ARTIGOS ORIGINAIS

A resiliência de mulheres que necessitaram de transferência hospitalar durante parto domiciliar planejado: estudo exploratório


Carolina de Lima1, Tatiane Herreira Trigueiro2

1Universidade Positivo
2Universidade Federal do Paraná

RESUMO

Objetivo: compreender o processo de resiliência de mulheres que tiveram o parto domiciliar planejado transferido para o hospital. Método: trata-se de um estudo do tipo exploratório de abordagem qualitativa, realizado com dez mulheres que planejaram o parto domiciliar, mas que por algum motivo tiveram que ser transferidas para o hospital. A coleta de dados foi realizada mediante entrevistas semiestruturadas, analisadas pela análise de conteúdo do tipo temática. Resultados: constatou-se que todas as entrevistadas vivenciaram o trauma devido à transferência hospitalar, mas apenas uma chegou até a etapa final do processo de resiliência, a adaptação. Conclusão: a participação da enfermeira obstetra nesse processo é fundamental, visto que poderá auxiliar essa mulher a encontrar fatores que possam desenvolver o processo de resiliência, mediante diálogo, compreensão, abertura e acolhimento. Isso possibilitará compreender o outro na sua totalidade, e captar suas dores e inseguranças por meio de uma relação humanizada.

Descritores: Enfermagem Obstétrica; Parto Domiciliar; Resiliência Psicológica; Saúde da Mulher.


INTRODUÇÃO

O período gestacional na vida de uma mulher é um momento de inúmeras mudanças, fisiológicas, psicológicas e sociais, não obstante, trata-se de um momento de escolhas, sendo uma delas a via de parto desejável, podendo ser via cesariana, como um evento cirúrgico, ou via vaginal, também denominado de parto normal.

Além da via de parto, outro elemento de fundamental importância no processo diz respeito ao ambiente de sua realização. O local mais adequado para uma mulher parir está diretamente ligado a uma assistência efetiva e segura e ao respeito aos seus direitos, privacidade, conforto e segurança, garantindo o cuidado integral à mulher, seja em uma unidade hospitalar ou no seu próprio domicílio(1).

Diante do poder de escolha, aliado ao suporte e avaliações de saúde, uma modalidade de parto que vem se enraizando no Brasil é o parto domiciliar planejado. Trata-se de uma forma de parto indicado para mulheres de risco habitual, que desenvolve-se de forma natural, sem intervenções desnecessárias e em um ambiente confortável e aconchegante. Porém, o parto domiciliar, quando abordado nos documentos e publicações do Ministério da Saúde no Brasil, é ainda tratado como evento associado à falta de recursos econômicos e à dificuldade de acesso aos serviços de saúde(2).

Conforme os últimos dados disponibilizados pelo Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS), no Brasil, em 2016, dos 2.857.800 nascidos vivos, apenas 19.445 (0,7%) nasceram em ambiente domiciliar. Na região Sul esta proporção foi ainda menor: dos 391.790 nascimentos, apenas 993 (0,2%) ocorreram em domicílio(3). No entanto, não se tem os dados de quantos foram realizados por equipe de parto domiciliar planejado.

Atualmente, o Ministério da Saúde informa às multíparas de risco habitual que, tendo em vista o contexto brasileiro, o parto domiciliar não está disponível no sistema de saúde, por isso não há como recomendar. No entanto, não se deve desencorajar o planejamento do parto no domicílio para os casos em que se tem acesso a uma maternidade, em tempo hábil e oportuno, se houver necessidade de transferência(4).

A segurança do parto domiciliar planejado é demonstrada por estudos que indicam que não há comprovação de que dar à luz em casa aumenta os riscos para a mulher(5). Apesar disso, e mesmo quando há o desejo e o planejamento deste tipo de parto, ele pode não ocorrer em razão de intercorrências, como hemorragias, crises hipertensivas, descolamento prematuro de placenta, prolapso de cordão, ruptura uterina e frequência cardíaca fetal não tranquilizadora(6). Essas são situações que necessitam de apoio hospitalar e podem ocorrer durante o trabalho de parto domiciliar, necessitando de transferência para o hospital. Assim, a mulher que o planejou pode se deparar com a frustração, com a desconstrução de um desejo, podendo acarretar prejuízos psicológicos.

As adversidades da vida podem marcar psicologicamente o indivíduo, por um longo período, em função dos traumas que provocam, os quais modificam o ser e estar no mundo, porquanto afetam a sua multidimensionalidade(7). Ante a situação adversa, duas possibilidades se apresentam ao o indivíduo: deixar-se abater pelo sofrimento ou buscar fatores que auxiliem na sua reestruturação psicológica, colocando-o em um processo de resiliência.

A resiliência é compreendida como um padrão de funcionamento adaptativo frente aos riscos atuais e acumulados ao longo da vida. Engloba vários recursos psicológicos importantes para a superação dos contratempos, obstáculos e dificuldades, como as competências pessoais, as autocrenças e o controle interpessoal em interação com os apoios sociais(8). Um dos precursores compreende que a resiliência não está na eliminação do evento estressor, mas sim na forma como o indivíduo percebe essa situação e consegue utilizar a autoconfiança e a competência social para dominar o estresse. Portanto, está em “como” as pessoas lidam com as mudanças na vida e quais atitudes tomam diante dessas situações(9).

Nesse entendimento, a resiliência pode ser vista como um processo que perpassa as etapas de enfrentamento, adaptação e superação. Tal processo de desenvolve como consequência de uma situação negativa de vida, frente a qual o indivíduo ressignifica a experiência e encontra meios, a partir da interação dinâmica existente entre as características individuais e a complexidade do contexto social, para enfrentar, aceitar o ocorrido e buscar ajustar-se à situação de modo a encontrar sentido e elementos positivos da situação vivida e, então, superar o vivido. Trata-se, portanto, de um processo psicológico dinâmico(10).

Considerando que a transferência hospitalar, após o anseio e planejamento de um parto domiciliar, pode se apresentar como uma adversidade na vida da mulher, que pode se deparar com a frustração, emergiu a seguinte inquietação: as mulheres que optaram por um parto domiciliar planejado, mas que tiveram que ser transferidas para o hospital durante o trabalho de parto viveram uma adversidade? A partir desta adversidade desenvolveram o processo de resiliência?

Para responder a esse questionamento faz-se necessário ouvir e compreender esse processo por mulheres que vivenciaram tal situação, saber se houveram prejuízos em sua vida social, emocional e na própria maternidade e se, de alguma forma, desenvolveram o processo de resiliência. Visto que há escassez de estudo na literatura brasileira a respeito da temática proposta e que o enfermeiro que atua em obstetrícia, seja no ambiente hospitalar ou domiciliar, deve estar preparado para o acolhimento desta mulher diante da adversidade e ajudá-la em seus diversos aspectos, almejando a preservação ou restauração de sua saúde, objetivou-se com este artigo: compreender o processo de resiliência de mulheres que tiveram o parto domiciliar planejado transferido para o hospital.

MÉTODO

Trata-se de um estudo do tipo exploratório, de abordagem qualitativa, realizado com mulheres que planejaram o parto domiciliar, mas que por algum motivo tiveram que ser transferidas para o hospital. As mulheres entrevistadas eram residentes na região de Curitiba, Paraná, visto que nesta cidade existem grupos compostos por enfermeiros obstetras que realizam o parto domiciliar planejado.

Como critério de inclusão optou-se por todas as mulheres que deram início ao trabalho de parto no domicilio em algum momento de sua vida, acompanhado por equipe que realiza parto domiciliar planejado, mas que, a pedido da mulher ou da avaliação do profissional de saúde, necessitou ser transferida para o hospital. Essa experiência foi considerada o fenômeno de interesse deste estudo, visto que a ocorrência da via de parto no contexto hospitalar, seja cesariana ou vaginal, difere das expectativas do parto no domicilio. Como critério de exclusão delimitou-se: mulheres que não haviam sido acompanhadas por equipes de parto domiciliar planejado do município de Curitiba.

As entrevistadas foram recrutadas por meio do método bola de neve, também conhecido como método de cadeia de referências. Esse modelo funciona de modo que os primeiros entrevistados indicarão outros, e assim sucessivamente, dando continuidade ao estudo(11). Neste estudo, a primeira entrevistada foi identificada no grupo de proximidade das pesquisadoras que, por sua vez, indicou outras mulheres. Essas, após as entrevistas, entraram em contato com outras mulheres que conheciam e que haviam passado por igual situação, explicando sobre a pesquisa. Quando constatado interesse em integrar a pesquisa, o número de telefone delas era repassado aos pesquisadores, que entravam em contato para explicações e para agendamento da entrevista. Foram contatadas dez mulheres, das quais nenhuma se recusou a participar do estudo.

A coleta de dados ocorreu entre julho e setembro de 2016, mediante entrevista semiestruturada no local, hora e data acordadas com cada mulher. Após explicação quanto aos objetivos da pesquisa e aceite de participação mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), a entrevista era iniciada a partir da seguinte solicitação: como foi para você ter planejado um parto domiciliar e necessitar posteriormente de transferência para o hospital?

A coleta de dados foi interrompida quando as autoras tiveram a percepção de repetição nas falas. As entrevistas foram gravadas, o que garantiu a liberdade das participantes para se expressar e possibilitou o estabelecimento de vínculo com a pesquisadora. Logo após, as entrevistas foram transcritas na íntegra e submetidas à análise de conteúdo do tipo temática, conforme proposta de Bardin. Essa técnica organiza-se em torno de três polos cronológicos: pré análise, que consiste na organização do material, sistematizando ideias; exploração do material, definição de categorias e sistemas de codificação, que possibilitou a riqueza ou não das interpretações e inferências; e tratamento dos resultados, inferência e interpretação, fase na qual ocorreu a condensação e destacamento de informações para análise(12).

Desse processo analítico emergiram duas categorias, a saber: A trajetória pela escolha do parto domiciliar planejado e Da adversidade ao processo de resiliência. A discussão dos dados foi desenvolvida a partir de artigos científicos e livros relacionados com a temática. A pesquisa obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Positivo na data de 01 de julho de 2016, sob parecer 1.617.799 (CAAE: 55315316.7.0000.0093).

RESULTADOS

Foram entrevistadas dez mulheres com idades entre 21 e 37 anos, sendo três primíparas e sete multíparas. Entre essas últimas, nenhuma havia experienciado o parto domiciliar planejado anteriormente ao fato em análise, de modo que todos os seus filhos nasceram em ambiente hospitalar. Cumpre esclarecer que as entrevistas ocorreram de 40 dias a três anos após a transferência hospitalar.

A escolha do parto domiciliar planejado

As mulheres entrevistadas relataram os motivos que as levaram a optar pelo parto domiciliar planejado, entre os quais o protagonismo dela no processo de parturição e a humanização do atendimento, conforme se observa nos discursos apresentados na sequência:

Me prometi que se eu viesse a ter um segundo filho, eu iria me preparar melhor; e eu queria muito um parto normal por medo de ter outro parto roubado; então, eu decidi tentar em casa. (M1)

[...] melhor coisa é meu filho nascer no ambiente em que ele vai viver, que no conforto da nossa casa, com as pessoas que se importam com a gente. (M2)

[...] e a opção de eu poder ficar na minha casa, com meu filho mais velho participando, não ter que me afastar dele durante o trabalho de parto e nem logo depois que o bebê nascesse, ele poder já conhecer o irmão dele, poder cortar o cordão umbilical, participar do momento do parto também, no dia seguinte eu poder acordar e poder tomar café da manhã com a minha família, e não naquele ambiente hospitalar. Esses foram os fatores que mais pesaram para a minha decisão pelo parto domiciliar. (M5)

Depois de eu ter tido uma gestação nas trompas, eu sofri muito, pois queria muito ser mãe, daí escolhi o parto domiciliar por desejar passar por todo esse processo sem que ninguém interferisse nele, queria sentir tudo o que o parto poderia me proporcionar. (M8)

[...] eu preciso ser realmente a protagonista do meu parto, então optei pelo parto domiciliar, já que a mulher tem mais voz. (M10)

Da adversidade ao processo de resiliência

Todas as entrevistadas apresentaram traços referentes ao trauma, à adversidade vivida devido à transferência hospitalar e ao atendimento hospitalar, conforme as falas abaixo:

[...] pensei “poxa, realmente não vai ser dentro de casa” eu chorei muito, chorei muito, porque uma coisa é a gente ouvir todo mundo de fora falando para você que você não tem dilatação, que você não sei o quê, e eu passei por todo esse processo de desconstruir essa imagem de que eu não tinha essa força para aquela imagem de que eu podia fazer tudo isso. (M2)

[...] tava construindo isso dentro de mim. Daí quando disseram (da necessidade da transferência) caiu a ficha de que não ia ser desse jeito, daí eu falei assim: – Então significa que realmente tem alguma coisa errada comigo [...] (M8)

[...] e depois vem a frustração, bem grande, porque foi por muito pouco que ele não nasceu em casa, e a frustração na verdade eu carrego até hoje, já faz um ano. (M9)

[...] o pior não é você ser transferida, é o medo do que vai acontecer no hospital, da violência que você provavelmente vai sofrer [...] mas o que mais dói é você ser mal atendida dentro do hospital; essa foi a minha maior frustração [...] a frustração dá raiva na hora, mistura tudo. Na inocência, você fica agradecida pelo teu filho ter nascido, mas depois você pensa que não era para ter sido assim [...] dá raiva deles (no hospital), dá raiva da equipe, dá raiva dessas profissionais que não se atualizam [...] a frustração eu vou carregar por toda a vida. (M5)

Foi muito difícil, muito difícil [...] Eu pensava de uma forma muito positiva de que eu ria parir, eu não arrumei bolsa de maternidade, nada, porque assim – Eu vou parir em casa – tinha plena certeza [...], a gente acha que nunca vai acontecer com a gente. Foi sim um processo difícil, poderia não ter sido tão difícil se eu não tivesse sofrido tanta violência no hospital [...] Mas como foi muito terrível a cirurgia, e o que me falaram lá, foi chocante, sabe? Então, o processo de cura demora muito mais, não foi fácil, não é ainda muito fácil. (M4)

Após a necessidade de transferência hospitalar, as mulheres relataram diversos fatores de proteção que levaram ao enfrentamento e ao desencadeamento do processo de resiliência, como a aceitação, o apoio da família e a roda de mulheres:

[...] aí eu fui procurar ajuda, e nesse processo de procurar ajuda eu passei por uma roda de mulheres [...] que é um processo intensivo de tratamento com relação a questões femininas. (M7)

Uma das coisas que ajudou bastante foi a minha família inteira: meu pai, minha mãe, minha vó, minha irmã, que estavam aqui comigo [...] ter o apoio do meu esposo ali do meu lado, chorou junto comigo, inclusive, choramos juntos e tudo mais. A minha família estar junto foi a melhor coisa, esse amparo de você ter as pessoas que você ama em volta de você é o que te ajuda, te ajuda a fazer essas coisas. (M2)

[...]Eu posso te dizer que nesse segundo parto existiu a frustração de ter que ir para o hospital, mas foi um processo muito consciente, né, porque foi estudado, eu fiz de tudo, participei de um monte de rodas de gestantes, então foi muito mais fácil a superação... aí foi uma decisão minha, ainda que tenha vindo a frustração de que pela segunda vez eu não tenha conseguido, eu sabia que havia reais motivos pra isso, eu não tive a sensação de parto roubado novamente, eu só passei pela frustração de não conseguir passar pelo meu período expulsivo, porque o trabalho de parto eu tinha tido todo em casa, e bem assessorada, com pessoas que eu havia escolhido. (M1)

Eu criei um grupo em uma rede social chamado Parto humanizado em Curitiba, e esse grupo tomou uma proporção gigantesca, que ajuda outras mulheres a buscarem profissionais; a gente discute sobre profissionais, a gente discute sobre equipe, doulas. Esse grupo ficou muito conhecido; nós somos 70 mulheres no grupo, então, assim, a gente ajuda muito essas mulheres. (M4)

Quanto à segunda etapa do processo de resiliência, as entrevistadas demonstraram que estão em processo de superação, conforme trechos dos discursos:

No momento em que eu me perdoei, entendi que não foi culpa minha, eu comecei a me sentir completamente mãe, pois antes eu ficava me culpando, ficava olhando para o meu filho e me sentindo menos mãe por não ter parido ele. (M9)

Quando você começa a ouvir o que as pessoas que te amam falam, de verdade, não quando eu fingia ouvir, as coisas vão se alinhando, vão voltando a fazer sentindo [...] (M7)

[...] foi mais fácil de superar, né. O primeiro grande motivo foi a melhor preparação, e o segundo porque eu já estava no meio das rodas de mulheres e tudo mais, e continuei frequentando as rodas, e foi isso que me fez superar mais rapidamente [...] hoje eu consigo falar sobre isso e me emociono ainda. Um parto é uma experiência linda para qualquer mulher, e eu me emociono muito, mas não devido ao fato de eu não ter conseguido, mas de ter tido todo o apoio que eu tive, dentro das rodas de mulheres e tudo mais... de eu ter planejado o que eu queria, de ter conseguido passar por ... Porque a gente sofre preconceito [...] (M1)

Quanto à adaptação, foi evidenciado que apenas uma entrevistada apresentou traços na seguinte fala:

Eu superei, mas eu sempre penso, fico lembrando, sempre lembro, porque é um momento super mágico. Sempre que eu vejo o vídeo, eu fico me olhando sentindo dor ali, eu vi que realmente não tava, sabe? [...] Eu ia parir em casa de qualquer jeito, era o que eu falava, mas, na verdade, eu não precisava sentir tanta dor como eu estava sentido, entendeu? Tem uma frase que eu sempre digo: “antes de parir teu bebê, você tem que parir seus medos”, porque ninguém vai conseguir parir um bebê para lavar a alma. Então, eu não quis fazer isso, e eu tive a consequência disso, eu não consegui parir ela casa sem ajuda de um medicamento [...] Mas deu, pra mim deu certo, entendeu? Só não foi em casa. (M3)

DISCUSSÃO

Atualmente no Brasil, o parto domiciliar planejado de risco habitual apresenta-se como alternativa para as mulheres que o desejam e podem custeá-lo. Pesquisa nacional que avaliou 667 mulheres que planejaram o parto no domicílio evidenciou que, dessas, 104 necessitaram de transferência hospitalar. Do conjunto das 667 mulheres, a maioria era primípara, com alta adesão ao pré-natal, alta escolaridade e acesso à informação, fatores que podem justificar a opção por essa modalidade de parto, uma vez que questionam o modelo hegemônico de atendimento hospitalar atual e buscam no domicílio autonomia e participação ativa no seu processo de parturição(13).

As mulheres que optam pelo parto domiciliar planejado tem a expectativa de ser a protagonista do seu trabalho de parto, de estar em um ambiente acolhedor e de exercício da autoconfiança. Dada a capacidade de parir aliada a uma assistência profissional humanizada, anseiam por uma aproximação e autoafirmação do seu corpo. O domicílio favorece a atenção voltada para a mulher e sua família, facilitando o apoio emocional, estimulando a autonomia da parturiente e reduzindo as intervenções desnecessárias.

Mulheres que optam pelo parto domiciliar planejado experienciam maior conexão com o próprio corpo e maior satisfação, no sentido de confiar na fisiologia corporal, de sentir maior conexão com sua própria natureza e pela possibilidade de controle sobre o processo de parto e seu ambiente. Sentimentos positivos de vida após o nascimento no domicílio são vividos pela possibilidade da presença dos membros familiares. Contudo, apresentam sentimentos negativos em relação ao julgamento social, de outros membros da família, assim como dos profissionais de saúde que não atuam no domicílio(14).

As mulheres deste estudo tiveram um trabalho de parto marcado pela adversidade da transferência hospitalar, uma vez que a escolha pelo parto domiciliar foi um momento esperado, desejado e planejado pelas mulheres, a partir de estudos, pesquisas e/ou em razão de experiência de parto anterior negativo. A necessidade de transferência, mesmo que informada no momento da contratação da equipe especializada, foi uma surpresa que gerou ansiedade, e a forma de tratamento negativa que receberam no hospital, a perda da autonomia e do controle do próprio corpo foram elementos que geraram a frustração e o sofrimento psicológico.

Diante de situações incontroláveis durante o parto, a mulher pode se sentir responsável por determinado desfecho diferente do planejado e esperado por ela, dessa forma, a ansiedade e a angústia podem emergir e, assim, instala-se a autoculpa, sendo este um caminho para o sofrimento. Lidar com a própria culpabilização pelo ocorrido pode ser visto como uma estratégia de enfrentamento(15).

As adversidades não são vividas de forma passiva e inabalável e quando o indivíduo encontra fatores positivos que o direcionam para um processo dinâmico de enfrentamento e superação das adversidades, deflagra-se o processo de resiliência. Trata-se, portanto, de um caminho de transformação a ser percorrido, de metamorfose pessoal e social(16). Nesse sentido, o enfrentamento da adversidade vivida pelas entrevistadas foi possível mediante o encontro de fatores internos e externos, como a aceitação e a rede de apoio social e afetiva, as quais provocaram mobilização interna que as impulsionaram para o processo de resiliência.

O apoio e a presença do companheiro e familiares e a existência de redes sociais de mulheres que compartilham experiências semelhantes foram fatores positivos, dando início ao processo de resiliência. A comunicação como processo terapêutico foi uma alavanca, a semelhança de situações vividas e a identificação do feminino trouxe conforto e diminuiu o sentimento de isolamento, frustração e fracasso, resultando na instalação do autoperdão. Depreende-se que as relações afetivas seguras e positivas fortaleceram seus recursos pessoais de autoeficácia e as direcionaram para a resiliência(10).

Pesquisas na área da enfermagem que envolvem o processo de resiliência e a saúde de mulheres vítimas de violência sexual demonstraram que os fatores protetivos, sejam de mobilização interna, como a força do amor e da responsabilidade materna e a fé, ou de mobilização externa, como o apoio familiar e social, mediante espaço de acolhimento e possibilidade de relato sem julgamento, são impulsionadores de resiliência(17).

O impulso em direção a ações terapêuticas de cuidados em grupos, rodas de discussão, programas de acompanhamento para as populações identificadas em situação de risco e programas educativos tem como objetivo potencializar as pessoas a encontrarem nelas próprias os recursos necessários ao enfrentamento das situações difíceis da vida(18). Nessa perspectiva, o enfermeiro, como profissional que cuida, pode ser um elemento positivo impulsionador durante esse processo; para tanto, deve despir-se de julgamentos e preconceitos para compreender a totalidade da mulher que está diante de si, com seus medos, frustrações e vulnerabilidade.

Diferentemente de outros países, o parto domiciliar planejado é um modelo ainda pouco conhecido no Brasil, o que contribui para a disseminação e construção de informações não verdadeiras(19), fazendo com que a sociedade marginalize os que optam por este tipo de parto e promovendo embates entre os profissionais de saúde. O cuidado promovido pelo enfermeiro, no ambiente hospitalar, que recebe a parturiente que tentou um parto domiciliar planejado deve ser um fator que as impulsiona ao enfrentamento, por meio da real aproximação, diálogo e escuta ativa e não como elemento negativo, de repreensão. É preciso intencionalidade de querer ajudar, no sentido de fazer com que ela encontre no entorno fatores protetores, sendo ele próprio um desses fatores. Nesse movimento de encontro com o outro, o enfermeiro poderá promover saúde e consequentemente melhorar a qualidade de vida após a adversidade vivida(7), neste caso, a transferência do domicílio para o hospital.

Assim, promover a resiliência é auxiliar o outro a ir ao encontro do seu potencial para a adaptação e transformação do vivido em capacidade de superação das adversidades. Importante ressaltar que a discussão sobre este tema ainda é recente no âmbito das ciências da saúde e da enfermagem(18).

O enfermeiro, tanto o que atua na equipe de parto domiciliar planejado como o que recebe no hospital essa mulher após transferência, necessita de olhar sensível para compreender que a transferência, por si só, pode ser um momento que desencadeia um conflito interno na parturiente, de adversidade psicológica. Desse modo, a repreensão vai contra os princípios éticos do profissional. O acolhimento, a garantia de assistência qualificada e o bem-estar fetal e materno, a empatia e a humanização do cuidado devem ser prioritários no atendimento.

Ações como a presença constante, atenção, diálogo, escuta e até mesmo pequenos atos, como o contato físico, são fatores positivos, já que eles possibilitam o estabelecimento de uma relação de confiança e de intercâmbio entre o profissional e a parturiente, ou seja, um relacionamento com apoio emocional. Compreensão, ternura, sensibilidade e respeito pelos sentimentos são elementos fundamentais para a configuração de um cuidado de enfermagem humanizado(20).

Após enfrentar a adversidade, um novo passo para o alcance da resiliência deve ter início, a superação(10). Essa fase configura-se no momento em que o sujeito ressignifica o vivido e aceita a ajuda do entorno como forma de sustentação, como um ato de sobrepujamento do negativo, aspirando aspectos positivos no vivido rumo à adaptação. Nas entrevistadas deste estudo, a superação se manifesta pela não culpabilização pelo desfecho hospitalar, pelo exercício da maternidade sem frustração e pela manutenção dos fatores de proteção do entorno ante o enfrentamento da adversidade, como continuar a frequentar as rodas de mulheres, a manutenção dos vínculos afetivos e movimentos internos de ressignificação do vivido, os quais possibilitam a superação, o olhar para si e o sobrepor da aceitação em detrimento da dor e da culpa.

O processo de resiliência pode ser comparado a percorrer uma estrada; significa estar em movimento de transformação e entrar e continuar a percorrer a estrada é condição fundamental e propulsora da resiliência(16). No encontro da adaptação, a pessoa pode se sentir reconstruída, transformada e adaptada a sua nova realidade. É um movimento ativo de transformação pessoal para se chegar a almejada superação da adversidade. É quando se “olha para trás” e se compreende que perpassar pela estrada do processo de resiliência levou à liberdade, ao afastamento dos sentimentos negativos de vida, a um olhar diferenciado e positivo sobre a adversidade vivida(10). Nesse sentido, alcançar a resiliência envolve a adaptação exitosa no processo de viver humano, sendo definida como a capacidade de a pessoa sair vencedora, com as forças renovadas, de uma situação que poderia ter sido traumática e negativa para a sua existência(18).

CONCLUSÃO

O estudo possibilitou identificar junto às entrevistadas que o apoio da família e do companheiro, a existência de redes sociais e de rodas de mulheres que oferecem abertura para o diálogo, de modo a não se perceberem culpadas ou fracassadas pela transferência hospitalar, são fatores que desencadearam o processo de resiliência. Durante a fase de superação puderam ressignificar o vivido e compreender a real necessidade da transferência, levando à aceitação e ao reconhecimento do evento. A etapa de adaptação, no entanto, só foi percebida em uma entrevistada, que se coloca na posição de olhar para trás e perceber a experiência como uma forma de transformação pessoal, por não se deixar abater pelo sofrimento e conseguir relatar o ocorrido sem sofrimento ou dano psicológico.

Vale ressaltar que o enfermeiro, seja ele obstetra ou não e independentemente de atuar no domicílio ou no hospital, como parte integrante da equipe de saúde deverá refletir sua postura com vistas a abolir o julgamento e preconizar o cuidado de forma humanizada, mediante escuta ativa e o fazer qualificado, de modo que a mulher não se sinta sozinha e não tenha medo da transferência ou da forma como será recebida pela equipe hospitalar. Que esses profissionais possam compreender o dano psicológico como real e de agravo à saúde e, dessa maneira, sejam impulsionadores do processo de resiliência, sendo este um instrumento de cuidado. Sugere-se que estudos como este sejam replicados em outros locais em que existam equipes de parto domiciliar planejado, visto que a quantidade de profissionais que realizam este tipo de assistência e de gestantes que procuram essa modalidade de parto ainda é pequena no Brasil. Fato que justifica, inclusive, a pequena amostra de mulheres entrevistadas, sendo esta uma limitação deste estudo.


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Todos os autores participaram das fases dessa publicação em uma ou mais etapas a seguir, de acordo com as recomendações do International Committe of Medical Journal Editors (ICMJE, 2013): (a) participação substancial na concepção ou confecção do manuscrito ou da coleta, análise ou interpretação dos dados; (b) elaboração do trabalho ou realização de revisão crítica do conteúdo intelectual; (c) aprovação da versão submetida. Todos os autores declaram para os devidos fins que são de suas responsabilidades o conteúdo relacionado a todos os aspectos do manuscrito submetido ao OBJN. Garantem que as questões relacionadas com a exatidão ou integridade de qualquer parte do artigo foram devidamente investigadas e resolvidas. Eximindo, portanto o OBJN de qualquer participação solidária em eventuais imbróglios sobre a matéria em apreço. Todos os autores declaram que não possuem conflito de interesses, seja de ordem financeira ou de relacionamento, que influencie a redação e/ou interpretação dos achados. Essa declaração foi assinada digitalmente por todos os autores conforme recomendação do ICMJE, cujo modelo está disponível em http://www.objnursing.uff.br/normas/DUDE_final_13-06-2013.pdf

Recebido: 31/08/2017 Revisado: 20/12/2018 Aprovado: 09/01/2019