ARTIGOS ORIGINAIS

Percepção e vivências de crianças e adolescentes submetidas ao trabalho: estudo exploratório


Natália Miranda Monteiro1, Gutembergue Santos de Sousa2, Maria Mônica Machado de Aguiar3, Maria Goreth Silva Ferreira3

1Universidade Federal do Amazonas
2Universidade Federal do Mato Grosso
3Universidade do Estado do Pará

RESUMO

Objetivo: apreender as vivências e sentimentos que a exploração da mão de obra infantil gera em crianças/adolescentes atendidas pelo Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI. Método: estudo qualitativo de caráter exploratório participativo, alicerçado no método criativo sensível, com 20 crianças e adolescentes com idade de 07 a 16 anos, através da técnica da análise do discurso do sujeito. Resultados: o estudo aponta as seguintes categorias temáticas: Necessidade estrutural e emocional como suporte indispensável ao seu desenvolvimento; A afetividade familiar como um elemento de construção; A estrutura familiar da criança/adolescente explorada pelo trabalho; As experiências vitais relacionadas de crianças/adolescentes explorados pelo trabalho; A educação como forma de romper com o ciclo de opressão. Discussão: foram encontrados nos discursos indícios de tendência à depressão e ideação suicida. Conclusão: as experiências vivenciadas interferiram na saúde física e mental dos depoentes, prejudicando o seu processo de crescimento e desenvolvimento saudável.

Descritores: Saúde da Criança; Saúde do Adolescente; Enfermagem; Exploração Social; Trabalho de Menores.


INTRODUÇÃO

Apesar da mobilização para erradicar o trabalho infantil no Brasil e no mundo, este ainda se constitui como um grande desafio para o governo e a sociedade. De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância, em 2011, aproximadamente 150 milhões de crianças entre 5 e 14 anos trabalhavam em países em desenvolvimento, correspondente a 16% do total de pessoas nessa faixa etária(1). O censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) descreveu um cenário no mínimo desolador no Brasil em 2010: havia 1.666.750 crianças entre 5 e 15 anos trabalhando. Dessas, 160.100 (9,6%) eram crianças com idades entre 5 e 10 anos, e 1.506.650 (90,4%) eram jovens que tinham entre 11 e 15 anos(2).

A infância e a adolescência são reconhecidas como fases indispensáveis ao processo de crescimento e desenvolvimento na vida de todo ser humano, e nas quais o caráter e a personalidade são construídos. Devem, portanto, ser respeitadas, uma vez que as experiências que a criança/adolescente vive nesse período poderão interferir na sua formação e repercutir em toda sua vida(3).

É necessário refletir sobre essa problemática e considerar que, quando trabalham, crianças/adolescentes assumem responsabilidades incompatíveis com o seu desenvolvimento físico e mental, impedindo-as de viver uma fase importante em suas vidas: a infância. A exploração pelo trabalho rouba sua liberdade, viola seus direitos e macula sua inocência, impondo-lhes deveres e obrigações contrárias ao que lhes é garantido pela Constituição Federal, e assegurado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), como: o direito à saúde, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária(4).

A exploração pelo trabalho representa uma violência contra a criança/adolescente que pode ser devastadora para a sua saúde, causando danos físicos, psicológicos, cognitivos e comportamentais e afetando o desenvolvimento psicológico e capacidade intelectual. Os sinais decorrentes dessa violência podem facilmente ser confundidos com transtornos mentais, quando de etiologia comportamental, e com acidentes domésticos, quando resulta em marcas físicas(5). Dessa forma, a enfermagem precisa estar atenta a esta situação, conhecendo e percebendo os sinais indicativos dessa violência, uma vez que se faz necessária a identificação de riscos e a percepção da vulnerabilidade durante o atendimento de crianças e adolescentes em diversos cenários.

Uma sinalização muito frequente na criança/adolescente vitimizada pela violência é a baixa autoestima. A autoestima, que começa a se desenvolver na infância, é um fator decisivo na relação do indivíduo consigo mesmo e com os outros. A aquisição de autoestima pela criança está intrinsecamente relacionada ao autoconceito, definido como a avaliação que a pessoa faz de si mesma e resulta em atitude de aprovação ou repulsa. É através da autoestima que a pessoa se considera capaz, bem-sucedida, significativa e valiosa(6).

Nesse sentido, entende-se que a criança/adolescente que vivenciou a exploração da mão-de-obra infantil tem sua autoestima afetada, cabendo à equipe de saúde ter a sensibilidade para reconhecer quem são essas crianças/adolescentes e realizar intervenções junto à família e à comunidade a fim de evitar o surgimento de danos emocionais e psicológicos.

A infância e a adolescência merecem especial atenção das políticas sociais, enquanto etapas do ciclo de vida que devem ser destinadas primordialmente à educação e à formação biopsicossocial dos indivíduos. Nesse sentido, o estudo tem como objetivo apreender as vivências e sentimentos que a exploração da mão de obra infantil gera em crianças/adolescentes atendidas pelo Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI).

O PETI é um programa do Governo Federal que busca proteger crianças e adolescentes menores de 16 anos contra toda forma de trabalho, visando um resgate da cidadania e inclusão social de seus usuários, mediante um auxílio financeiro pago mensalmente, garantindo que tais crianças e adolescentes sejam assíduos na escola e frequentem atividades socioeducativas(7).

METODOLOGIA

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, exploratória participativa, alicerçada no método criativo sensível (MCS), eleito por utilizar técnicas já consolidadas em pesquisas com essa abordagem, aglutinando sensibilidade com discurso teórico, através de ideias coletivas e a linguagem artística(8).

As dinâmicas de criatividade e sensibilidade são o grande palco de produção de dados para análise. O MSC facilita a expressão do participante do estudo, proporcionando um ambiente de escuta e a possibilidade de manifestações de afeto, solidariedade e compreensão, evitando a dicotomia entre a razão e a emoção, promovendo a sensibilização do participante e, dessa forma, desvelando sua subjetividade no espaço grupal(8).

O uso desse método vem demonstrando eficiência e bons resultados na aplicabilidade de estratégias pedagógicas, favorecendo a troca de conhecimentos de maneira crítica e sensível, através de formas de expressões e compartilhamentos de experiências, com base na construção de um novo olhar sobre a realidade e sobre o entrelaçamento de saberes entre os envolvidos(8).

Os participantes da pesquisa foram um grupo composto por 20 crianças e adolescentes com idade de 07 e 16 anos, assistidos pelo PETI do município de Santarém, Pará, Brasil, durante o período da coleta de dados, qual seja: junho de 2014. As reuniões ocorreram em uma sala de aula da Universidade do Estado do Pará (UEPA), onde eram desenvolvidas as dinâmicas por um período de 40 minutos.

A dinâmica de criatividade e sensibilidade (DCS) desenvolvida nesse estudo foi a árvore do conhecimento, tendo como finalidade a estimulação dos participantes na descrição do que era preciso para crescer e se desenvolver de forma saudável. Tal dinâmica é caracterizada pelo poder de transformação de códigos através do compartilhamento de vivências e experiências no espaço de debate do grupo, permitindo uma participação ativa do sujeito na busca pelo conhecimento, com base na realidade concreta de quem vivência o fenômeno(8).

Utilizou-se como ponto de partida para o desenvolvimento da dinâmica a seguinte questão geradora de debate: “o que uma criança precisa para crescer, desenvolver-se e ser feliz?”. Os dados foram analisados com base no referencial que trata da análise do discurso na corrente Francesa, criada pelo filósofo francês Michel Pêcheux. Esta técnica de análise tem como objetivo analisar o uso da linguagem através da contextualização do discurso produzido pela interação entre os sujeitos através de suas interações sociais e pelos processos já instituídos do estruturalismo e da linguística(9).

Após a transcrição dos discursos produzidos durante a DCS, constituiu-se o corpus da pesquisa e seu delineamento necessário. No primeiro momento conferiu-se materialidade linguística ao texto, por meio de símbolos e recursos ortográficos, objetivando a sua compreensão o mais próximo possível da enunciação das crianças e adolescentes. No segundo momento explicitou-se o objeto de estudo após sucessivas leituras e releitura do material empírico.

Nesta etapa identificou-se os recursos de linguagem adotados por seus enunciadores para dar sentido à sua fala e permitir desvelar os significados de cada discurso. Esta fase requer o uso de ferramentas analíticas do campo da análise de discurso - a metáfora, os processos perifrásticos e a polissemia – essenciais para revelar os efeitos de sentido do dito e do não dito dos participantes do estudo(9).

Este estudo foi submetido e avaliado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UEPA, sendo aprovado em 24 de abril de 2013, sob o Parecer 259.967, respeitando, assim, todos os princípios éticos requeridos pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS).

RESULTADOS

A dinâmica da árvore do conhecimento permitiu desvelar as situações existenciais concretas vivenciadas pelas crianças e adolescentes no mundo do trabalho, enquanto fenômeno vital, que foram enunciadas no processo dialógico dialético, procurando resgatar nos discursos os sinais que indicam os efeitos do trabalho infantil em sua autoestima. Durante a aplicação da DCS, as situações existenciais que emergiram no espaço grupal compreenderam um conjunto de temas geradores de debates, trazendo elementos para que fossem decodificadas pelo grupo.

Nesse momento, os participantes do estudo descreveram o que consideravam importante para que uma criança/adolescente cresça e se desenvolva de forma saudável, surgindo, dessa forma, o primeiro tema gerador de debate, como se segue.

Necessidade estrutural e emocional como suporte indispensável ao desenvolvimento

Cr3AcU: - Bem, ela (a criança) precisa ter um lar, respeito, carinho e muito amor! Precisar ter um lar bem estruturado e precisa de atenção e ter sempre apoio. Porque se ela não tiver todas essas coisas que eu acabei de citar, ela não vai ser um ser humano desenvolvido, um ser humano capaz [...]

Cr2AcU: - Uma criança precisa se alimentar de forma adequada, brincar com outras crianças, passear com sua família e cuidar de sua higiene pessoal. Porque uma criança tendo uma boa alimentação, ela cresce saudável. E brincando com outras crianças ela sabe compartilhar os sentimentos dela, tipo amizade, respeito [...]

A afetividade familiar como um elemento de construção

Nas enunciações dialógicas das crianças/adolescentes, outros elementos se destacam, conferindo às relações afetivas familiares demonstrações de afeto e o sentido de felicidade, sentimento que certamente contribui para o seu bem-estar emocional, como observa-se nos fragmentos dialógicos que se seguem:

Cr1AcNRM: para se sentir feliz tem que ter o carinho do pai, da mãe.

Cr3BbU: Eu fico alegre quando meus pais me dão carinho e atenção eu fico muito alegre...

Cr1AcNRT: porque é importante ter o amor do pai, da mãe e da família.

Cr9JaU: o meu problema é que meus pais nem sempre me dão atenção e, às vezes, eu sinto falta do carinho deles... E isso acontece muito em minha vida. Tem dias que estou precisando desabafar, falar minhas coisas e eles não percebem, não me dão abertura para conversar!

Cr5BBNRM: quando alguém se preocupa comigo eu fico feliz, às vezes eu acho que nem sentem minha falta...

Cr3BbU: quando eu faço o que meu pai e minha mãe me ensinaram, quando dou orgulho para os meus pais...

A estrutura familiar da criança/adolescente explorada pelo trabalho

Os fragmentos dialógicos também revelam o quanto às relações estabelecidas no espaço familiar das crianças/adolescentes afetam sua autoestima.

Cr1BBNRM: eu fico triste quando a mamãe me bate.

Cr4AcNRT: os problemas de sempre (...) brigas lá em casa, eu nunca posso fazer nada que quero, às vezes penso até em me suicidar... essa minha vida tá muito ruim, é só problema.

Cr1AcNRM: tem criança que até mesmo pensa em se suicidar, tem umas que só ficam fazendo se mandado, não bebem água, não comem e caem na rua.

Cr2BBNRM: Eu fico triste quando os meus pais me brigam.

Cr4BbU: [...] eu queria que mudasse o meu padrasto porque ele briga muito com a minha mãe, às vezes ele sai de casa e nem almoça... ( choro)

As experiências vitais relacionadas de crianças e adolescentes explorados pelo trabalho

Todo o conteúdo emocional presente nos discursos desvela as marcas que se imprimem em seu comportamento após vivenciar a experiência de exploração pelo trabalho, que ficam evidentes nos fragmentos dialógicos que se seguem:

Cr3AcNRM: acho que o trabalho prejudica porque a criança fica cansada, fica triste, pois anda o dia todo pra cima e pra baixo, as perninhas cansam. As crianças até choram porque é ruim ser maltratado. Se sente isolada porque não têm amigos.

Cr2JaU: [...] os meus pais saiam para trabalhar e eu ficava em casa cuidando de tudo, limpando, fazendo comida, lavando as roupas sujas. [...] e quando eu me lembro disso me dá uma raiva.

Cr3AcNRM: eu acho que quando a criança trabalha, afeta até o psicológico, porque de tanto ela trabalhar e ser escravo pode prejudicar no futuro.

A educação como forma de romper com o ciclo de opressão

Nos fragmentos dialógicos que se seguem, as crianças/adolescentes apontam a educação como alicerce de vida.

Cr4AcU: a criança precisa estudar para aprender ler, escrever e ser alguém, para ter um futuro bom. Assim ela será mais feliz!

Cr6AcU: para uma criança crescer, ela precisa estudar e ser obediente, porque se essa criança não souber ler, ela nunca vai realizar os seus sonhos; se estudar, ela vai ter uma profissão decente na vida, vai saber administrar as suas coisas. E obedecendo aos pais ela viverá mais na Terra.

Cr1AcU: precisa estudar para ser alguém na vida e não pegar trabalho pesado, que desgaste, como trabalho no sol, operador de máquina que nem meu padrasto, trabalho que você trabalhe muito e receba pouco. Que seja um trabalho que pague bem e dê uma vida descente, sem te explorar.

DISCUSSÃO

A criança possui necessidade de se sentir amada e valorizada, sendo imprescindível que o ambiente familiar lhe garanta segurança e compreensão de suas atitudes e sentimentos. O apoio, o amor e a valorização são fundamentais para o bem-estar das crianças e influenciam diretamente na maneira como estas irão se desenvolver(10).

Ao enfermeiro cabe a vigilância do crescimento e desenvolvimento adequado na infância e adolescência, estando atento a toda e qualquer violação de direitos que comprometam o bem-estar físico, mental e social desta clientela.

Os discursos desvelados apontam para a necessidade de um ambiente saudável, que possua condições favoráveis e que permitam o desenvolvimento de todo o potencial das crianças e adolescentes. Os recursos materiais e institucionais com os quais a criança pode contar (alimentação, moradia, saneamento, serviços de saúde, creches e pré-escolas) são de suma importância nesse processo. Os cuidados gerais e o tempo dedicado à criança, a atenção, o afeto que a mãe, a família e a sociedade como um todo lhe dedicam também são componentes determinantes para o seu fortalecimento emocional(6,8).

A polifonia linguística do discurso, expressa através das múltiplas vozes no diálogo que elas travam no espaço grupal e a exposição de sua situação existencial, confere ao fenômeno do trabalho infantil e suas repercussões na autoestima das crianças/adolescente uma dimensão histórica, cultural e social, na qual os atores percebem sua condição, mas são cientes da existência de um mundo melhor e com outras opções que impliquem menos sofrimento e mais garantia de direitos(11).

O que se passa dentro de cada ser humano representa um universo complexo e multifacetado, é um mosaico, constituído de inúmeras emoções, pensamentos, interpretações e valores(12). Nosso comportamento reflete esses estados subjetivos fundamentais para nossa diferenciação dos outros ao nosso redor, agimos de acordo com o que pensamos e sentimos, portanto, podemos dizer que somos nossos sentimentos e pensamentos.

Em seus discursos, as crianças e adolescentes desvelam todo o conteúdo emocional de suas experiências vitais. Em suas concepções, para ser feliz é necessário sentir o afeto no seio familiar, sentir o carinho e atenção dos pais e estar junto à família, uma vez que ela se constitui como um dos principais pilares da vida psíquica das pessoas(10).

É através da família que se estabelecem as primeiras relações interpessoais e que vai se construindo as primeiras representações sobre as suas competências, capacidades e sentimentos em relação a si mesmo e, por esse motivo, a troca de afeto é de fundamental relevância nesse momento. Independentemente de suas múltiplas configurações, é na família que acontece as experiências afetivas mais importantes da vida do sujeito. Nesta perspectiva, considera-se a autoestima como um dos estados afetivos mais importantes na vida do sujeito, por possibilitar recursos para este atuar em sua vida; ela é um atributo socialmente adquirido(12).

A afetividade é o que resulta da combinação de sentimentos e emoções e reflete o modo como a pessoa combina as experiências emotivas para reagir diante do mundo e das outras pessoas; é como um traço característico de cada um. O nível de afetividade predispõe a pessoa a reagir às experiências vivenciadas de um modo ou de outro, com apatia ou com efervescência, com entusiasmo ou reserva(12).

As falas das crianças/adolescentes deste estudo desvelam que, no contexto familiar, suas experiências vivenciadas são marcadas por muitos sentimentos, dentre eles a insegurança emocional, sentimento que fica evidente quando evocam: “quando alguém se preocupa comigo eu fico feliz, às vezes eu acho que nem sentem minha falta...”. Essa carência afetiva manifestada no discurso das crianças/adolescentes aponta a necessidade de sentir que são queridos e valiosos, principalmente para os seus pais, sinalizando a possibilidade do desenvolvimento de uma personalidade insegura.

O fator psicológico formado pelas crenças, inconscientes ou conscientes, que uma pessoa desenvolveu na infância e nas outras fases de sua vida é preponderante na formação de sua personalidade. Em algum momento de sua existência, durante suas relações sociais, ela precisa aprender que é aceitável ou adequada para relacionar-se afetivamente com as pessoas.

Caso contrário, na vida adulta esse indivíduo pode levar para relacionamentos sociais um medo exacerbado de rejeição(12). Se o sujeito, quando criança, não receber conforto, apoio, amor e outras ferramentas abstratas, porém necessárias, terminará aprendendo lições contrárias sobre o seu valor, impactando em sua formação psíquica. Assim, são os pais com as suas atitudes que os levam a se ver como competentes e incompetentes(13).

As crianças/adolescentes ressaltam, ainda, a necessidade de ter mais espaço para falar sobre suas experiências. Nota-se a preocupação dos participantes da pesquisa em chamarem a atenção e despertarem sentimentos como o carinho e o orgulho dos seus pais. Muitas crianças sofrem quando percebem que seus sentimentos não estão sendo considerados, em especial pelos seus pais(13).

É notável a necessidade de se ter profissionais habilitados e potencialmente comprometidos em fornecer uma melhor atenção a crianças e adolescentes, principalmente àquelas vítimas de violência(14,15). Dessa forma, os enfermeiros precisam desenvolver estratégias criativas que lhes permitam identificar não só as repercussões físicas impressas no corpo da criança/adolescente, mas também as marcas psíquicas e emocionais advindas dessa problemática social, ampliando seu olhar para a família como objeto de atenção e cuidado.

A autoestima é considerada um fenômeno muito complexo, que faz parte dos construtos da personalidade e implica na vida cotidiana. Para o National Advisory Health Counsil, ela é um dos principais marcadores de saúde mental, uma vez que pode estar relacionada a graves fenômenos mentais como a depressão e o suicídio(6,13). De acordo com a World Health Organization, o suicídio tornou-se um problema de saúde pública mundial, pois está, em muitos países, entre as três principais causas de morte entre indivíduos de 15 a 44 anos e é a segunda principal causa de morte entre indivíduos de 10 a 24 anos(12). O suicídio na infância e adolescência é um acontecimento dramático e grave que desestrutura a família como um todo.

A família é a estrutura social mais importante na formação da criança/adolescente. Ela exerce grande influência na formação de seus membros, que se reflete na construção do caráter, das atitudes, das formas de relacionamentos e na vida profissional e sentimental de cada membro. A influência exercida na construção do indivíduo enquanto ser biopsicossocial é potencializada na adolescência, desencadeando comportamentos, desejos e sentimentos dialógicos necessários às interações entre o adolescente, o adolescer e todo o contexto social que o permeia. O diálogo é a base de sustentação da família, pois onde houver um espaço em que convivam várias pessoas, é fundamental que haja uma boa comunicação entre elas(16).

É evidente que a exploração de crianças/adolescentes pelo trabalho é uma prática que surge de um padrão familiar desestruturado e que gera riscos à saúde da criança, tendo a capacidade de afetar seu desenvolvimento físico, psicológico e social, privando-a de viver plenamente e reduzindo suas perspectivas futuras. A infância e a adolescência são fases da vida que devem ser exclusivamente dedicadas à educação, ao lúdico e ao desenvolvimento, neste processo não cabe o trabalho e principalmente a responsabilidade pelo sustento da família, pois tal fato pode acarretar o desenvolvimento de padrões reguladores anormais frente à exposição a que esse público está submetido(17).

O desgaste físico se manifesta em seus corpos na forma de dores, em especial nas pernas, em virtude dos longos percursos que eram obrigadas a fazer, apontando uma consequência da fatigante rotina de trabalho duro e pesado por eles vivenciada. A exploração pelo trabalho assume o sentido de maus tratos no discurso das crianças/adolescentes e, como tal, vem acompanhado de choro, raiva e tristeza, desvelando as marcas da fragilidade emocional que o trabalho imprime em suas vidas.

O efeito metafórico aqui utilizado pelas crianças/adolescentes ao se compararem com escravos torna possível a construção de sentidos dos enunciados baseados na relação de exploração pelo trabalho/sofrimento, dor física e dor emocional. Por meio desse efeito metafórico revela-se no discurso das crianças/adolescentes a dimensão social da problemática em que são vítimas, numa tentativa de definir algo que para elas não tem explicação, compara-se a alguém que no passado viveu a mesma situação que hoje ela vive: “o escravo”; alguém que trabalhava sem descanso, em condições insalubres e até a exaustão. Essa comparação faz desvelar o sentido existencial desse fenômeno vital, que é a marca do opressor como hospedeiro no oprimido(18).

Ao ancorar-se na figura do escravo para explicar como se sente, a criança/adolescente desvela toda a opressão que permeia seu cotidiano. Entender o fenômeno da opressão nos conduz a pensar que a exploração da mão de obra infantil deixa nas crianças/adolescentes a sombra da opressão. O fenômeno da opressão instala no oprimido a vocação do ser menos e do valer menos, que tem base numa relação de exploração na qual os oprimidos dificilmente lutam e não confiam em si mesmos, por terem uma crença mágica na invulnerabilidade do opressor e assim continuam acomodados e adaptados, “imersos” na própria engrenagem da estrutura opressora(14).

Na teia opressiva em que vivem as crianças/adolescentes, outros sentimentos são mobilizados, e em seu contexto de vida assumem uma posição de conformismo diante da dura rotina que vivem. Assim, como se nada pudessem fazer contra aquela situação, aceitam passivamente sua condição de trabalhador e, com isso, vários sentimentos se afloram, como o medo e a tristeza e muitas vezes choram e se sentem solitárias.

A opressão é um problema social, e em cuja conjuntura os menos favorecidos são oprimidos, sendo obrigados a aceitar o que lhes é imposto. Nessa perspectiva, a realidade opressora constitui-se quase como um mecanismo de absorção dos que nela se encontram(17). Somente quando os oprimidos tomam consciência das razões e de seu estado de opressão e da necessidade de luta pela conquista de sua liberdade, eles rompem com essa visão inautêntica de si e do mundo e deixam de se sentir como se fossem uma quase “coisa”. Portanto, rompem com a cadeia da opressão, libertando-se da condição de oprimido e assumindo o lugar de libertado.

A educação se apresenta como um instrumento mediador desse processo. Através dela, as crianças/adolescentes vislumbram a possibilidade de mudança de sua realidade. Neste contexto, ela aparece nos discursos como condição necessária para ser alguém, ter uma profissão e assim poder realizar seus sonhos, adquirindo o sentido de felicidade com a capacidade de promover uma forma segura de ter um “futuro bom” e ter uma “profissão”, condição esta que lhes garante uma “vida decente”. Não ter uma profissão para as crianças/adolescentes assume o sentido de viver explorado pelo trabalho pesado, de desgaste físico, um sofrimento que não tem retorno financeiro. Para eles, somente quem tem estudo pode viver longe da exploração. A prática social cunhada de sofrimento realça nas crianças/adolescentes o desejo de viver coisas positivas(19).

Como se viu nos discursos das crianças/adolescentes, existem aqueles que desejam a mudança, representados pelo oprimido, e todos os que acreditam e percebem a utopia não como algo impossível de realizar, mas como o “inédito viável”(18). Ao visualizar o inédito viável como um sonho, a criança/adolescente começa a perceber a sua libertação como realidade possível de ser alcançada. O estar no mundo significa empenhar-se em ações, reflexões e lutas. Este estudo pretende contribuir para reflexão acerca das políticas de atenção à saúde da criança e do adolescente que não têm sido suficientes para evitar a violência e afastá-los do trabalho, promovendo novos olhares e tendências de se tratar a temática no âmbito da promoção da saúde, no contexto de sua vida cotidiana, permitindo um aprofundamento das questões sociais, culturais, econômicas e políticas que envolvem toda a problemática das diversas facetas da violência e principalmente da exploração da mão de obra infantil.

CONCLUSÕES

A exploração pelo trabalho deve ser entendida como uma das piores formas de violência que pode ser imputada à criança e ao adolescente e que pode acarretar distúrbios e alterações na percepção que esses jovens têm de si mesmo e das demais pessoas. A criança ou adolescente que foi explorado pelo trabalho demonstra alteração na forma como se vê diante do mundo no qual está inserido.

Os resultados sugerem que experiências concretas vivenciadas por essas crianças/adolescentes interferiram sobremaneira na sua saúde física e mental, prejudicando o seu processo de crescimento e desenvolvimento, uma vez que influenciaram no seu autoconceito. As crianças anunciaram os sentimentos e emoções que resultaram da vivência no mundo do trabalho e como esses sentimentos marcaram negativamente suas vidas, afetando de forma contundente sua autoestima. O contexto de vida das crianças/adolescentes vítimas da exploração de mão de obra infantil mostrou uma dura realidade, onde se desvela as percepções dos prejuízos gerados nesse processo.

Este estudo apresenta como limitação o fato de ter-se trabalhado apenas com o público atendido pelo PETI, não mostrando um retrato da percepção de outras crianças e adolescentes vítimas do trabalho e que não são assistidas por nenhum programa social, por serem de difícil acesso e, na maioria das vezes, trabalharem em lugares escondidos e não perceptíveis à população.

O estudo contribui para a enfermagem com a possibilidade de se conhecer as vivências de crianças e adolescentes exploradas pelo trabalho, permitindo uma melhor aproximação para o cuidado e para as ações de promoção em saúde.


REFERÊNCIAS

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Todos os autores participaram das fases dessa publicação em uma ou mais etapas a seguir, de acordo com as recomendações do International Committe of Medical Journal Editors (ICMJE, 2013): (a) participação substancial na concepção ou confecção do manuscrito ou da coleta, análise ou interpretação dos dados; (b) elaboração do trabalho ou realização de revisão crítica do conteúdo intelectual; (c) aprovação da versão submetida. Todos os autores declaram para os devidos fins que são de suas responsabilidades o conteúdo relacionado a todos os aspectos do manuscrito submetido ao OBJN. Garantem que as questões relacionadas com a exatidão ou integridade de qualquer parte do artigo foram devidamente investigadas e resolvidas. Eximindo, portanto o OBJN de qualquer participação solidária em eventuais imbróglios sobre a matéria em apreço. Todos os autores declaram que não possuem conflito de interesses, seja de ordem financeira ou de relacionamento, que influencie a redação e/ou interpretação dos achados. Essa declaração foi assinada digitalmente por todos os autores conforme recomendação do ICMJE, cujo modelo está disponível em http://www.objnursing.uff.br/normas/DUDE_final_13-06-2013.pdf

Recebido: 31/10/2017 Revisado: 17/12/2018 Aprovado: 09/01/2019