Desafios do cuidado a pessoas surdas vivenciados por familiares ouvintes: estudo exploratório

 

Verônica Francisqueti Marquete1, Elen Ferraz Teston2, Rebeca Rosa de Souza1, Viviane Cazetta de Lima Vieira1, Mayara Maria Johann Batista Fischer1, Sonia Silva Marcon1

 

1 Universidade Estadual de Maringá

2 Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

 

 

 

RESUMO

Objetivo: identificar as dificuldades vivenciadas por familiares ouvintes no cuidado à saúde de pessoas surdas. Método: estudo exploratório, qualitativo, realizado em junho de 2018, com seis familiares de pessoas surdas. Os dados foram coletados nos domicílios dos participantes, por meio de entrevistas semiestruturadas e submetidos à análise de conteúdo. Resultados: a relação entre o surdo e a família é influenciada pelas estratégias de comunicação utilizadas. A principal dificuldade relatada foi o estabelecimento efetivo da comunicação entre profissionais de saúde e o surdo. Contudo, a família constitui um “recurso” indispensável para contornar essa dificuldade, embora, por vezes, não consiga expressar exatamente os sintomas experienciados pelo familiar. Conclusão: os familiares ouvintes acompanham os seus familiares surdos na maioria dos atendimentos nos serviços de saúde, devido à ausência de profissionais que se comuniquem em Libras, os familiares que não se comunicam em Libras o cuidado a saúde é comprometido, gerando sentimento de insegurança.

Descritores: Relações Familiares, Surdez, Família, Enfermagem.

 

 

INTRODUÇÃO

A comunicação é substancial na vida do ser humano, por possibilitar os relacionamentos interpessoais e interações sociais cotidianas. A perda auditiva (PA) pode interferir na comunicação e na aquisição da língua utilizada por ouvintes (1). As pessoas surdas, na maioria das vezes, possuem PA severa, o que acarreta pouca ou nenhuma audição, sendo utilizada, a língua de sinais para que ocorra a comunicação (2).

As pessoas surdas conseguem compreender o mundo por meio do contato visual. Para estes, a utilização da língua de sinais e a escrita, oportuniza o seu desenvolvimento cultural, cognitivo e social (3).  

Atinente a isso, a família também desempenha papel relevante, em especial durante o processo de formação do indivíduo, influenciando no seu desenvolvimento pessoal. Trata-se da primeira rede de apoio do ser humano, regida por valores, crenças, metas e comportamentos. Por intermédio da comunicação, a família auxilia o indivíduo a desenvolver sua personalidade e estabelecer relações sociais com a comunidade (4).

Entretanto, quando a comunicação é prejudicada devido a PA, os pais ouvintes se deparam com uma situação desconhecida, pois na maioria das vezes eles nunca ou pouco tiveram contato com pessoas surdas e em geral, as interações de comunicação são menores, empobrecidas e frequentemente com falhas, devido a não serem fluentes na língua de sinais (5). Destarte, mais de 90% das crianças surdas são de famílias de pais não surdos (4). Essa colisão de cultura de línguas desencadeia aos membros familiares alterações na qualidade da comunicação, discrepância das informações em relação às orientações de saúde e emoções negativas, respostas prejudiciais à saúde mental (6).

A Língua Brasileira de Sinais (Libras), constitui o principal meio de comunicação utilizado na cultura surda, e que favorece o relacionamento entre pessoas surdas e a sociedade, possibilitando a inclusão dos mesmos na comunidade (7). Salienta-se que os pais que não aceitam a PA do filho, ou até mesmo que não aprendem Libras tendem a utilizar apenas mímica para comunicação com o mesmo. Contudo, esta conduta dificulta a comunicação adequada com o meio externo, pois os amigos dos surdos e a comunidade surda constituem referência repleta de emoções e sentimentos, por utilizarem a mesma língua, estabelecendo assim um modelo de identidade do indivíduo surdo (8).

No tocante aos serviços de saúde, destaca-se que na maioria das vezes não há profissionais e nem intérpretes que se comuniquem na língua própria do surdo (7), necessitando durante os atendimentos que um acompanhante ouvinte esteja presente. Nestes casos a comunicação é feita com este acompanhante e não com o cliente surdo (7), o que pode limitar o acesso ao serviço adequado assim como orientações para a realização do autocuidado. Por vezes, o familiar é que exerce esse papel de intermediar o diálogo entre o surdo e o profissional de saúde, o que torna ainda mais importante o estabelecimento de uma comunicação clara, a fim de que o cuidado a saúde não seja prejudicado.

Diante desse contexto, tem-se como questionamentos: Como os familiares vivenciam o processo de cuidado e auxílio ás necessidade de saúde do surdo? Quais dificuldades vivenciam no processo de comunicação? Para respondê-los o presente estudo propõe-se a identificar as dificuldades e desafios vivenciados por familiares ouvintes no cuidado à saúde de pessoas surdas.

 

 

MÉTODO

Pesquisa exploratória, de abordagem qualitativa, realizada em um município da região norte do estado do Paraná, Brasil.

Os participantes do estudo foram os seis familiares, identificados como “cuidador principal” de jovens com surdez profunda, incluídos no estudo, segundo o método da “bola de neve” (9). O primeiro familiar participante foi indicado por uma intérprete de Libras que trabalha como professora em uma escola para surdos. Inicialmente ela informou o familiar sobre a pesquisa, e investigou sobre o interesse em participar da mesma. Esta por sua vez ao concordar com a participação autorizou que seu número de contato fosse repassado à pesquisadora, para que esta pudesse agendar dia, horário e local para a realização da entrevista. Este primeiro participante por sua vez, indicou outros familiares que atendiam ao critério de inclusão previamente estabelecido: ser familiar ouvinte e cuidador principal de pessoa surda.

Os dados foram coletados no mês de junho de 2018, por meio de entrevista semiestruturada áudio-gravada, após autorização. Elas foram realizadas nos domicílios, após agendamento prévio por contato telefônico, e tiveram duração média de duas horas.

O instrumento utilizado durante a entrevista foi um roteiro com questões objetivas abordando dados sociodemográficos e questões abertas relacionadas à comunicação entre familiares ouvintes e o indivíduo surdo. Além disso, foram utilizadas três questões de apoio para o alcance do objetivo proposto sendo elas: Você possui alguma dificuldade para se comunicar com seu familiar surdo? Comente.  Fale sobre as dificuldades em relação ao cuidado à saúde de seu familiar surdo? Como é a interação dos outros familiares com o (nome do surdo)?  

As entrevistas foram transcritas na íntegra, e posteriormente submetidos à análise de conteúdo modalidade temática, respeitando-se as etapas de pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados e interpretação (10).

A análise iniciou-se pela leitura flutuante das entrevistas em busca de hipóteses e sistematização das ideias. Em seguida procedeu-se à exploração do material por meio da categorização e identificação das unidades de registro, visando a codificação. Por último, realizou-se o tratamento dos resultados e interpretação, culminando com a elaboração das categorias (10).

A pesquisa seguiu os preceitos éticos disciplinados pela Resolução 466/2012 do Ministério da Saúde e seu projeto foi aprovado pelo comitê permanente de ética em pesquisa com seres humanos (Parecer nº 2.623.505). Os participantes foram informados e esclarecidos sobre a pesquisa, e manifestaram sua concordância em participar da mesma assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido em duas vias. Com intuito de garantir o sigilo e a confidencialidade, os participantes foram identificados com a letra F (familiar), um número arábico, de acordo com a sequência de realização das entrevistas, seguido pelo vínculo familiar existente.

 

 

RESULTADOS

 

Os surdos tinham idade entre 22 e 54 anos, estudaram em escola de surdos e aprenderam a se comunicar em Libras desde a infância. Apenas um destes fazia uso de aparelho auditivo há um ano.

Os familiares participantes do estudo são todos do sexo feminino, com idade média de 41 anos e renda familiar de três a cinco salários mínimos (Quadro 1).

 

Quadro 1- Características dos familiares participantes do estudo, de um município da região norte do estado do Paraná, 2018.

ID

Relação

Moram juntos

Idade

E.C*

Escolaridade**

Pesquisado

Sabe Libras

F1

Mãe

Sim

77

S.C

ES

Só o alfabeto

F2

Sobrinha

Sim

24

S.C

ES

Só o alfabeto

F3

Filha

Não

27

C.C

EMI

Sim

F4

Filha

Sim

27

C.C

EMI

Sim

F5

Mãe

Não

48

C.C

ES

Sim

F6

Mãe

Sim

47

C.C

EM

Sim

Legenda: * E.C- Estado Civil; S.C- Sem companheiro; E.S- Com companheiro

** EMI- Ensino médio incompleto; EM- Ensino médio; ES- Ensino superior.

Fonte: Os autores

Da análise dos depoimentos dos participantes emergiram duas categorias que serão descritas a seguir.

 

Estratégias de comunicação e a relação entre o surdo e seus familiares

 

Observou-se que a relação familiar é influenciada pelo modo que o processo de comunicação é estabelecido entre o surdo e os membros de sua família:

Conseguimos ter um ótimo relacionamento pela facilidade de nos comunicarmos. (F4, filha)

 

Ótima, sempre estou próxima [...], então não vejo dificuldade, não acho que seja uma coisa que talvez atrapalhe a nossa relação, entendeu? Muito pelo contrário, é muito boa a nossa relação [...]. (F3, filha)

 

Eu acho que é ótima a relação com ele [...], porque a gente se entende eu acho que a questão do entendimento até por conta da dificuldade, [...] porque eu entendo apesar das dificuldades eu entendo então isso facilita. (F5, mãe)

 

 [...] a relação não é boa por causa dessa questão da comunicação mesmo, se eu soubesse Libras, seria bem mais fácil, passar alguma coisa para ele [...]. (F2, sobrinha)

 

Os familiares destacaram a importância em saber Libras e também utilizar diferentes estratégias para facilitar a comunicação com o surdo

[...] no começo não sabia Libras [...] quando nós começamos era difícil, o que você queria eu não sabia o que você estava querendo aí você chorava, deitava no chão, [...] aí foi aprendendo Libras aí ficou fácil [...]. (F6, mãe)

 

[...] quando ela era muito pequenininha, então a gente tinha essa dificuldade, a partir do momento que ela começou a aprender o sinal e eu também, então ela faz o sinal eu já entendo e está tudo resolvido, então facilita muito [...] a Libras foi fundamental. (F5, mãe)

 

A gente sabe muito escrever, mas o sinal a gente não sabe [...] nós temos gestos próprios familiares, então a gente criou o sinal do nome dele (mostrando o sinal) [...], então a gente inventou muitos gestos, por não saber a Libras. (F2, sobrinha)

 

[...] eu e minha irmã a gente entende perfeitamente o que ela fala. Ela pode falar lá fora e gritar com a gente, falar alguma coisa que a gente entende o que ela está falando. (F4, filha)

 

[...] ela vai lá e escreve no celular e manda para mim [...] daí escreve lá e mostra. (F6, mãe)

 

[...] às vezes chega um remédio, uma coisa daí eu que pego e escrevo assim no papel e colo no remédio para ele prestar atenção [...] muitas coisas que eu faço ele ouve. (F2, sobrinha)

 

[...] tem uns aplicativos a gente escreve o bonequinho faz em Libras, a gente sempre dá um jeito, tem que entender. (F2, sobrinha)

 

[...] tipo é criança como comunicar com o tio? tem que ir lá e relar no tio [...] (F2, sobrinha).

 

Contudo, por vezes, a família sente-se angustiada e triste por não conseguir comunicar-se adequadamente:

[...] é uma pessoa que ele está presente, [...] todo mundo gosta dele, mas ao mesmo tempo ele não está presente, por mais que ele está aqui com todo mundo. Ás vezes a gente conversa alguma coisa lá na cozinha ele não ouviu, e às vezes ninguém sai de lá para vir aqui contar para ele sabe, mas ele não ouviu. A gente sabe que ele não ouviu [...].  (F2, sobrinha)

 

[...] às vezes eu me sinto triste por não conseguir passar para ele, eu choro bastante [...] acontece algumas situações [...] ter essa dificuldade de conversar com ele [...]. (F2, sobrinha)

 

Observou-se diferença nas vivências das dificuldades influenciada pela busca precoce do curso de Libras, e em relação àqueles familiares que não possuem o curso de Libras. Destaca-se que no caso de filhos de mães surdas (CODAS), o processo de aprendizado em Libras ocorre espontaneamente e sem dificuldades; nestes casos acontece com os irmãos mais novos dos surdos, netos, ou seja, familiares que tem maior contato, fato também observado com familiares que utilizam gestos como estratégia de comunicação.

[...] a partir do momento que eu tive ela que eu tive o problema, aí eu fui conhecer a Libras e fui começar a aprender. (F5, mãe)

 

[...] eu não consigo lembrar, porque desde pequenininha minha mãe fala desde 1 aninho a gente já começou a fazer, é como se fosse aprender a falar, então a gente aprendeu a falar junto com os sinais, então foi uma coisa que foi natural. (F3, filha)

 

[...] tanto é que os nossos filhos sabem fazer sinais também é mais porque quando eles eram pequenininhos minha mãe também ensinava. (F4, filha)

 

[...] tem uma segunda língua, porque ela desde pequenininha sempre do lado sabe tudo, eu falo que sabe mais que eu, e aí agora eu tenho minha netinha também, e eu acho que ela vai aprender tudo também, porque geralmente vai passando [...]. (F5, mãe)

 

[...] eu cresci vendo, não é que nem minha mãe que teve que aprender depois [...] então acho que eu consigo falar melhor que minha mãe (F2, sobrinha).

 

O processo de aprendizado em Libras está em constante aperfeiçoamento, e o familiar surdo é o principal educador. Desta forma, o vínculo e aproximação entre os membros é estabelecido a partir da convivência com a língua.  

[...] eu acho que foi um processo, tanto assim junto que não teve aquela coisa do estalo: aprendi e pronto. Até porque [...], hoje já mudou muita coisa, é igual medicina, parou esquece, então você tem que ter esse contato mesmo. (F5, mãe)

 

[...] ela me ensinava, se foi crescendo aí tem sinal diferente que eu não conhecia e ela me falava, e novos, sempre tem novos em libras e ela me ensinava, ensina até hoje, me ensina libras [... ] sempre troca [...] (F6, mãe).

 

Em contrapartida, observou-se que quando o membro ouvinte não cresce junto com o familiar surdo, existe maior dificuldade na comunicação e no relacionamento.

 [...] ele (padrasto) tem um pouco mais de dificuldade, porque quando ele veio, ela já tava grande, então ele não teve todo esse processo. (F5, mãe)

 

Seu irmão sabe pouco, ele escreve, ele usa mais o alfabeto, sinal pouco [...]. (F6, mãe)

 

[...] ele (pai) se comunica pouco [...], não sabe muito não [...]. Sou mais eu que incluo ela no meio da conversa [...], ás vezes eles falam lá alguma coisa, mas é mais eu, essa parte é difícil [...]. (F6, mãe)

 

Essas dificuldades também são vivenciadas no contato com familiares mais distantes, e por isso àquele que tem maior contato e facilidade de comunicação com o surdo torna-se um intermediador do diálogo,

 [...] as minhas irmãs não sabem conversar com ela, [...] eles falam para mim e eu falo para ela entendeu. (F6, mãe)

 

[...] meus tios sabem o básico [...], mas assim quando não sabe pergunta, fala que minha mãe lê também, e aí ela fala qual que é o sinal daí eles fazem assim, tudo certinho, mas comunica normal. (F3, filha)

 

Porém em alguns momentos o familiar surdo acaba ficando isolado:

[...] quando faz geralmente essas festas assim, a minha mãe [...] fala que chega uma hora que nós ouvintes começamos a conversar só entre a gente e deixa ela de lado. Daí ela fala que tem que ter mais um surdo para também poder conversar, porque [...] chega uma hora que daí a gente, [...] mas sem perceber sabe [...] (F3, filha).

 

[...] a gente foi em algo de família assim, daí todo mundo conversando, já tinha conversado com ele tudo e daí do nada assim eu vi ele lá sentadinho no celular conversando com os amigos dele [...] era para ele estar lá no meio de nós batendo papo com nós [...] por ele ser surdo e não poder compartilhar ali rápido, porque às vezes assim, eu preciso parar para conversar com ele [...] eu não consigo conversar assim com você e falando para ele entende. (F2, sobrinha)

 

Destaca-se que quando os familiares não conseguem comunicar-se de forma adequada, eles recorrem a outros instrumentos como: a fala, escrita, aplicativos de celular que traduzem em libras, e contato, neste caso mais utilizado por crianças.

 

[...] eu e minha irmã a gente entende perfeitamente o que ela fala. Ela pode falar lá fora e gritar com a gente, falar alguma coisa que a gente entende o que ela está falando. (F4, filha)

 

[...] ela vai lá e escreve no celular e manda para mim [...] daí escreve lá e mostra. (F6, mãe)

 

 [...] às vezes chega um remédio, uma coisa daí eu que pego e escrevo assim no papel e colo no remédio para ele prestar atenção [...] muitas coisas que eu faço ele ouve. (F2, sobrinha)

 

[...] tem uns aplicativos a gente escreve o bonequinho faz em Libras, a gente sempre dá um jeito, tem que entender. (F2, sobrinha)

 

[...] tipo é criança como comunicar com o tio? Tem que ir lá e relar no tio [...] (F2, sobrinha).

 

 

A família como “recurso” para o cuidado em saúde do indivíduo surdo

 

Os participantes do estudo declararam que durante o atendimento nos serviços de saúde, na maioria das vezes é necessário acompanhar o familiar surdo, principalmente na primeira consulta, pois a maioria dos profissionais de saúde não sabem se comunicar com os surdos.

 

[...] ela fala que a enfermeira ou o médico não consegue se comunicar com ela e não entende o que ela está querendo falar, às vezes ela tem dificuldade, às vezes ela até desiste, vai embora e pede para a gente ir um dia com ela. (F3, filha)

 

[...] acompanho até demais até muito, precisava ser mais livre. (F6, mãe)

 

[...] sempre a primeira e a última vez que vai ao um serviço de saúde, que vai começar um tratamento de saúde, vai um familiar sim. Ele foi ao dentista para fazer o tratamento foi um familiar junto [...], vamos fazer esse tratamento daí os dias do tratamento ele foi sozinho, porque daí já deixou o nome, o contato, o telefone qualquer coisa para ligar [...]. (F2, sobrinha)

 

Pergunta só para mim, eles não sabem nada, nada, nada, difícil isso, isso é difícil. (F6, mãe)

 

Foi possível constatar nos relatos que, devido ao fato de saber se comunicar em Libras, o familiar sente segurança em passar as informações de saúde, para o profissional que solicita e para o familiar sem dificuldades.

 

[...] sempre do jeito que ela passa para mim é o jeito que eu passo para o médico, [...] quando o médico passa alguma coisa para mim eu passo do jeito que ele passou para ela. (F3, filha)

 

[...] porque desde que eu descobri, eu já fiz curso, então eu entendo [...] ela consegue transmitir e eu consigo entender. (F5, mãe)

 

Contudo, familiares que possuem dificuldade na comunicação sentem-se inseguros em passar as informações durante o acompanhamento nos serviços de saúde.

 

[...] ele fala que está com dor, dor na cabeça (mostra o gesto), mas e aí, não é uma simples dor de cabeça a gente sabe, [...] ou tá com dor no estômago [...] mas não sabe se é a bexiga, [...] então a gente sabe que aqui é o estômago, o que que é uma dor de gases, [...]e ele não sabe dizer, se é uma dor de queimação ou se é uma dor que está latejando[...]eu preciso do exame para ter certeza do que ele tem. (F2, sobrinha)

 

Entretanto, destacam que pelo fato dos profissionais de saúde não conseguirem se comunicar diretamente com o surdo, dificulta ações importantes como por exemplo orientações de prevenção, uma vez que o familiar não consegue realiza-las por si só:

 

[...] devido à falta de comunicação mesmo [...] a prevenção da saúde é uma questão que eu acho que poderia melhorar a gente conseguindo passar para ele, o que é a prevenção [...] o fazer entender que tem que ir ao médico para prevenir é algo bom (F2, sobrinha)

 

 

DISCUSSÃO

 

A comunicação adequada é essencial para que a interação familiar ocorra com qualidade, a presença da PA durante a infância pode proporcionar impactos no desenvolvimento emocional, social, vínculos, e de linguagem (11). Desse modo, considerando os surdos e seus familiares, o uso da língua de sinais favorece a interação familiar, a troca de informações e facilita a convivência. Quando os familiares não a utilizam os vínculos são permeados por dificuldades e fragilidades, perpetuando em todos os ciclos da vida(12).

Diante do diagnóstico de surdez do filho, as duas mães mais jovens participantes do estudo buscaram conhecer e aprender a Libras de forma imediata. Em contrapartida alguns pais ouvintes, demoraram a procurar um curso de Libras, o que torna a comunicação mais superficial (5). Os familiares apontaram a utilização de outros recursos, como mencionado nas falas de F2, F4 e F6 que favorecem a interação com o surdo, o que demonstra a preocupação em estabelecer uma comunicação efetiva para que o vínculo não seja prejudicado pela PA do seu familiar.  

Apesar da barreira de comunicação entre familiares ouvintes e surdos, quatro dos seis familiares do presente estudo referiram que sabem se comunicar utilizando a Libras, e se preocupam em incluir a pessoa surda em eventos familiares e promover a interação dos mesmos. Porém, estudo realizado em São Paulo demonstrou que nenhum membro da família tinha domínio de Libras, de forma que a comunicação entre os membros familiares e a pessoa surda era superficial e desprovida de significados (12).  A utilização de Libras para as pessoas surdas é ferramenta essencial para que a orientação, educação, troca de experiências e cuidados com a saúde ocorra de forma adequada.

No tocante ao processo de cuidado em saúde, destaca-se que o decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005 regulamenta a lei nº 10.436/ 2002, e estabelece que os serviços de saúde devam dispor de profissionais capacitados para executarem a assistência aos surdos. De acordo com este decreto, pelo menos 5% dos profissionais de saúde dos estabelecimentos públicos, devem estar habilitados para empregar e interpretar a Libras(13). Ressalta-se que a acessibilidade a língua, deve ser oferecida pelos serviços de saúde a todas as pessoas com PA, sejam elas usuárias de Libras ou falantes da língua portuguesa, devido a heterogeneidade da população surda, que necessita de acesso aos serviços de saúde, que contemple todas as modalidades de comunicação.

Apesar da existência dos decretos e leis dispostos no ordenamento jurídico brasileiro, que instituem a Libras como instrumento de comunicação e assegura aos surdos a prestação do serviço de saúde que atenda a suas necessidades nas instituições públicas, constata-se que eles ainda não foram suficientes para dissipar as barreiras de comunicação (7).Como demonstrado na fala F3 a dificuldade na comunicação do familiar surdo com os profissionais da saúde. Isto provavelmente ocorre devido à inexistência de uma legislação específica que exija a presença de intérpretes no decurso da assistência à saúde e a obrigatoriedade da disciplina de Libras com qualidade no decorrer da formação de todos os profissionais de saúde.

Salienta-se que a comunicação deficiente entre o profissional e o paciente surdo está associada a menor qualidade do atendimento, a redução da satisfação do paciente, ao aumento das taxas de incidentes, e submetendo os surdos a condições de risco à saúde (14).

Pesquisa realizada no Reino Unido, constatou que a população surda, tem condições de saúde piores quando comparado com a população geral, com provável subdiagnóstico e subtratamento das condições crônicas, desencadeado pela barreira de comunicação (15).

Diante das dificuldades que os profissionais de saúde apresentam para se comunicar com os surdos, os mesmos na maioria das vezes se dirigem aos estabelecimentos de saúde acompanhados de familiares ouvintes, sendo estes os intermediadores da comunicação (6), como observado nas falas de F6 e F2.  Esse fato, por vezes, limita a independência e autonomia com relação a sua própria saúde e ações de cuidado do indivíduo surdo (6).   

No relato de F2 observa-se que o atendimento aos surdos se limita à queixa devido à dificuldade de comunicação, apontando a necessidade em abordar aspectos relacionados com a promoção da saúde e a prevenção de doenças. Estudo realizado com surdos americanos apontou o acesso limitado destes aos serviços de saúde, em especial devido as barreiras de comunicação e a baixa escolaridade, fato que aumenta a utilização dos serviços de emergência, já com complicações no estado de saúde (16).

Destarte, reitera-se a importância do cumprimento da legislação vigente, ou seja, pelo menos, 5% dos profissionais de saúde estarem preparados para a comunicação em Libras de forma adequada para o acesso de pessoas surdas aos cuidados em saúde. Nesse sentido, estudo realizado em Mississipi apontou algumas estratégias que podem favorecer a comunicação no serviço de saúde, como por exemplo: o desenvolvimento de serviços, sistemas e políticas que incentivem a conscientização sobre as barreiras de comunicação, a fim de proporcionar a melhoria da comunicação, assegurar acesso adequado dos profissionais às ferramentas de comunicações auxiliares, contratação de intérpretes nas unidades de saúde, aumentar a competência comunicativa dos profissionais de saúde e durante a formação acadêmica, tenham o contado com a língua de sinais (17).  

 

 

CONCLUSÃO

 

A relação familiar dos ouvintes com um dos membros surdos apresentou-se de forma peculiar, sendo a comunicação em Libras a principal forma de aproximação e vínculo. Familiares que não utilizam a Libras recorrem a gestos familiares próprios, com o intuito de não prejudicar o relacionamento e a interação familiar devido a PA do familiar.

O mesmo ocorre em relação aos cuidados em saúde, o familiar na maioria das vezes acompanha o surdo em seu percurso pelos serviços de saúde, devido a inexistência de intérpretes e profissional capacitado para comunicar em Libras nos estabelecimentos de saúde, desta forma o familiar atua como intermediadores do diálogo. Quando o familiar sabe Libras ele não tem dificuldade para cuidar da saúde. Caso contrário, o familiar apresenta insegurança em passar as informações de saúde, e as orientações de prevenção e promoção, desencadeando o conhecimento restrito dos surdos sobre o processo saúde-doença.

Os resultados do presente estudo, oferece subsídios para reflexões com relação a necessidade de estratégias a serem adotadas pelos estabelecimentos de saúde, que possibilitem o atendimento integral do surdo e facilitem o acesso dos profissionais as reais necessidades dele, a fim de desenvolverem ações que possibilitem a promoção da autonomia e autocuidado.  

 

REFERENCIAS

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Participação de cada autor na pesquisa:

Verônica Francisqueti Marquete: Participou da elaboração da pesquisa, coleta de dados, redação, revisão e formatação do artigo.

Elen Ferraz Teston: Colaborou com a redação, revisão e formatação do artigo.

Rebeca Rosa de Souza: Colaborou com a redação, revisão e formatação do artigo.

Viviane Cazetta de Lima Vieira: Colaborou com a redação, revisão e formatação do artigo.

Mayara Maria Johann Batista Fischer: Colaborou com a redação, revisão e formatação do artigo.

Sonia Silva Marcon: Participou da elaboração da pesquisa, redação, revisão e formatação do artigo

 

Recebido:  04/05/2019

Revisado: 11/02/2020

Aprovado: 11/02/2020