Adequação do pré-natal no Brasil e associação com raça/cor: estudo transversal
Millani Souza de Almeida Lessa¹, Enilda Rosendo do Nascimento¹, Edméia de Almeida Cardoso Coelho¹, Isa Maria Nunes¹, Iêda Jesus Soares¹, Quessia Paz Rodrigues¹
1 Universidade Federal da Bahia
RESUMO
Objetivo: estimar a magnitude dos indicadores globais do cuidado pré-natal e verificar associação entre o índice padronizado de adequação pré-natal e raça/cor das mulheres. Método: estudo transversal de base populacional realizado com dados da Pesquisa Nacional de Saúde. Realizou-se análise bivariada mediante modelo multinomial utilizando-se odds ratio (OR) como medida de associação, e seus respectivos intervalos de confiança de 95%. Resultados: a prevalência global de realização de pré-natal adequado para as mulheres brasileiras é de 10,8%. A adequação do pré-natal se mostrou baixa tanto para o grupo de mulheres brancas como para as negras, 15,51% e 8,56%, respectivamente; no entanto houve associação positiva entre ser negra e ter tido pré-natal inadequado. Discussão: embora tenhamos uma cobertura pré-natal crescente, quando considerados aspectos relacionados à adequação da assistência há uma redução importante nesse percentual. Conclusão: mulheres negras possuem menor chance de realizar pré-natal adequado.
Descritores: Cuidado Pré-Natal; Desigualdades em Saúde; Saúde Pública.
INTRODUÇÃO
O cuidado pré-natal consiste no monitoramento e acompanhamento da gravidez a fim de identificar e intervir oportunamente nas eventuais situações de risco e/ou complicações na gestação, evitando agravos para a saúde materna e fetal e impactando na redução dos desfechos perinatais negativos. Estudos têm evidenciado, no entanto, que existem iniquidades no acesso das gestantes a esse tipo de assistência, sendo as mulheres em condição de vulnerabilidade racial/étnica, social e econômica aquelas que obtêm os piores resultados na assistência pré-natal prestada no Brasil e no mundo, em especial, nos países pouco desenvolvidos ou em desenvolvimento(1,2,3).
Com a finalidade de uniformizar condutas na atenção pré-natal e obstétrica no Brasil e proporcionar um alcance igualitário das ações, o Governo Federal criou, no ano 2000, o Programa de Humanização do Pré-natal e Nascimento (PHPN) e em 2006 reiterou as orientações através do Manual técnico sobre atenção qualificada e humanizada no pré-natal, ambos os documentos objetivaram definir critérios mínimos e procedimentos para que a assistência nesse âmbito seja executada de maneira adequada e alcance seu objetivo em toda a população de mulheres, sem distinção de raça/cor, classe, origem nacional ou qualquer outra condição.
No entanto, devido à persistência de desfechos negativos evitáveis no período gestacional e parturitivo, muitos estudos têm dedicado atenção ao termo “adequação do pré-natal”, que diz respeito ao êxito dos efeitos desejados sobre a saúde das mulheres no período gestacional e pós-gestacional(4,5,6,7). As altas taxas de mortalidade materna e perinatal, além de intercorrências como o baixo peso ao nascer, em pleno momento onde alcançamos quase 100% de cobertura pré-natal, tem levantado questionamentos sobre a qualidade da atenção oferecida e a oportunidade de acesso da população a esse atendimento(8,5,9).
Pensando-se então na definição de condutas passíveis de serem aplicadas em diferentes contextos socioculturais e sanitários, o uso de parâmetros pré-definidos de indicadores do pré-natal adequado e a criação de índices de adequação são ferramentas que operam para facilitar a comparabilidade de resultados obtidos e promover o uso de critérios mais uniformes(10).
Sobre as iniquidades na atenção à saúde da mulher, a literatura tem demonstrado que mulheres negras, com baixa escolaridade e condição econômica desfavorável estão mais expostas a tratamentos inadequados e possuem menor acesso à assistência e procedimentos de caráter preventivo, principalmente no âmbito da saúde reprodutiva(3,11). Nesse sentido os indicadores de saúde confirmam que mulheres negras são as principais vítimas de adoecimento e morte por causas obstétricas e vivenciam maior inadequação no cuidado pré-natal(4,5,2).
Levando em conta que a cor da pele das mulheres pode guardar influencia com o tipo de acompanhamento pré-natal recebido as investigações têm destacado que além de uma assistência menos adequada dispensada às mulheres negras, existe uma forte associação da cor da pele com a renda familiar, a escolaridade e a utilização de serviço público de saúde, sendo essas mulheres as que compõe o setor social menos favorecido(11,12). Nesse sentido, estudos de base populacional com dados nacionais e locais têm apontado para a insistente relação entre a discriminação e alguns agravos de saúde prevalentes entre as negras no Brasil(2,7).
Reconhecendo a importância de estudos que tratam da desigualdade racial na utilização de serviços adequados e a identificação de toda e qualquer forma de discriminação na atenção à saúde, esse estudo tem como objetivo estimar a magnitude dos indicadores globais do cuidado pré-natal e verificar a associação entre o índice de adequação pré-natal padronizado e a raça/cor das mulheres.
MÉTODO
Neste estudo utilizamos as diretrizes mínimas propostas pelo Programa de Humanização do Pré-natal e Nascimento (PHPN) e pelo Manual técnico de atenção ao pré-natal de baixo risco (BRASIL, 2012b) para construir o índice de adequação do cuidado pré-natal, padronizado com base no escore z. Trata-se de um estudo transversal de base populacional, realizado com dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), divulgada através do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O principal objetivo desse tipo de pesquisa e dos estudos que dela se utilizam para a produção do conhecimento é fornecer dados nacionalmente representativos sobre a situação de saúde e os estilos de vida da população brasileira, bem como sobre a dinâmica da atenção à saúde, destacando o acesso e a utilização dos serviços, as ações preventivas, a continuidade dos cuidados, e o financiamento da assistência de saúde.
A PNS é uma pesquisa domiciliar realizada por meio de amostragem conglomerada em três estágios: os setores censitários ou conjunto de setores, que são as unidades primárias de amostragem; os domicílios, que formam as unidades secundárias e os moradores de 18 anos ou mais de idade que representam o terceiro estágio, dentre estes, destacamos, as mulheres que tiveram algum parto do período de 28/10/2011 à 27/07/2013, considerando-se o último parto.
A população do estudo foi composta por 1851 mulheres que realizaram o cuidado pré-natal entre os anos de 2011 e 2013, distribuídas em todo o Brasil, no entanto houve perda de 2,1% relacionada a não resposta em questões específicas do questionário de pesquisa, sendo a análise desenvolvida com 1812 mulheres. O estudo teve como variável de exposição a raça/cor das mulheres que realizaram o pré-natal. Considerou-se a definição da raça/cor utilizada pelo IBGE, que atualmente é constituído pelas cores/raça/etnia: branca, preta, parda, indígena e amarela, sendo que para este estudo as mulheres autodeclaradas pretas e pardas são classificadas como “negras”.
Os indicadores do pré-natal adequado foram definidos conforme orientação do PHPN, do Manual Técnico de atenção ao pré-natal de baixo risco e complementado pelas questões referentes a aconselhamentos durante o acompanhamento das gestantes, provenientes das respostas presentes no questionário da PNS. Esses, compuseram juntos a variável de desfecho “índice de adequação pré-natal”, do tipo politômica, com as categorias de resposta classificadas como: adequado, intermediário e inadequado. Considerou-se como pré-natal adequado aquele que cumpriu os critérios das 21 variáveis binárias utilizadas, a saber: realização de primeira consulta até a 12ª semana de gestação, o mínimo de 6 consultas, solicitação de testagem HIV, solicitação de exame urinário, realização de exames laboratoriais (hemograma, sorologia para sífilis –venereal disease research laboratory test -VDRL e testagem anti-HIV), avaliação clínica-obstétrica (aferição da pressão arterial, mensuração de peso, medida da altura uterina, avaliação de batimentos cardiofetais e exame físico das mamas), fornecimento de aconselhamentos relacionadas ao uso de tabaco, álcool, tintura de cabelo, ausência nas consultas, alimentação saudável; e orientações referentes a sinais de trabalho de parto, sinais de risco obstétrico, orientações sobre aleitamento materno e sobre a maternidade de referência para assistência ao parto.
A criação do índice de adequação pré-natal foi realizada mediante obtenção de escore padronizado com base no escore z. Nele, a partir das 21 variáveis binárias utilizadas como indicadores, gerou-se uma nota que variou de 0 a 21 pontos para a i-ésima mulher, i=1,2,3,..., 1851 e essas notas foram transformados em unidades de desvio-padrão ou escores z(a). O cálculo do escore z trata da distância de cada mulher em relação à média. A distribuição teórica do escore z tem como média o valor zero (µ=0) e como desvio-padrão o valor 1,0 (σ=1,0), o que significa que um valor original igual à média equivale a um z=0. Para fins de análise, adotou-se o ponto de corte em 1,0 desvio-padrão (dp) e os escores criados foram categorizados em três níveis: a) inadequado (<-1dp), b) intermediário (-1 dp à +1dp) e, c) adequado (>+1dp).
A figura 1 apresenta a curva normal que demonstra o escore padronizado criado, o qual representa a distância, em desvios-padrões, da nota original da i-ésima mulher em relação à média amostral do estudo.
Fig1. Distribuição do índice de adequação do cuidado pré-natal de acordo com a curva normal padrão (Z SCORE). Brasil, 2011-2013.
a) < -1dp(inadequado): espera-se que em uma população com pré-natal adequado sejam encontradas 15,9% das mulheres abaixo desse valor.
b) -1dp a +1dp(intermediário): espera-se que em uma população com pré-natal adequado sejam encontradas 68,26% das mulheres entre esses valores.
c) > +1dp(adequado): espera-se que em uma população com pré-natal adequado sejam encontradas 15,9% das mulheres acima desse valor.
A análise dos dados foi efetuada por meio de estatística descritiva, obtendo-se as medidas de tendência central (médias, medianas e desvio padrão), frequências e percentuais. A análise bivariada tabular foi feita mediante modelo multinomial para verificar associação da variável raça/cor (grupo de brancas e negras) com o índice de adequação do pré-natal. A odds ratio (OR) bruta e ajustada e seus respectivos intervalos de confiança de 95% foram utilizados como medida de associação. A categoria “inadequado” foi o nível do desfecho adotado como referência, assim comparou-se e obteve-se a OR da raça/cor negra em relação a branca de acordo com os níveis intermediário e adequado, respectivamente.
Para este estudo, os dados utilizados foram provenientes de fonte de domínio público, oriundos de pesquisa aprovada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa -Conep, do Conselho Nacional de Saúde - CNS, em junho de 2013, como pré-requisito para a divulgação dos dados pela Pesquisa Nacional de Saúde. Nessas disposições, o presente estudo dispensou a apreciação por comitê de ética local.
RESULTADOS
Na tabela 1 estão apresentados a distribuição das mulheres segundo características sociodemográficas. A população do estudo apresenta idade média de 27 anos (dp 6,2), majoritariamente negra (65,9%). Predominaram as mulheres com parceiro fixo (78,1%), ensino escolar médio (44,8%), empregada por empresa pública ou privada (26,7%) e com renda entre 1 à 3 salários mínimos (25, 9%). Pouco mais de um terço das mulheres eram primíparas antes da gestação que investigou as características do pré-natal (37,5%) e 70,8% utilizaram o SUS para realizar o acompanhamento.
Tabela 1. Distribuição de mulheres que realizaram pré-natal no Brasil, segundo características sociodemográficas. Brasil, 2013.
Característica Sociodemográficas |
Mulheres que realizaram pré-natal no Brasil entre 2011 e 2013 |
|
n |
% |
|
Grupoetário (1851) |
|
|
18 à 24 anos |
606 |
33,4 |
25 à 35 anos |
980 |
54,1 |
≥ 36 anos |
226 |
12,5 |
Conjugalidade (1812) |
|
|
Com parceiro |
1416 |
78,1 |
Sem parceiro |
396 |
21,8 |
Escolaridade (1812) |
|
|
Sem instrução |
120 |
6,6 |
Ensino fundamental |
572 |
31,6 |
Ensino médio |
812 |
44,8 |
Ensino superior |
308 |
17,0 |
Ocupação (1812) |
|
|
Sem remuneração |
21 |
1,2 |
Autônoma |
149 |
8,2 |
Trabalhadora doméstica |
83 |
4,6 |
Empregada pública/privada |
483 |
26,7 |
Empregadora |
14 |
0,8 |
Não informado |
1062 |
58,6 |
Renda mensala (1812) |
|
|
≤ 1 salário mínimo |
170 |
9,4 |
1 à 3 salários mínimos |
470 |
25,9 |
≥ 4 salários mínimos |
87 |
4,8 |
Não informado |
1085 |
59,9 |
Paridade (1812) |
|
|
1 parto |
680 |
37,5 |
2 partos |
590 |
32,6 |
≥ 3 partos |
542 |
29,9 |
Tipo de atendimento (1786) |
|
|
Exclusivamente public |
1310 |
70,8 |
Público e privado |
79 |
4,3 |
Exclusivamente privado |
435 |
23,5 |
a. renda mensal de 678,00 reais em 2013
Fonte: Pesquisa Nacional de Saúde/ IBGE. 2013
O índice de adequação pré-natal apresentado na tabela 2 demonstrou que houve uma maior concentração de mulheres na categoria de pré-natal intermediário, 73,04%, seguidas das que tiveram uma assistência classificada como inadequada (16,15%) de acordo com os requisitos do PHPN e Manual técnico de atenção ao pré-natal de baixo risco. A menor proporção global foi referente à realização de um pré-natal considerado adequado para as mulheres brasileiras no período de 2011 à 2013, apenas 10,8%.
Tabela 2. Distribuição das mulheres que realizaram pré-natal segundo índice de adequação pré-natal global. Brasil, 2013
Índice de adequação |
Z escore |
n |
(%) |
Inadequado ( 2-14) |
< -1dp |
299 |
16,15 |
Intermediário (15-20) |
-1dp a +1 |
1.352 |
73,04 |
Adequado (21) |
>+1dp |
200 |
10,80 |
|
|
|
|
Fonte: Pesquisa Nacional de Saúde/ IBGE. 2013
Na tabela 3 está apresentado o índice de adequação criado a partir da padronização com base no escore z, segundo a raça/cor das mulheres que realizaram pré-natal no Brasil entre o período de 2011 e 2013. A adequação do pré-natal se mostrou baixa tanto para o grupo de mulheres brancas como para o grupo de negras, 15,51% e 8,56%, respectivamente; no entanto houve associação positiva entre ser negra e ter tido um pré-natal inadequado.
No tocante ao nível de adequação “intermediário” observou-se diferença estatística entre os grupos. Mulheres negras registraram 25% menor chance de ter um pré-natal intermediário quando comparado às brancas (OR=0,75; IC95%: 0,57-0,99). Com relação ao pré-natal adequado, verificou-se que mulheres brancas são mais prevalentes neste nível de acompanhamento, sendo que ser negra significou, neste estudo, uma redução de 60% de chance de obter uma assistência considerada adequada de acordo com os critérios pré-definidos pelo Ministério da Saúde, evidenciando diferenças estatisticamente significante entre os grupos (OR=0,40; IC95%:0,28-0,59).
No modelo ajustado as categorias mostraram o mesmo sentido do modelo não ajustado, porém com diminuição dos efeitos sobre o desfecho. Enquanto o nível de adequação intermediário perdeu magnitude na associação com a raça/cor, a categoria “adequado” permaneceu estatisticamente significante ao nível de 5%. Na primeira categoria observou-se perda de efeito de 7% e para segunda, referente ao nível “adequado”, a redução foi de apenas 5%.
Tabela 3. Associação entre índice padronizado de adequação do cuidado pré-natal e raça/cor de mulheres, ajustado por idade, escolaridade e estado civil. Brasil, 2013.
|
Branca (n=593) |
Negra (n=1.219) |
|
|
Índice de adequação (z escore) |
n Prev% |
n Prev%
|
OR bruta (95%CI)
|
OR (95%CI) ajustada a |
Inadequado |
77 (12,98) |
217 (17,80) |
|
|
Intermediário |
424 (71,50) |
897 (73,58) |
0,75 (0,57-0,99) |
0,82 (0,61- 1,10) |
Adequado |
92 (15,51) |
105 (8,61) |
0,40 (0,28-0,59) |
0,45 (0,30-0,67) |
|
|
|
|
|
a. ajustada por variáveis de idade, escolaridade e estado civil
Fonte: Pesquisa Nacional de Saúde/ IBGE. 2013
DISCUSSÃO
Os resultados desse estudo apontam que, embora a cobertura do pré-natal tenha aumentado em todo o Brasil, apenas 10,8% das mulheres receberam uma assistência considerada adequada de acordo com os critérios mínimos estabelecidos pelo Programa de Humanização do Pré-natal e Nascimento. Estudos anteriores semelhantes a este também indicam taxas baixas de adequação global, embora sejam maiores do que a encontrada em nosso estudo 21,6%, 25,7% e 22,6% respectivamente(6,14,12). A esse respeito, dados institucionais e estudos desenvolvidos no Brasil destacam que embora tenhamos uma cobertura de pré-natal crescente, quando considerados aspectos relacionados à adequação da assistência há uma redução importante nesse percentual(15,2,6). Em estudo realizado no México destacou-se também as diferenças na cobertura de cuidados por áreas geográficas identificadas entre os estados, salientando que a probabilidade de receber atendimento pré-natal adequado é maior nos lugares com mulheres de nível socioeconômico mais alto, com mais anos de escolaridade e com plano de saúde, cenário semelhante ao brasileiro(11,15).
Em investigação realizada com mulheres usuárias do serviço público de saúde na Amazônia legal e em cidades do Nordeste demonstrou-se, semelhantemente aos nossos achados, que o menor percentual das usuárias compôs o grupo que realizou um pré-natal considerado adequado, apresentando, no entanto, taxa menor que a nossa pesquisa, de apenas 1,5% no Acre e 6,3% no Rio Grande do Norte. A taxa de inadequação em nosso estudo, por sua vez, se apresentou duas vezes mais elevada do que a identificada nessas localidades, 16,15% e 8% respectivamente; já o nível intermediário de adequação foi representado pela maior percentagem de mulheres, tal como nossos resultados, evidenciando que a maioria das gestantes, tanto à nível regional como nacionalmente, ainda vivencia uma assistência parcialmente inadequada(4).
As diferenças nos conceitos de adequação da assistência pré-natal podem variar de acordo com a inclusão dos componentes utilizados na criação dos índices e por isso gerar limitações na comparação dos indicadores de adequabilidade(16,17). Entretanto ao se utilizar os mesmos parâmetros e índices padronizados nos estudos, faz-se possível o estabelecimento de paralelos entre as pesquisas e o fornecimento de resultados passíveis de comparação e generalizações. Estudos que também usaram o PHPN têm convergido com os nossos resultados à medida que, utilizando esse programa como um protocolo mínimo de ações que busca uniformizar condutas na atenção obstétrica no Brasil, demonstra a sua abrangência qualitativa e as diferenças na distribuição da assistência na população(10).
A literatura científica nacional e internacional tem destacado que a atenção pré-natal está distribuída de forma desigual entre as mulheres, e os níveis de adequação estão fortemente associados às questões sociodemográficas(1,2,6,12,3,11). Nesse sentido, chamamos a atenção para o aspecto racial como ponto de destaque na temática do acesso à assistência adequada, a respeito do qual nosso estudo destaca que a maior porcentagem de mulheres que vivenciou o pré-natal inadequado no Brasil se auto-declarou negra, enquanto que para a assistência considerada adequada as brancas representaram quase o dobro da população quando comparadas às negras.
Para Leal e colaboradores o cenário de desigualdade entre negras e brancas relaciona-se tanto à discriminação racial quanto a fatores estruturais, como renda e escolaridade(6). Sobre esse último fator, um trabalho em Bagladesh denuncia a relação entre a baixa condição social das mulheres e a dificuldade de tomar decisões sobre a utilização do cuidado materno(1). Em estudo, com maioria da população negra, as mulheres investigadas associaram a baixa qualidade do cuidado recebido com a discriminação racial e social, denunciando um cuidado superficial, com maior tempo dispensado para o atendimento de mulheres brancas. Em concordância, Massignam enfatiza que além da raça/cor, o baixo poder aquisitivo e a classe social são razões comuns para a discriminação nos cuidados de saúde e também devem ser considerados dentre os marcadores sociais de desigualdade(18).
Estudo de abrangência nacional sobre diferenças raciais no acesso ao atendimento no período gestacional e parto demonstrou que em termos socioeconômicos e de acesso à saúde, as mulheres negras exibiram desvantagens, ocupando as classes econômicas mais baixas, possuindo os menores anos de escolaridade, as piores rendas e tendo acesso inadequado aos procedimentos realizados no pré-natal, assim como exibindo piores experiências durante o parto, com menor vinculação à maternidade, maior ausência de acompanhante e peregrinação para o parto, além de histórico de menos anestesia local para episiotomia(2,5). Essas mulheres estão expostas à, no mínimo, tripla discriminação de gênero, raça e classe, o que opera para dificultar o acesso aos serviços de saúde e interfere em seus processos de adoecimento e morte.
No tocante às pesquisas sobre a adequação do pré-natal, focadas na investigação de características marcadoras de iniquidades sociais, com ênfase na cor da pele, destaca-se que mulheres de pele preta, com pouca escolaridade e baixa renda são frequentemente aquelas que mais vivenciam uma assistência inadequada(12). Fato confirmado por estudos que avaliaram a adequabilidade da assistência pré-natal no Brasil e no mundo, com resultados referentes à população dos Estados Unidos da América, dados nacionais e em regiões específicas do Brasil, onde a maior porcentagem de mulheres não brancas correspondia a aquelas que tiveram seu pré-natal classificado como inadequado, tanto no aspecto global quanto para realização de procedimentos isolados(19,2,12, 13).
A associação da raça/cor com a renda familiar e a utilização dos serviços públicos de saúde tem sido reiterada por diversos estudos, evidenciando que mulheres negras, menos favorecidas economicamente, têm menor acesso ao seguro privado e por isso são as que mais utilizam os serviços públicos, inclusive para o atendimento pré-natal(2,4). Em pesquisa realizada na África Subsaariana, Serra Loa, que analisou a assistência materna no serviço público de saúde, concluiu-se que as desigualdades estruturais influenciam o grau em que mulheres em diferentes classes sociais podem acessar e usar os serviços de saúde materna em um nível adequado de qualidade(20).
Portanto, as mulheres negras, usuárias prioritárias do Sistema Único de Saúde (SUS), encontram-se mais expostas às limitações de funcionamento da rede pública, principalmente por enfrentarem as iniquidades na assistência, obtendo os piores resultados na utilização dos serviços. Almeida e colaboradores ressaltam, em pesquisa de base populacional, que as barreiras de acesso são razões importantes para a não realização do pré-natal(2). Outros estudos destacam a inadequação da assistência como um efeito de multifatores que contribuem para o insucesso na utilização do serviço de saúde, como questões estruturais e organizacionais do sistema e os aspectos individuais da usuária, fazendo com que as mulheres mais afetadas pela ocorrência de desfechos negativos sejam as menos beneficiadas pelo cuidado pré-natal(15,11,20).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nossos achados apontam uma adequação global da assistência pré-natal de 10,8%, abaixo do que tem sido apontada pela literatura nacional. Os resultados também mostram associação entre o nível de adequação pré-natal e a raça/cor, evidenciando que mulheres negras possuem menor chance de realizar um pré-natal considerado adequado de acordo com os critérios de adequação proposto pelo Ministério da Saúde. Evidenciamos também que grande parte das mulheres brasileiras está na faixa que configura um pré-natal intermediário quanto à adequação, o que demonstra que mesmo após o grande aumento da cobertura de assistência pré-natal nos últimos anos, a maior parcela de mulheres brasileiras ainda vivencia um cuidado superficial e sem garantia de qualidade no atendimento, o que é acentuado quando essas mulheres são negras e pobres.
O ajuste de modelo segundo idade, escolaridade e estado civil evidencia que as categorias de resposta permanecem no mesmo sentido do modelo não ajustado, com pequena diminuição dos efeitos sobre o desfecho. Nesse sentido, o nível “adequado” referente ao cuidado pré-natal permaneceu estatisticamente significante mesmo após ajuste, o que permite inferir que mulheres negras não conseguem alcançar a adequação do cuidado pré-natal mesmo quando fatores socioeconômicos são ajustados para não interferir nesse resultado, o que evidencia que o racismo pode ser o fator que opera no acesso das mulheres aos serviços de saúde qualificados.
O presente estudo propôs a criação de um índice de adequação pré-natal baseado nas orientações do PHPN e do Manual técnico de atenção ao pré-natal de baixo risco, sinalizando-as na descrição metodológica, e utilizou a padronização do índice por meio do escore Z, que trabalha com medidas de tendência central como a média e o desvio padrão, facilitando a comparação, no sentido de sanar a limitação do estudo quanto à diversidade de conceitos referentes à adequação do pré-natal, a qual pode gerar limitações na comparabilidade entre os estudos. Por se tratar de dados nacionais recentes, destaca-se a sua importância para monitorar a aplicabilidade e eficácia do PHPN e a implementação das ações orientadas pelas normas e manuais técnicos, sendo, desta forma, uma importante ferramenta capaz de gerar ações programáticas e estratégicas.
É importante discutir as questões raciais e sociais que envolvem a população geral e feminina, em particular, e estimular estudos e ações sobre os processos de exclusão social provocados pelo racismo e pelo empobrecimento em nossa sociedade. Suas implicações no cuidado são fundamentais para entender a dinâmica dos processos saúde/doença.
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Contribuição dos autores:
1. Millani Souza de Almeida Lessa: Redação do manuscrito, concepção, delineamento, análise e interpretação dos dados, revisão e aprovação da versão final.
2. Enilda Rosendo do Nascimento: Redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.
3. Edméia de Almeida Cardoso Coelho: Redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.
4. Isa Maria Nunes: Redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.
5. Iêda Jesus Soares: Redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.
6. Quessia Paz Rodrigues: Revisão e aprovação da versão final
Recebido: 25/04/2019
Revisado: 24/04/2020
Aprovado: 24/04/2020