se colocarem, também, como figuras essenciais para o cuidado com a população em situação de rua. Há uma identificação própria com o trabalho que desenvolvem, como percebido em algumas falas:
[...] acho que isso tem a ver muito com identificação mesmo do trabalho, né? Assim, sempre me identifiquei desde lá à primeira etapa com saúde indígena, sempre me identifiquei muito com a atenção primária mesmo, [...] a pessoa tem que ter perfil, se não, não fica, né? Ou se fica, fica a duras penas, mas foi por identificação mesmo do trabalho, desse olhar mesmo, que tem com o que é diferente na minha vida, então é diferente. Acho que tem que querer muito fazer a diferença pra poder fazer um trabalho de qualidade, né? Então acho que é isso mesmo. (E8)
[...] a gente tem que sentar do lado deles e participar, a gente sente até assim bem quando a gente chega, porque ninguém olha pra uma pessoa que mora na rua, se a gente observar, senta num lugar e fica observando, entre uma pessoa que tá ali sentado e uma pessoa que passa, ela não olha, é como se ela fosse um papel ali, e não é isso, se a gente for colher a história daquele indivíduo, a gente começa a ver quem é ele, a gente vê que ele estudou, tem estudo, tem profissão, ele tá ali agora, por que ele tá ali? [...] (E2)
E destacam, ainda, para a importância do processo relacional entre o profissional e usuário:
[...] Eu acho que é... o manejo das relações. É... eu acho que todo o trabalho desse profissional é baseado nisso. É o manejo de como você se relaciona. Ou com o usuário ou com a rede [...] (E10R)
[...] A minha função é de explicar risco, vantagem, porque que precisa, porque que não precisa, porque é importante... tentar dar um significado pra algo que ela talvez não conheça. Isso é mais importante do que prescrever alguma coisa. Então se eu consigo fazer isso, abre espaço pra que após o encontro a terapêutica aconteça. (E10R)
Com a população em situação de rua já é diferente porque a rua já é dada para ela... então você tem que trabalhar agora com uma proposta em saúde cuidando do sujeito, por mais que você veja... tenha uma visão holística do espaço onde ele está [...] (E12R)
DISCUSSÃO
A partir dos dados apresentados, percebe-se que a vivência e a atuação anterior com população vulnerável, independente do tempo que ocorreu, favorece a criação de um perfil singular para trabalhar com a população de rua. Muitos profissionais já desenvolviam práticas a grupos similares antes de comporem as equipes de CnaR, que se tornaram essenciais para construção deste habitus de cada um deles.
As várias experiências narradas sobre práticas anteriores junto a pessoas em situação de vulnerabilidade, seja atuando na Estratégia da Saúde da Família até mesmo em “obras” sociais, demostram a “pré-disposição” ou engajamento dos profissionais para o trabalho com esse grupo populacional. Tais experiências ajudam a entender a construção da familiaridade do trabalho com populações vulneráveis e o específico contexto de práticas com eles realizadas, mesmo que não exercesse anteriormente o trabalho com população de rua.
Os elementos constituintes do perfil profissional de hoje estão diretamente conectados, para todos os entrevistados, aos seus antecedentes familiares, aos valores e às experiências de antes de se tornarem os profissionais de hoje. Este conjunto contribuiu para o trabalho atual com população de rua. Perfil que foi sendo moldado e que muitos até não se dão conta dele. Isto é o habitus! E que se torna presente quando do desenvolvimento das práticas de cuidado com esta população.
A trajetória pessoal e profissional de todos os agentes que participaram do estudo, somados à postura e à percepção sobre suas práticas foram determinantes na construção das práticas singulares de cuidado realizadas junto à população de rua. Os profissionais relatam a necessidade de se ter um perfil específico para trabalhar com população de rua e da própria importância deste trabalho para a construção de vínculo e de articulações para as práticas de cuidado ocorrerem.
Para Bourdieu, compreender a prática é preciso relacionar as “regularidades” dos campos sociais à lógica prática dos atores. A fonte desta lógica prática é o habitus(11).
O habitus enfoca nosso modo de agir, de ser, de sentir e de pensar(6). Ele captura como nós carregamos nossa história dentro de nós e a trazemos para as circunstâncias da vida, como fazemos nossas escolhas. Esse conjunto de escolhas depende de nosso contexto atual e nossa jornada passada.
Desta forma, este cuidado torna-se mais familiar, compondo as estruturas subjetivas dos sujeitos, podendo determinar algumas práticas específicas de cuidado à população de rua, além de se sentirem satisfeitos com sua própria atuação.
CONCLUSÃO
O vínculo favorece o trabalho, constituindo elemento importante para constituir o perfil para trabalhar com população de rua. O tempo de cuidado à população de rua também favorece a formação deste perfil, assim como sua experiência na Atenção Básica e na eCnaR.
A vivência anterior com população vulnerável faz com que práticas realizadas, que constitui o habitus desse profissional, favorecessem formas de cuidado diferenciadas e resolutivas. A forma de agir desse profissional encontra-se introjetada com o somatório de sua trajetória profissional e pessoal, com suas percepções e valores.
A limitação deste artigo passa pelo estudo ter sido realizado em somente duas eCnaR, não abrangendo mais participantes para a pesquisa. Como seu método é etnográfico, a imersão no cenário da pesquisa leva tempo, não podendo, neste momento, por fazer parte de um estudo de doutorado, por causa do tempo, abranger outros participantes de outras eCnaR.
Recomenda-se, neste estudo, que as seleções dos profissionais que atuam com população de rua, para favorecer o vínculo com esta população e favorecer práticas singulares a este público sigam alguns elementos apresentados, como tempo de prática na Atenção Básica e com população vulnerável e outros elementos que fazem parte do perfil deste profissional.
REFERÊNCIAS
1. Trino AT, Machado MPM, Rodrigues RB. Conceitos norteadores do cuidado junto à população em situação de rua. In: Saberes e Práticas na Atenção Primária à Saúde. São Paulo: Hucitec, 2015. p. 27-44.
2. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome (BR). Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação. Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua. 2009.
3. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Manual sobre cuidado a saúde junto a população em situação de rua [internet]. 2012. Available from: http://189.28.128.100/dab/docs/publicacoes/geral/manual_cuidado_populalcao_rua.pdf
4. Rangel V. Apresentação. In: Saberes e Práticas na Atenção Primária à Saúde. São Paulo: Hucitec, 2015. p. 15-18.
5. Bourdieu P. La Distinction - Critique Sociale Du Jugement. 3.ed. Paris: Minuit, 2015.
6. Bourdieu P. Choses dites. 5.ed. Paris: Minuit, 2016.
7. Geertz C. The interpretation of cultures. 3.ed. New York: Basic Books, 2017.
8. Pacheco MEAG. Public policy and capital social: the Projeto Consultório de Rua. Fractal rev. psicol. (online) [internet] 2014 Apr [Cited 2019 Aug 29]; 26(1):43–58. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1984-02922014000100005&lng=en&nrm=iso&tlng=en
9. Grenfell M. Pierre Bourdieu: Key Concepts. 2.ed. London: Acumen, 2012.
10. Hardy C. Espaço Social. In: Grenfell M. Pierre Bourdieu: conceitos fundamentais; tradução de Fabio Ribeiro. Petrópolis: Vozes, 2018.
11. Maton K. Habitus. In: Grenfell M. Pierre Bourdieu: Key Concepts. 2.ed. London: Acumen, 2012. p. 48–64.