Interface entre cuidado à saúde da criança e a formação profissional: estudo original

 

Pamela Silva George1, Donizete Vago Daher2, Emília Gallindo Cursino2, Adriana Teixeira Reis3, Fabiana Ferreira Koopmans3

 

1 Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro

2 Universidade Federal Fluminense

3 Universidade do Estado do Rio de Janeiro

 

RESUMO

Objetivo: Compreender a efetivação da linha de cuidado integral à saúde da criança na Estratégia Saúde da Família e suas interfaces entre a prática e a formação. Método: Pesquisa qualitativa, descritiva e exploratória, do tipo estudo de caso, realizada com observação e entrevistas com profissionais médicos e enfermeiros. Analisaram-se os dados a partir de análise temática de conteúdo. Resultados: Três categorias foram geradas: Fragilidade da formação acadêmica frente a temática saúde da criança na Estratégia Saúde da Família; Desconexão entre teoria e prática frente ao cuidado à saúde da criança; Entre muitos limites e algumas possibilidades na efetivação de práticas integrais. Conclusão: Tornam-se necessárias ações de educação permanente para qualificação das práticas, assim como a ampliação das discussões sobre o tema na formação acadêmica.

Palavras-chave: Cuidado da Criança; Estratégia Saúde da Família; Capacitação Profissional; Capacitação de Recursos Humanos em Saúde.

 

 

INTRODUÇÃO

O cenário de assistência à saúde da criança no Brasil tem passado por transformações e está em processo de reorientação para um modelo mais inclusivo, onde as famílias são convidadas a participarem mais ativamente e sob a perspectiva da integralidade do cuidado. Esta mudança também se ancora no fato de ainda existirem lacunas no cuidado à criança, nas relações organizacionais e administrativas, no fortalecimento das políticas públicas, no modelo de processo de trabalho, no processo continuado de educação em saúde e na formação dos recursos humanos(¹).

No Brasil, os Ministérios da Saúde e da Educação, visando melhorias na assistência à saúde da população, reorientaram o modelo do Sistema Único de Saúde (SUS), passando a enfatizar a Atenção Primária de Saúde como um dos importantes espaços para a formação de profissionais. Ao longo dos anos, políticas públicas diferenciadas emergiram no intuito de atender às necessidades dos diversos segmentos populacionais. A atenção à saúde da criança representa um marco que fortalece a ótica da integralidade do cuidado. Mostra-se como um passo importante para o reconhecimento dos direitos da criança com objetivos para além da redução da mortalidade infantil, mas para o compromisso de se prover qualidade de vida para a criança.(²)

O cuidado a criança no SUS, perpassa pela rede de assistência que permite ofertar à população uma atenção continuada por meio do serviço de saúde, percebendo o usuário como um sujeito com suas próprias subjetividades.(³)

Diante disso, elegemos como questão de pesquisa: Os profissionais que atendem crianças no contexto da Estratégia Saúde da Família (ESF) têm formação que os instrumentalize para a efetivação da linha de cuidado integral a este grupo populacional?

Este estudo objetiva compreender a efetivação da linha de cuidado integral à saúde da criança na Estratégia Saúde da Família (ESF) e as interfaces entre a prática e a formação profissional.

 

MÉTODO

Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa, do tipo estudo de caso, realizado entre os anos de 2016 e 2017, no Município do Rio de Janeiro – RJ. Os treze (13) participantes do estudo foram profissionais de saúde (médicos e enfermeiros) atuantes há mais de seis meses em uma das oito equipes de ESF, com práticas realizadas diretamente na linha de cuidado integral à criança. Foram excluídos os profissionais que estavam de férias ou licença no período de realização do trabalho de campo.

Para a apreensão dos dados, utilizou-se a observação não participante, através de um guia construído pelas pesquisadoras e entrevista semiestruturada, com questões abertas para apreensão das percepções e experiências dos entrevistados, abordando questões relacionadas à implementação de ações e estratégias da assistência integral à criança.

A pesquisa foi aprovada em dois Comitês de Ética, e obteve aprovação de ambos sob os pareceres números 1.922.876 e 2.054.266, respectivamente. Todas as diretrizes da Resolução 466/12 foram atendidas. Todos os quesitos éticos foram atendidos. Para a garantia do anonimato dos participantes, foram utilizadas as siglas PM (Profissional Médico) e PE (Profissional Enfermeiro), seguidas de número arábico (1, 2, 3,...) de acordo com a realização das entrevistas.

Utilizou-se a análise temática para compreensão dos depoimentos. A análise temática possibilitou gerar três categorias: 1) Fragilidade da formação acadêmica frente à temática saúde da criança na ESF; 2) Desconexão entre teoria e prática frente ao cuidado à saúde da criança; 3) Entre muitos limites e algumas possibilidades na efetivação de práticas integrais.

 

RESULTADOS

Os participantes foram profissionais de saúde: sete médicos e seis enfermeiros.  A faixa etária variou de 25 a 47 anos, com média de 35 anos, revelando profissionais jovens, com tempo de formação entre 1 ano e 16 anos.

Quanto ao sexo, oito (61,5%) eram do sexo feminino e cinco (38,5%) do sexo masculino, demonstrando que o perfil dos profissionais atuantes na Atenção Básica de Saúde, é, na sua maioria, mulheres, principalmente na Enfermagem, com idades de 23 a 55 anos de idade.(4)

Sobre a formação acadêmica, evidenciou-se que onze dos treze entrevistados se formaram em instituições de ensino particular. Desse total, oito possuíam pós-graduação, e apenas dois tinham formação na Atenção Primária de Saúde.

Não houve, contudo, nenhum entrevistado que tivesse participado da modalidade de residência ou especialização em saúde da família. Já em relação à pós-graduação, comparando os resultados da nossa pesquisa com os resultados do Ministério da Saúde(5), segundo os quais apenas 39,53% dos médicos apresentavam especialização e 37,16% concluíram residência médica, constatamos um grau de especialização dos profissionais semelhante ao panorama nacional: 3 (43%) dos médicos tinham especialização, e nenhum apresentava residência médica. No total, 4 (57%) dos médicos não tinham nenhum tipo de especialização.

Quanto ao perfil de especialização dos enfermeiros, 5 (83%) tinham curso de especialização em diferentes áreas. Ao compararmos com a pesquisa do MS do ano 2000(5), que encontrou apenas 5,5% dos enfermeiros especializados no panorama nacional da Atenção Básica em Saúde (ABS), notamos, um grau de especialização dos enfermeiros entrevistados. Apenas 1 enfermeiro (17%) não possuía qualquer tipo de especialização ou residência.

Percebe-se que várias são as dificuldades vivenciadas no cotidiano do trabalho de profissionais das unidades de saúde da família, geradas, por exemplo, pela rápida expansão das equipes.(6)

Um depoente PE8 possuía especialização em gestão em ESF, que se difere da especialização em ESF. A pós-graduação em gestão tem o objetivo de formar um profissional capaz de desenvolver competências gerenciais, já a especialização em saúde da família, por outro lado, tem o objetivo de capacitar o profissional da saúde para compreender, planejar, executar e avaliar as ações em saúde da família.(7)

O tempo de atuação dos entrevistados na ESF variou de 8 meses a 15 anos; a maioria dos participantes, no entanto, tinha mais de um ano de trabalho na APS. Esse é um dado importante, pois demonstra que os profissionais devem possuir experiência e conhecimento de fluxos e protocolos para melhor atenderem às crianças, considerando, portanto, a sua singularidade.

Dentre os médicos, 86% tinham até três anos de trabalho e 43%, menos de um ano. Semelhante pesquisa foi realizada pelo Ministério da Saúde(5), e não houve significativa mudança nesse perfil, que antes era de 42,6%. Isso demonstra que persiste uma alta rotatividade desses profissionais na ESF, o que compromete o processo de trabalho, a efetivação do seguimento do cuidado integral à criança e fragilização do vínculo do profissional, o conhecimento de fluxos e protocolos e a educação permanente.

Quanto ao tempo de formação dos enfermeiros que atuam na ABS, este é similar ao seu tempo de atuação na ESF. Isso demonstra que esses profissionais ao se formarem inserem-se, imediatamente na ESF. Dentre os enfermeiros 17% tinham até três anos de atuação, e a sua grande maioria, 83%, tinha mais de três anos de atuação na ESF. Essa categoria de profissionais apresenta um maior tempo de trabalho nesse nível de atenção e este percentual está em crescimento, indo ao encontro da pesquisa realizada pelo MS(5), que mostra um percentual de 44% de enfermeiros atuantes há menos de um ano na ESF.

 

DISCUSSÃO

Fragilidade da formação acadêmica frente à temática saúde da criança na ESF

Em relação a essa categoria, pudemos observar que, quando os participantes foram indagados acerca da sua formação profissional, eles levantaram questões sobre o seu despreparo para atuar diante das singularidades que as crianças demandam à APS. Para alguns entrevistados, a formação foi bastante genérica no que tange à saúde da criança na APS. Um dos profissionais destacou, por exemplo:

[...] não tive nada na minha formação referente à saúde da criança em AB ou ESF, só um pouco de hospital (PM7).

Assim, percebemos que os conteúdos referentes aos cuidados à criança, durante a formação, além de serem reduzidos, privilegiam os cuidados no âmbito hospitalar, sumarizando os conteúdos que subsidiarão as práticas no âmbito da APS. Outro entrevistado afirmou ainda que:

[...] relacionado à atenção básica em saúde da criança, ou para atuar na ESF não tivemos nada. Apenas o que se aproximou um pouco foram as atuações no ambulatório que a gente fazia [...]. Era basicamente isso, por dois meses no primeiro ano e por dois meses no quinto ano. Depois eram sempre conteúdos para criança internada em hospital (PM2).

A grande maioria dos entrevistados, 10 entre os 13 participantes, relatou que em sua formação acadêmica os conteúdos relacionados à linha de cuidado à criança na ESF foram muito frágeis, o que hoje repercute nas suas práticas profissionais, gerando muita insegurança e dependência de outros profissionais. Constata-se, assim, que não foram implementadas as mudanças sugeridas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) socializadas em 2001 e 2014, dado que todos os participantes são egressos pós implantação das DCNs.(8-9)

A formação dos profissionais de saúde era orientada pelo paradigma biomédico, biologicista e curativista. O ensino ofertado pelas escolas de formação em saúde era desarticulado frente às reais necessidades de saúde da população brasileira, com modalidades de ensino ainda neste modelo.(10) Nota-se, pois, que são pouco destacados e trabalhados conteúdos importantes, por exemplo, os determinantes sociais de saúde, a territorialidade, a vulnerabilidade e o cuidado integral à criança associado ao contexto social e familiar, como se comprova no depoimento:

[...] em relação à saúde da criança na atenção básica ou na ESF a gente teve muito pouco, focado quase sempre nas doenças transmissíveis, das doenças diarreicas, gripais. Hoje motivo de insegurança (PE1).

Apesar de alguns esforços e avanços, no Brasil os saberes do campo da Pediatria ainda centram a atenção exclusivamente no indivíduo e na patologia, com maior ênfase à criança hospitalizada. Aponta-se como imprescindível e premente a reorientação da formação dos profissionais, seja no âmbito acadêmico, seja nos serviços por meio de ações de educação permanente, tendo como norte a integralidade das práticas. Contudo, identifica-se ser este um grande desafio.(2)

Desconexão entre teoria e prática frente ao cuidado à saúde da criança

Os profissionais entrevistados apontaram para uma tênue conexão entre os conteúdos ofertados e as práticas realizadas. Assim, relataram ser prioritária a oferta sistemática de capacitações nos serviços, na medida em que não se sentem seguros e competentes para atuarem na prática traçando ações integrais e na perspectiva da singularidade do atendimento à criança na ESF. Estes relatos foram recorrentes e pode ser constatado no depoimento a seguir:

[...] teve uma única capacitação referente à Pediatria cujo objetivo era ensinar a avaliação no momento do primeiro atendimento da criança na ESF. Mas acabou sendo a maior parte deste treinamento focado na atenção hospitalar (PM11).

Deste modo, ficou evidenciado, tanto na observação da pesquisadora como nos relatos, que a oferta de capacitações especificamente relacionadas à saúde da criança foi reduzida. Os depoentes PE5 e PE8 foram os únicos a realizarem capacitação relacionada à amamentação, ofertada pelo projeto “Iniciativa Unidade Básica Amiga da Amamentação” - IUBAM. Alguns dos entrevistados ainda relataram que, para amenizar suas dúvidas quando estas se apresentavam durante as práticas, recorriam aos protocolos de saúde da criança da Subsecretaria de Atenção Primária, Vigilância e Promoção da Saúde (SUBPAV). Entretanto, não foram mencionados acessos a documentos relevantes que deveriam ser familiares para profissionais que atuam com crianças, por exemplo: Atenção Integrada às Doenças Prevalentes na Infância; e Agenda de Compromisso para a Saúde Integral da Criança e Redução da Mortalidade Infantil.

Os entrevistados também não mencionaram o acesso às Políticas de Saúde voltadas para a criança, para melhor subsidiar suas práticas profissionais. Evidencia-se, assim, uma prática profissional com predominância de enfoque técnico-instrumental, indicando, deste modo, para a urgente necessidade de ampliação de oferta de capacitações em serviço que ultrapassem, exclusivamente, o manejo clínico da população infantil.

A fragilidade da capacitação profissional dentro da ESF é uma realidade, mesmo sendo defendidas como ferramentas fundamentais, são consideradas insuficientes.(11) Os depoimentos ratificam tal lacuna na oferta de capacitação:

[...] não tive nenhuma capacitação especificamente para saúde da criança aqui na ESF. Especificamente para saúde da criança aqui, nunca tive capacitação não. Aprendemos é no dia a dia mesmo (PM2). Não passei por nenhuma capacitação em saúde da criança em atenção básica, nem na minha formação e nem em serviço [...] (PE6).

Em 2007, o Ministério da Saúde do Brasil com objetivo de minimizar as lacunas na oferta de conhecimentos instituiu o Programa Telessaúde, incentivando a oferta de ações de educação permanente reorientado e potencializando as práticas dos profissionais na ESF. No entanto, nenhum entrevistado deste estudo relatou ter acessado tal Programa, demonstrando que o acesso a programas de ações de educação permanente não se configura como prática dos profissionais de saúde. Reafirmando a importância de ações de educação permanente na ESF que trabalhem conteúdos para a operacionalização da linha de cuidado com resolutividade.

Entre muitos limites e algumas possibilidades na efetivação de práticas integrais

A totalidade dos entrevistados foi unânime ao relatar que a estrutura física da unidade nos moldes de Clínica da Família (CF) é um fator muito positivo para o atendimento às diferentes demandas dos usuários. O entrevistado PM11, por exemplo, relata que:

[...] potencialidade neste modelo de CF é a estrutura física, que é adequada para atender a criança e a família, com consultório bem equipado e equipe coesa.

A estrutura física da CF possibilita um cuidado integral e bastante resolutivo, sendo composta por elementos essenciais ao atendimento dos usuários (incluindo a criança) e, portanto, ao trabalho dos profissionais. Esses dados se confirmam no depoimento do entrevistado PE1:

[...] em relação à estrutura física, nós temos disponíveis materiais diversos, um consultório que dá um suporte para atender e avaliar a criança e a família. Entendo isso como uma potencialidade.

É inegável a distinção entre a estrutura física de unidades de Atenção Básica e aquela proposta para as CF, considerando: a área física; o mobiliário; a presença de ar condicionado; a sinalização interna e externa das unidades; a existência de equipamentos de informática; o acesso à internet de banda larga; a organização do território, com mapas digitalizados e os insumos, essenciais à prática clínica. Autores destacam que esta diferenciada infraestrutura é condição essencial para a garantia da qualidade da assistência em saúde.(12)

Embora a maior potencialidade para a efetivação das práticas tenha sido apontada como a estrutura física, seis dos entrevistados (PE1, PE6, PE8, PM9, PM12, PE13), destacaram que o compartilhamento de conhecimentos e experiências entre os profissionais da ESF tem sido fundamental para a eficácia no cuidado, principalmente quando surgem questões complexas de crianças com necessidades especiais, geradoras de muitas dúvidas entre os profissionais. Observa-se esse fato no depoimento de PM9:

[...] qualquer dúvida no manejo de uma criança eu acesso as enfermeiras especialistas e discuto em conjunto as melhores opções de tratamento. [Isso está reforçado pelo depoimento]: [...] em situações especiais que eu já passei com crianças eu tive que solicitar ajuda para outros colegas com mais experiência (PE1).

Diferentes profissionais que atuam na ESF detêm uma cultura comum que é o compartilhamento, a socialização de práticas e de conhecimentos. Nesse sentido, entendem conhecimento como um processo reflexivo de construção e reconstrução, que possibilita a formação coletiva e complementar do saber, possibilitando um melhor atendimento das diversas e complexas necessidades da assistência à população infantil.(13)

Entretanto, há significativas limitações, e elas foram destacadas nos depoimentos. Comprovou-se, entre outros, a ausência de um profissional pediatra no Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF), para orientação, por exemplo, nos casos complexos e específicos de crianças com necessidades especiais, ou de grandes vulnerabilidades. Esse fato esteve presente nos depoimentos de PM3, PE4, PE5, PE6, PM7. Um desses depoimentos é exposto a seguir:

[...] não me sinto apoiado pelo profissional especialista [pediatra] do NASF em consultas relacionados à saúde da criança com necessidades especiais. Se tivesse um pediatra, iria ajudar e muito. Na verdade, hoje em dia as trocas de saberes e retirada de dúvidas acontece entre os colegas de trabalho [...]. Eu não tive formação para isso, entendeu? (PM7).

Na literatura também é possível identificar que a ausência de alguns profissionais especialistas no âmbito do NASF, como o pediatra, para a realização da interconsulta de crianças vulneráveis, compromete a integralidade do cuidado, o olhar diferenciado diante da singularidade que essa população necessita, prejudicando, assim, o atendimento holístico.(14)

Outros entraves relatados pelos depoentes (mais especificamente, PM2, PE4, PE5, PE6, PM7, PE8, PM12, PE13) foram: consultas não programadas, sobrecarregando os profissionais, ocasionando a redução do tempo de cada consulta; sobreposição de agendas; e a multiplicidade de atribuições dos profissionais dentro da estrutura da CF. Sobre isso, PE8 relatou que esta demanda excessiva vem determinando a qualidade da assistência ofertada à criança, não sendo possível, por exemplo, a execução do cumprimento do protocolo instituído.

A demanda é muito grande, e você tenta dar conta de tudo, mas em alguns momentos você pode errar, em alguns momentos você pode deixar de fazer algumas coisas pela falta de tempo. Chego em casa e penso: esqueci o VDRL para a criança com sífilis congênita [...] Meu Deus! (PE8).

Ações já bastante analisadas como o grande volume de atendimento gerado pela prática de oferta via demanda espontânea e o cuidado focado em ações biomédicas (diagnóstico e medicalização em detrimento de ações de promoção à saúde) são, ainda, realidades cotidianas recorrentes e trabalhadas em estudos.(15)

Assim, comprova-se que, mesmo que a ESF institua diretrizes voltadas para a assistência integral à saúde da criança, com ênfase na promoção e prevenção de doenças, ainda há muitas limitações organizacionais que implicam na fragmentação da assistência à criança e família.

A ausência de uma rede de assistência que funcione e seja resolutiva para se alcançar a integralidade do atendimento à criança foi destacada nos depoimentos de PM7, PE13 e PE4.

A rede de assistência é muito morosa, tanto no agendamento quanto nos encaminhamentos posteriores. E é comum ouvirmos: ah, doutora, a consulta é para um lugar muito longe? Porque se for para longe eu não tenho condições de ir (PM7).

Mesmo havendo alguma melhora no sistema de referência e contrarreferência, a Atenção Básica ainda se apresenta como porta de entrada para a unidade, mas não para o SUS. Isso demonstra a deficiência da rede de referência, comprometendo a integralidade da assistência à criança; fato que se estende até os dias atuais.(16)

A grande vulnerabilidade do território adscrito é outra importante dificuldade enfrentada pelos profissionais, enfatizada no relato de PE8.

O pior mesmo é o território [...] meu território, por exemplo, tem muitos becos que não tem esgoto em rede, não tem saneamento básico, não tem moradias decentes, sem água potável. Ratos têm muitos [...]. As pessoas bebem água de uma bica, aí como não adoecerem [...] (PE8).

Torna-se necessário unir esforços por meio de uma rede de assistência sólida e efetiva, na tentativa de atuar em situações que vão além do fazer dos profissionais de saúde, individualmente. Atuar na ESF, diante de tantas vulnerabilidades sociais e de saúde talvez essa seja uma das ações mais complexas, pela abrangência de ações dos atores envolvidos no processo. Autores destacam que a vulnerabilidade se agrega aos valores biológicos, existenciais e sociais, desafiando as práticas de cuidado no âmbito clínico, na saúde pública, ou em instituições sociais, conduzindo e perpetuando formas de exclusão, segregação e negação de direitos à população suscetível.(17-18)

A fragilidade ou mesmo ausência da oferta de capacitações que forneçam embasamento para a assistência de qualidade à criança, em especial àquela com necessidades especiais, foi recorrente nos depoimentos e destacada como a maior dificuldade enfrentada pelos profissionais, fato que contribui para perpetuar a insegurança e distanciar o processo de mudança paradigmática. Para PM12:

[...] acho que a falta de capacitação para as práticas em saúde da criança é um importante fator limitante, e eu não me lembro de ter tido alguma capacitação nesses quatro anos de ESF.

É importante reafirmar que a assistência à criança com suas singularidades é uma prática que deveria estar presente tanto na formação acadêmica como em atualizações por via de educação permanente. Há alguns movimentos neste sentido, buscando adequações frente às novas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e Enfermagem.8-9 A capacitação teórico-prática e a supervisão da educação continuada das equipes da Atenção Básica são primordiais para a plena atuação dos profissionais no cuidado à população infantil.(19)

A realidade observada na unidade de estudo, demonstra que ainda existe demanda significativa no que se refere à efetivação de uma educação permanente, que atualmente tende a ser apenas teórica ou a focalizar apenas os aspectos orgânicos das doenças.

Outra limitação referenciada diz respeito ao manejo do prontuário eletrônico. Os depoentes PE8, PM11 e PE13 indicaram que, atualmente, essa é uma ferramenta que não beneficia a prática do profissional devido ao tempo demandado para o seu preenchimento e à morosidade do sistema operacional. Contudo, PE13 destaca que, caso haja mudanças, o prontuário eletrônico poderá ser utilizado como um instrumento de apoio às ações desempenhadas em relação ao cuidado à criança, em especial quando se trata de bebês de alto risco, aqueles que trazem ainda mais insegurança no seu manejo e que hoje representam número expressivo na ESF.  PE8, por exemplo, diz:

[...] o prontuário eletrônico também é fator que hoje está dificultando e desafiando as práticas, porque ele é novo, está em processo de adaptação e ainda é muito lento e tem erros. Aí a consulta demora muito mais. [Para outros entrevistados], [...] o prontuário eletrônico tem muitas falhas na linha de cuidados à criança. [...] E também nem sempre eu estou com tempo, porque a agenda de atendimentos sempre é muito extensa, com crianças e gestantes (PM11).

Um aspecto relevante destacado quanto às limitações refere-se à baixa percepção dos profissionais sobre a importância da inserção do familiar no processo de cuidar. A integração do familiar no cuidado com a criança permite que se compartilhe o cuidado e que se proporcionem espaços de escuta qualificada. Dessa forma, torna-se possível estabelecer o diálogo entre os envolvidos, minimizando os conflitos e negociando os cuidados.(²)

Entre os entrevistados, essa extensão do cuidado compartilhado foi expressa por PM11, ao relatar uma situação na qual foi necessário explicar não apenas para a mãe, mas também para outro familiar, sobre a importância da amamentação materna exclusiva:

[...] outra limitação seria o grau de instrução das mães para o cuidado à criança. Por exemplo, na orientação à amamentação isto acontece muito. Ainda se tem resistência para a amamentação exclusiva, e aí elas inserem o chá. Também a inserção da alimentação antes da idade adequada. Procuro sempre explicar com clareza com relação à alimentação, buscando estabelecer vínculo. Mas o pouco conhecimento delas dificulta (PM11).

A importância da instituição do vínculo entre a equipe e os familiares também é ressaltada na literatura, referenciando situações específicas de ‘maternagem’, afirmando que é necessário iniciar aproximações progressivas e que cabe à equipe de saúde compreender os mecanismos de um vínculo saudável entre mãe, filho e demais familiares. Assim, minimizam-se, pois, dúvidas, frustrações e anseios nas diversas situações da criança.(20)

Não se pode esquecer ou minimizar que o cuidado à criança é uma ação construída por meio de muitas e múltiplas variáveis. Enfatiza-se que o cuidar da criança na ABS/ESF vai além: para se alcançar o cuidado singular infantil é preciso promover escuta atenta, vínculo, diálogo, mas também a responsabilização dos familiares, implicados ativamente neste processo.(21)

 

 

CONCLUSÃO

A partir do conjunto dos depoimentos dos profissionais entrevistados e da apreensão dos dados por meio de dois instrumentos, foi possível compreender as potencialidades e as dificuldades referidas por esses profissionais na operacionalização da linha de cuidado integral à criança e o quanto a formação deixa lacunas neste processo.  

Ao evidenciar a realidade desses profissionais, o estudo destacou as dificuldades e os êxitos vivenciados, por meio de uma escuta atenta que visou fornecer subsídios para uma prática mais sensível e resolutiva, sob a perspectiva da integralidade. Portanto, os resultados deste estudo indicam aos profissionais a relevância de se perpetuarem na luta por um cuidado integral e singular, no que tange à saúde da criança.

Destacamos, ainda, a contribuição desta pesquisa ao defender a necessidade de se incorporar conteúdos relativos ao tema analisado na formação acadêmica dos profissionais, bem como de se evidenciar a demanda de ações de capacitação pelos serviços aos profissionais envolvidos no cuidado à criança. Almejamos, pois, contribuir com a integralidade do cuidado e com a melhoria da qualidade da assistência.

Sinalizamos, por fim, a necessidade de se realizar novas pesquisas sobre esta temática, com o intuito de aprofundar e desdobrar o conhecimento que almeje a prestação de assistência baseada em evidências da prática clínica, no que tange à assistência integral à criança, ou seja, na sua forma holística frente a prevenção de agravos, da promoção da saúde e da reabilitação.

 

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Recebido: 04/05/2020

Revisado: 21/07/2020

Aprovado: 31/07/2020