ARTIGOS ORIGINAIS

Desafios no trabalho do enfermeiro na Rede de Atenção Psicossocial: estudo exploratório-descritivo


Fabrício Soares Braga1, Agnes Olschowsky1, Mariane da Silva Xavier Botega1

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul

RESUMO

Objetivo: identificar fatores e obstáculos que interferem no processo de trabalho do enfermeiro na Rede de Atenção Psicossocial. Método: estudo exploratório-descritivo realizado no período de outubro a dezembro de 2017, nos componentes da Rede de Atenção Psicossocial de uma gerência distrital de saúde de Porto Alegre, RS, Brasil. Participaram 12 enfermeiros mediante entrevista semiestruturada. As informações foram transcritas e submetidas à análise de conteúdo na modalidade temática. Resultados: da análise emergiram duas categorias temáticas: Ambiente de Trabalho e Obstáculos para a Realização do Trabalho. Discussão: violência, pobreza, sucateamento estrutural, barreiras para mobilidade urbana, desmotivação, fila de espera e sobrecarga de trabalho formam um sistema de saúde pobre para pobres, produzindo descontentamento nos enfermeiros, pois necessidades de usuários e trabalhadores para realização do cuidado são desconsideradas. Conclusão: considera-se cada problema como causa ou consequência das dificuldades identificadas. O cuidado humanizado deve provir da desestagnação para enfrentamento da realidade hostil.

Descritores: Enfermagem Psiquiátrica; Condições de Trabalho; Enfermeiras e Enfermeiros; Cuidados de Enfermagem; Saúde Mental; Redes Comunitárias


INTRODUÇÃO

O cuidado em saúde mental pautado na diretriz da integralidade, com a consolidação da Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB), se direciona para o sujeito no território e em liberdade, propondo serviços que se opõem à psiquiatria tradicional que isolou e excluiu os sujeitos tidos como loucos dentro dos manicômios(1).

Os trabalhadores, ao promoverem o cuidado de saúde mental em liberdade no território, visam construir um vínculo com o usuário que possibilite realizar a prevenção do agravamento do transtorno mental; reduzindo a quantidade de crises agudas, diminuindo os sintomas; promovendo tanto a reabilitação quanto a promoção da saúde mental através de estímulos para que os usuários exerçam o seu papel como cidadãos, a sua autonomia, o seu empoderamento e autocuidado. Assim, os usuários da saúde mental conseguem uma melhor participação social, interagindo com os demais elementos do território(2).

Os serviços de saúde mental, substitutivos ao modelo manicomial, têm como meta trabalhar em uma articulação chamada de Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que conforma-se por diferentes serviços de atenção primária, secundária e terciária de saúde, e assume os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) como articuladores estratégicos(3).

Entretanto, os trabalhadores percebem que a articulação entre os serviços de saúde mental é um desafio complexo e sua não efetivação traz consequências para usuários e trabalhadores.

A falta de articulação e as deficiências presentes na RAPS foram apontadas como causadoras de descontentamento e de sofrimento no trabalho, em estudo realizado com enfermeiros da saúde mental. Estes revelaram o quanto existe de ansiedade frente às expectativas não correspondidas, em razão das dificuldades de acesso que os usuários e familiares enfrentam na atenção primária à saúde durante os planejamentos de alta do CAPS, prejudicando a resolutividade e agilidade necessárias para um bom atendimento e assistência ao usuário; e da dificuldade de quebra do paradigma da psiquiatria tradicional nas instituições de saúde e na própria assistência de enfermagem(4).

Considerando essa contextualização, são pertinentes a reflexão e o aprofundamento das questões relativas ao trabalho do enfermeiro na RAPS, focando a atenção nas contribuições desse trabalho para o fortalecimento da rede, pois o cuidado em liberdade na saúde mental está em permanente tensionamento com instituições da psiquiatria tradicional que perderam parte do poder após a RPB. Assim, delineou-se este estudo a partir da seguinte questão de pesquisa: Quais os elementos do território que interferem no processo de trabalho do enfermeiro na RAPS? Visando responder tal questionamento, objetivou-se identificar fatores e obstáculos que interferem no processo de trabalho do enfermeiro na RAPS.

MÉTODO

Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa, do tipo exploratório-descritivo(5). O cenário desta pesquisa foi composto por pontos de atenção da RAPS, localizados em um território regido por uma gerência de Distrito de Saúde (DS) no município de Porto Alegre, RS, Brasil, nos quais haviam enfermeiros na equipe: oito Unidades de Saúde da Atenção Básica, uma Equipe de Saúde Mental Adulto (ESMA), um CAPS II, um CAPS Álcool e Drogas (CAPSad) e uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA).

A seleção dos participantes se deu de forma intencional, através de convite aos enfermeiros alocados nos serviços de saúde que foram cenário desta pesquisa. Participaram do estudo 12 enfermeiros que se enquadraram no critério de inclusão de estabelecido, qual seja: trabalhar há, no mínimo, três meses no serviço, excluindo-se os que estivessem afastados das atividades laborais em razão de férias ou licença.

A seleção dos participantes é justificada no traço das técnicas de pesquisa qualitativa que adota um estilo de pesquisa que prefere o aprofundamento do detalhe à reconstrução do todo, sendo uma escolha metodológica que guia para a complexidade do fenômeno, atribuída a proximidade ontológica entre o pesquisador e pesquisado. Para isso, a pesquisa qualitativa segue o caminho da redução da extensão do fenômeno e a focalização em poucos casos, dos quais se propõe individuar e representar os mínimos detalhes(6).

As informações foram coletadas no período de outubro a dezembro de 2017 por meio de entrevista semiestruturada, em que o entrevistado tem a possibilidade de discorrer sobre o tema sem se prender à indagação formulada(5).

Neste estudo exploratório-descritivo, utilizou-se a análise de conteúdo das entrevistas à luz do referencial do Processo de Trabalho e Psicodinâmica do Trabalho(7-8). Optou-se por analisar segundo a modalidade temática, cujo intuito consiste em descobrir os núcleos de compreensão que compõem as falas dos entrevistados. Este tipo de análise se divide em três etapas: pré-análise; exploração do material; e tratamento dos dados, inferência e interpretação(5). A pré-análise ocorreu com a leitura e conferência da transcrição textual dos áudios das entrevistas. Cada transcrição foi catalogada no software Nvivo 11 e, a partir dele, foram selecionadas as unidades de registro e as unidades de contexto. Na exploração do material, a categorização se deu buscando agregar cada unidade de contexto em núcleos de compreensão, formando, assim, as categorias temáticas. E, por fim, na fase de tratamento dos resultados obtidos, a categorização das informações produzida através do Nvivo 11 foi exportada para uma planilha do Microsoft Excel, possibilitando a sua interpretação à luz do referencial teórico.

Conforme prevê a Resolução 466/12, as considerações éticas foram observadas, sendo este estudo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Porto Alegre sob parecer nº 2.311.407, em outubro de 2017.

RESULTADOS

A partir da análise de conteúdo das informações, emergiram duas categorias temáticas: Ambiente de Trabalho e Obstáculos para a Realização do Trabalho.

Ambiente de trabalho

Esta categoria temática aborda a relação dos enfermeiros com seu ambiente de trabalho: o território onde os profissionais efetivam seu processo de trabalho em rede.

Uma das características presentes no território que interfere no trabalho é a violência urbana.

Às vezes os usuários não vêm em função da violência. Porque, às vezes, a região onde mora está fechada, teve tiroteio. [E3]

Não tem como tu estar inserido dentro disso sem sofrer violência, imagina se acordar no meio da noite ouvindo tiro, é uma violência (...) eles são vítimas diárias da violência. [E7]

E essa violência não interfere somente no trabalho extramuros, mas também no trabalho interno na unidade.

Tinha uma usuária que o filho dela foi morto no tráfico, não só morto, ele foi esquartejado. [E3]

Apareceram só duas pessoas para fazer curativo na unidade durante aquela manhã: uma que tinha tomado uma bala perdida e uma moça gestante que tinha se machucado fugindo do tiroteio. [E12]

A violência no ambiente de trabalho, por vezes, é originada de uma interação conflituosa entre enfermeiro e usuário.

A equipe já passou por alguns traumas, mas com a organização dos atendimentos nunca mais aconteceu. Eu tenho conversado com a equipe sobre não dificultar o acesso do paciente de saúde mental. [E5]

Os usuários acham que a culpa der tudo é nossa, se falta insumo, se falta tudo. Então, esse tipo de violência verbal sempre ocorre. [E11]

O paciente, ainda mais com paciente psiquiátrico, tem um limite muito pequeno de ouvir “não” e, infelizmente, eles chegam aqui 10 ou 11 horas da manhã, quando todas as vagas de acolhimento já foram preenchidas por crianças com febre e outros casos mais graves de saúde. [E7]

A relação entre a violência e a condição social de pobreza da população do território é observada pelos enfermeiros dos DS estudados.

É a nossa área mais vulnerável, são casos de crianças com traumas após verem homicídios, acordarem no meio da madrugada com tiroteio. [E7]

A gente atende uma população bem carente. Tem várias questões de violência. Às vezes, abuso sexual. [E11]

As demandas dos usuários estão diretamente relacionadas com a condição vulnerável na qual estão inseridos.

A maioria dos pacientes são bem vulneráveis (...). Até roupa a gente tem que correr atrás para conseguir. [E1]

É uma zona completamente vulnerável. A gente tem usuários cujo problema é puramente social e temos muito cuidado para não medicar nesses casos. [E2]

Existe também um processo de sucateamento da estrutura dos serviços públicos de saúde disponibilizados pela gestão.

É um local com três mesas. Três pacientes estão sendo atendidos ao mesmo tempo. A pessoa geralmente não consegue expor muita coisa (...). Não tem privacidade nenhuma. [E1]

Não tenho um corrimão em todas as escadas, não tenho um antiderrapante na escada, é muito descaso, muito triste a situação. [E2]

Obstáculos para a realização do trabalho

As barreiras para mobilidade urbana são identificadas como obstáculos para o trabalho em rede.

A dificuldade maior é a gente não ter carro para fazer as coisas, então é a falta de recurso mesmo. [E2]

A gente tem que ter carro, o carro é uma das coisas que nos tranca bastante, eu acho que o apoio matricial tinha que ser lá na unidade. [E3]

Os usuários dos serviços de saúde também possuem dificuldades em utilizar o transporte público devido ao valor da passagem.

O CAPS é aqui perto, dá para ir a pé (...). Mas o postão é um pouco mais longe, então, às vezes, eles não têm passagem, né? Aí complica. [E11]

Para os pacientes acessarem o CAPS ou qualquer outro setor da rede é bem complicado. Muitos não têm como se deslocar, não têm passagem ou por diversos outros motivos acabam não indo. [E4]

Uma das propostas que está sendo veiculada entre os profissionais da rede é a divisão do território de abrangência entre as equipes do apoio matricial.

A gente pensa em dividir o território ao meio. A gente fica com uma metade mais próxima. [E2]

É um distrito muito grande (...). A gente começou a pegar mais esse lado para facilitar também o deslocamento do usuário. [E3]

A desmotivação também é apontada como obstáculo e está atrelada a um sentimento de tristeza nos enfermeiros.

E o que me deixa mais triste é que, quando eu trabalhava no X, que era uma parceria público-privada, não podia abrir a porta se estivesse faltando alguma coisa e, aqui, a gente funciona faltando tudo. [E2]

Eu estou cansada de trabalhar aqui, eu já pedi inclusive para sair (...). A maioria dos pacientes que vêm para cá não quer melhorar. [E10]

A fila de espera para atendimento, também identificada como obstáculo, ocorre pelo fenômeno da demanda reprimida dos casos não discutidos no matriciamento e não acolhidos pelos serviços de saúde mental que operam com portas fechadas.

Eu acho que as crianças são um ponto que a gente está precisando melhorar (...). Mas não é nós, a rede tem que se expandir para poder conseguir comportar toda a demanda. [E8]

Eu tenho minha pastinha com 10 casos e consigo passar quatro (no apoio matricial). Então, a gente tem uma demanda reprimida muito grande. [E5]

Forma-se, também, a fila de espera dos usuários que já foram discutidos na interconsulta do apoio matricial e que permanecem aguardando vaga na agenda do acolhimento dos serviços de saúde mental.

A gente tem uma fila de espera um pouquinho grande, demora um mês para a pessoa entrar logo que vem aqui (no acolhimento). [E2]

A EESCA (Equipe Especializada em Saúde da Criança e Adolescente) que está com a agenda lá para a frente, a nossa agenda também está lá para a frente. [E3]

Essa fila de espera também resulta, em parte, da dificuldade de deslocamento no território.

Matriciei 25 crianças no ano de 2016 e nove não compareceram. Eles retornam para a unidade. E aí se faz a mesma coisa, se faz todo aguardo em fila de espera. [E12]

A sobrecarga de trabalho a que os enfermeiros se sentem submetidos também é um obstáculo. Ela é atribuída a três fatores. O primeiro deles é o número insuficiente de recursos humanos.

O problema é a superlotação e a falta de pessoal na equipe de enfermagem, técnicos. [E1]

Acho que está faltando médico, está faltando enfermeiro, técnico também está faltando, está faltando pessoal como um todo, agente comunitário de saúde nós não temos. [E6]

O segundo fator de sobrecarga de trabalho é a falta de tempo para se reunir com a equipe e planejar os atendimentos que serão realizados.

Se talvez a gente tivesse um tempo maior para poder organizar ações, discutir sobre esses assuntos, coisas que não temos (...). A gente fica afogado nessa demanda espontânea de atender paciente. [E4]

A problemática da atenção primária em saúde é que ela acabou recebendo uma sobrecarga muito grande de demandas (...). Então, a demanda é muito grande. [E5]

O terceiro fator é a percepção de que existe uma defasagem no dimensionamento da área de abrangência das equipes de saúde da atenção básica.

O nosso território tem mais de 10 mil habitantes. Eu tenho vários condomínios sendo construídos aqui. Então, isso também é um complicador. [E5]

O dimensionamento da população aqui está subestimado. Nós estamos com uma equipe que seria para atender no máximo oito mil pessoas, mas temos mais de 15 mil. [E6]

DISCUSSÃO

Entende-se o território como o ambiente de trabalho do enfermeiro na RAPS, pois é nesse espaço de organização da vida social que esse profissional pensa e age sobre o cuidado em liberdade ao usuário de saúde mental, ainda que sua relação com os fatores interferentes dificultem a condução das ações no processo de trabalho(9). A violência urbana interfere no processo de trabalho dos enfermeiros, configurando uma barreira de acesso territorial. O fechamento de algumas regiões dos territórios em virtude de tiroteios impede os usuários de acessar os serviços e compromete algumas ações dos profissionais, como as visitas domiciliares e práticas educativas, resultando numa descontinuidade do cuidado em saúde mental(10).

A violência também é percebida nos conflitos entre enfermeiros e usuários, uma vez que esses sentem que suas demandas de atenção não são atendidas conforme esperado e/ou almejado dentro do planejamento de trabalho do enfermeiro. As demandas dos usuários da saúde mental não se adaptam, por exemplo, às restrições de horário de acolhimento. A dificuldade para os enfermeiros aumenta com os usuários que transformam frustração em agressão, reproduzindo as situações de violência com que convivem no território. Ao encontro disso, um estudo apontou que o trabalho envolve questões relacionadas à comunicação e vivência da dinâmica interpessoal e intergrupal que, quando prejudicadas, gera enfraquecimento do vínculo entre usuário e profissional(11).

Os territórios pobres possuem uma população altamente exposta à violência autorrelatada e, nessas áreas, a exposição é ainda mais alta em populações socioeconomicamente desfavoráveis, homens e negros, o que evidencia a ligação entre a violência urbana e a pobreza(12).

A violência a qual os usuários em condição social de pobreza estão vulneráveis é um agravante dos aspectos psíquicos, pois experenciar uma ou várias situações de violência desenvolve nos usuários sintomas sugestivos de transtornos mentais. A partir disso, os enfermeiros necessitam pensar o seu processo de trabalho em uma perspectiva ampliada, considerando as condições de vida dos usuários nos seus territórios de convivência, rompendo, assim, com o reducionismo que entende saúde como ausência de doença(10).

Esses aspectos estão diretamente relacionados ao sistema político nacional. No Brasil, a democracia formal é recente, a cidadania é incipiente e o sistema político partidário pouco apresenta engajamento para superação das situações de vulnerabilidade. Os recursos financeiros e estruturais do Sistema Único de Saúde (SUS) são seletivos, se tornando uma política de compensação e de acesso limitado, direcionado às classes sociais mais pobres da população. Assim, há uma segmentação da população em pobres que recorrem somente ao serviço público do SUS e os que possuem planos de saúde ou pagam os serviços privados diretamente, existindo um subsídio governamental aos clientes de planos de saúde através da renúncia fiscal do imposto de renda(13).

Os trabalhadores dos serviços públicos de saúde do SUS, dessa maneira, seguem a política de saúde compensatória implementada pelo Estado em resposta à vulnerabilidade presente nos territórios, ou seja, um SUS pobre para pobres. Trabalhar nessa lógica produz um sentimento de descontentamento nos enfermeiros, pois o sucateamento da estrutura interfere na necessidade de privacidade e acessibilidade à estrutura física para realização do cuidado em saúde. Este contesto leva o enfermeiro a readaptar o cuidado que haviam planejado realizar com o usuário, acabando por limitar a potencialidade do trabalho.

Os profissionais do matriciamento tampouco têm apoio da gestão para o deslocamento até as unidades básicas e de saúde da família mais afastadas para realizar alguma atividade compartilhada, como consulta e visita domiciliar conjunta. Como o tempo de duração da interconsulta se estende por todo o turno, se pode afirmar que os enfermeiros da atenção básica utilizam os recursos do vale-transporte, recebido no início do mês, para se deslocar até o local onde ocorre a interconsulta do apoio matricial, pois esse será o seu local momentâneo de trabalho. No caso dos enfermeiros do matriciamento, se eles se deslocarem para as unidades básicas estarão utilizando o valor do vale-transporte oferecido pelo município somente no primeiro deslocamento, nos demais estariam utilizando os recursos do seu próprio salário. Assim, os enfermeiros do apoio matricial só se deslocam até as unidades que ficam a uma distância que pode ser percorrida caminhando.

Desde a implementação do SUS, os municípios foram os que mais expandiram os investimentos em saúde, com redução proporcional do nível federal, mas a esfera de governo municipal se encontra estrangulada em sua capacidade de aumento de recursos financeiros, ainda mais em um contexto de crise financeira do capitalismo, pois o SUS não pode ser construído solitariamente(14).

As aquisições de tecnologias duras necessárias para o funcionamento dos serviços de saúde da atenção secundária e terciária são maiores do que os investimentos na atenção primária de saúde, logo, o cuidado em saúde mental no território tem um impacto menor no orçamento dos governos. Deste modo, é possível atender às necessidades sociais e de saúde da comunidade, assegurando o acesso dos usuários aos serviços de saúde da RAPS, através de gestores públicos que direcionem os investimentos necessários para a promoção de um cuidado na atenção básica, onde os custos são menos onerosos, sem perder a qualidade no atendimento(15).

A desmotivação é um fator de sofrimento no trabalho e um obstáculo quando o profissional não vislumbra possibilidades de uma transformação na rotina que lhe perturba; entretanto, segundo a abordagem Dejouriana(8), esse sentimento pode ser um fator de impulso para a criatividade no trabalho, modificando elementos estagnados, melhorando o produto do processo de trabalho e, por fim, causando prazer. Assim, o foco da análise Dejouriana não aborda somente o prazer-sofrimento no trabalho, mas na forma como o trabalhador particulariza as experiências (inclusive as de morte dos usuários) e utiliza estratégias defensivas individuais e coletivas para superar a situação(16).

A fila de espera é produto da dificuldade de acesso, seja pelas restrições no acolhimento ou pela dificuldade do usuário em se deslocar até a unidade de saúde. Existem limitações no contexto do território, distrital e municipal, que exigem dos profissionais da Atenção Psicossocial Especializada uma adaptação do acolhimento. O acolhimento dos usuários é realizado mediante delimitação de horário, após os casos serem discutidos no matriciamento ou em até 30 dias após terem alta da UPA ou hospital. A dificuldade do usuário em ir até a unidade de saúde, por falta de recursos para pagar a tarifa do transporte público, acaba ocasionando a alta por abandono e, assim, retorna para a fila de discussão de caso na interconsulta.

O absenteísmo no serviço especializado é, ao mesmo tempo, causa e consequência do aumento da fila de espera: é causa porque os usuários do final da fila poderiam ocupar a vaga dos faltosos, facilitando o acesso ao serviço de saúde, e é consequência porque um longo tempo de espera faz o usuário esquecer ou não necessitar do serviço especializado agendado. Na tentativa de amenizar as consequências do absenteísmo, uma técnica testada em um ambulatório foi marcar uma quantidade maior de usuários do que a quantidade de vagas existentes para atendimento naquele dia (método conhecido como overbooking e já utilizado por companhias aéreas e restaurantes no Brasil) e avisar os usuários através de um telefonema ou de mensagem de texto antes da data da consulta(17).

A técnica é exitosa na diminuição do número de vagas de atendimento não utilizadas, mas não é resolutivo para os usuários faltosos que retornarão para o fim da fila de espera. Talvez essa possa ser uma experiência a ser testada nos serviços de saúde e verificar se seus resultados repercutem na diminuição das filas de espera. A sobrecarga de trabalho interfere por bloquear o enfermeiro em um ciclo de sofrimento, pois o ciclo se inicia com o planejamento insuficiente para as ações de cuidado, a sobrecarga de trabalho percebida aumenta pela desorganização para satisfazer a demanda e, assim, o ciclo se reinicia com a diminuição do tempo para realizar o planejamento. Quando o trabalhador utilizou todas as formas que possuía de saber e de poder na organização do trabalho, quando não consegue modificar de tarefa, quando existe a certeza de que o grau de insatisfação não pode ser reduzido, chancela-se o início do sofrimento. Logo, o sofrimento inicia quando existe um bloqueio na relação sujeito-organização do trabalho(18).

Um trabalho é considerado fatigante se ele se opõe a diminuição da carga psíquica, se ele permite esta diminuição, é equilibrante. No trabalho fragmentado, não existe espaço para atividade fantasmática (avaliação instintiva da realidade) e, assim, as capacidades imaginárias não são utilizadas com o objetivo de contribuir para a formação de sentimento de prazer e o meio de descarga psíquica é bloqueado. Ocorre, assim, a acumulação da energia psíquica, convertendo-se em fonte de tensão e de sofrimento, sendo que, no trabalho fatigante, a carga psíquica pode crescer até surgirem a fadiga, a falta de energia e a patologia(19).

Os enfermeiros percebem seu trabalho como fatigante e apontam como causa a presença de uma população, na área de abrangência, maior do que a equipe tem condições de oferecer cuidado.

CONCLUSÃO

A violência urbana, a condição social de pobreza, o sucateamento da estrutura, as barreiras para mobilidade urbana, a desmotivação, as filas de espera e a sobrecarga de trabalho são fatores e obstáculos presentes no território dos serviços de saúde que foram cenários do estudo e que interferem nos modos de pensar e agir sobre o processo de trabalho do enfermeiro na saúde mental. E, consequentemente, interferem negativamente na construção da RAPS.

Pode-se considerar que cada problema é causa ou consequência das outras dificuldades também identificadas. Assim, fazer intervenções direcionadas para somente um desses impasses não resulta em benefícios para a produção de vida e cuidado em saúde mental no território. Igualmente, não é vantajoso para o cuidado em saúde mental tentar esconder os sofrimentos causados por esses fatores, retrocedendo às políticas públicas manicomiais; institucionalizando os sentimentos dos usuários e trabalhadores; produzindo atendimento somente em unidades fechadas, como os pontos de atenção hospitalar e comunidades terapêuticas.

O esforço criativo dos enfermeiros para produzir um cuidado humanizado em saúde mental no território, e buscar o fortalecimento da RAPS, deve provir da desestagnação para o enfrentamento de uma realidade hostil, caracterizando esse movimento como uma verdadeira batalha no sentido de superar os percalços e obter uma melhoria no atendimento produzido em rede no território.

Como limitação do estudo destaca-se a impossibilidade de incluir os demais componentes da RAPS no estudo (Atenção Hospitalar, Atenção Residencial de Caráter Transitório, Estratégias de Desinstitucionalização e Reabilitação Psicossocial) em razão da ausência desses serviços no DS. Sugere-se a realização de pesquisas que tenham como temática o processo de trabalho das equipes de enfermagem na saúde mental e que utilizem a triangulação dos dados. A observação participante combinada com outras técnicas de pesquisa, como a entrevista, por exemplo, pode tornar o diálogo e o aprofundamento dos resultados sempre mais ricos, fazendo novas descobertas sobre o fenômeno estudado.


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Todos os autores participaram das fases dessa publicação em uma ou mais etapas a seguir, de acordo com as recomendações do International Committe of Medical Journal Editors (ICMJE, 2013): (a) participação substancial na concepção ou confecção do manuscrito ou da coleta, análise ou interpretação dos dados; (b) elaboração do trabalho ou realização de revisão crítica do conteúdo intelectual; (c) aprovação da versão submetida. Todos os autores declaram para os devidos fins que são de suas responsabilidades o conteúdo relacionado a todos os aspectos do manuscrito submetido ao OBJN. Garantem que as questões relacionadas com a exatidão ou integridade de qualquer parte do artigo foram devidamente investigadas e resolvidas. Eximindo, portanto o OBJN de qualquer participação solidária em eventuais imbróglios sobre a matéria em apreço. Todos os autores declaram que não possuem conflito de interesses, seja de ordem financeira ou de relacionamento, que influencie a redação e/ou interpretação dos achados. Essa declaração foi assinada digitalmente por todos os autores conforme recomendação do ICMJE, cujo modelo está disponível em http://www.objnursing.uff.br/normas/DUDE_final_13-06-2013.pdf

Recebido: 26/06/2018 Revisado: 09/01/2019 Aprovado: 09/01/2019