EDITORIAL

Nenhuma liberdade é plena se não for obtida pelas próprias mãos


Dalmo Machado1, Elizabeth Teixeira2, Adriana Lemos3

1Universidade Federal Fluminense
2Universidade do Estado do Rio de Janeiro
3Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

RESUMO

Tramita no Congresso Nacional Brasileiro o Projeto de Lei nº 4930/2016, com vistas a alterar a Lei nº 7.498, de 25 de junho de 1986, que regulamenta o exercício da enfermagem, para nela incluir a obrigatoriedade da realização de exame de suficiência para obtenção de registro profissional. A Associação Brasileira de Enfermagem, a Executiva Nacional dos Estudantes e a Federação Nacional dos Enfermeiros - entidades representativas da enfermagem brasileira, tornaram público posicionamento contrário ao referido exame. É necessário reforçar o rigor regulatório sobre a formação em enfermagem no Brasil, que atenda às especificidades da área, ampliando os mecanismos de avaliação dos cursos e instituições de educação superior e ampliando o movimento pela qualidade da educação em enfermagem.

Descritores: Legislação de Enfermagem; Bacharelado em Enfermagem; Avaliação Educacional.


Em meados do Século XVI, mais especificamente em 1568, assume, aos 14 anos de idade, D. Sebasião, rei de Portugal e Algarves, sob a alcunha de “O adormecido” e com grandes ambições militares. À época, Portugal estava bem estabelecido e usufruia das prerrogativas colonialistas no Brasil, África e Oriente.

Por razões alegadamente de caráter mercantil no norte da África, uma vez que os turcos dominavam toda a região, à exceção de Marrocos, foi solicitado um pedido de ajuda ao jovem e intrépido rei de Portugal. Uma lide ocorria entre um sobrinho, príncipe deposto, e um tio golpista, Mulei Mohamed e Mulei Moluco, respectivamente. O jovem europeu, impetuoso e beligerante, não se conteve em apoiar financeiramente, em termos de logística, armamentos ou víveres o novo amigo Mulei Mohamed, partindo, ele próprio, à chamada Jornada da África.

Utilizando-se dessa história real como introdução, pano de fundo e analogia com os desafios da profissão de enfermagem, pergunta-se: Por que sempre somos chamados a intervir ou opinar naquilo que não nos é atinente? Ou pior: Por que, por diversas vezes, aqueles que nada têm a ver com a profissão de enfermagem se sentem ungidos como propagadores de uma nova velha ordem?

Em momentos de crise, a qual quase sempre possui uma etiologia econômica que se expressa sob as mais diferentes formas: ética, violência, convulsão social etc., emergem, inevitavelmente, correntes legislativas oportunistas. Exemplos são inúmeros: diante de uma epidemia, propõe-se leis urgentes para alteração de um modelo de saúde; diante de um crime bárbaro, cometido por um adolescente, recrudescem as propostas de redução da maioridade penal, revisão do estatuto de desarmamento e assim por diante. Esse meio caótico favorece as distorções de fusão Estado-Religião, cívico-militar que contribuem, em última análise, para o crescimento da intolerância entre os pares, divisão econômica, luta de classes e maniqueísmos de direita e esquerda.

Entretanto, tal como na vida privada de cada um de nós, não costuma ser muito producente tomar grandes decisões na fase aguda da crise ou durante um evento que, aparentemente, está fora de controle. Todavia, não se de confundir grandes decisões com medidas de contingência, dado que a segunda é essencial. Nesse sentido, o ministro Marco Aurelio de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), expressou recentemente seu receio de normatizações “em época de crise, porque vingam as paixões exacerbadas” (1). A declaração deu-se por conta do recebimento pelo STF de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que versa sobre a redução da maioridade penal.

Seria natural que as normatizações da profissão de enfermagem se materializassem a partir da representação legítima de seus membros no poder legislativo e executivo. Contudo, não obstante o fato da enfermagem constituir-se no segmento profissional mais denso no sistema de saúde, com mais de 2 milhões de profissionais ativos, leia-se, portadores de cédula profissional e recolhimento de anuidade ao conselho de classe(2), dos 513 deputados federais no atual quadro legislativo do Brasil, há somente uma enfermeira e duas auxiliares de enfermagem. Cabe lembrar que o auxiliar de enfermagem deixou de ser formado por força da Resolução COFEN-276/2003(3), posteriormente revogada pela 314/2007(4). Imbróglios à parte, em termos práticos, não há formação de auxiliar de enfermagem desde 2003, ou seja, há 15 anos. Assim, ainda que se considere um universo de três profissionais de enfermagem, esses correspondem a menos de 0,6% da Câmara de Deputados Federais do Brasil(5).

Um erro recorrente do homem e, por conseguinte, potencialmente de seus agrupamentos, é adotar experiências de outros grupos que nada se assemelham ao cotidiano dos seus próprios processos como paradigma a ser seguido. Em outras palavras, aquilo que deu certo para um grupo nem sempre dará certo para outro. Imagine, contudo, o que dizer se nem se sabe ao certo se deu certo para o primeiro grupo.

A profissão de advogado, seja por sua idade, seja por sua representação social, sempre desgarrou-se, historicamente, de outras profissões, ainda que contemporâneas a ela. Por exemplo, o advogado recebe o pronome de tratamento de Doutor, conferido por carta régia concedida por D. Pedro I em 1827. Portanto, não tem a ver com o estabelecido pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação(6), aferido e concedido pelas Universidades aos acadêmicos.

O Exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) foi criado pela Lei 4215/63, contudo, somente foi regulamentado em 1994 pela Lei 8906, de 4 de julho daquele ano, que instituiu o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, atribuindo à OAB a competência para regulamentar os dispositivos do referido Exame de Ordem(7). A consequência mais imediata dessa normalização foi o surgimento de cursos preparatórios para o exame da OAB, de propriedade direta ou indireta dos senhores juízes, desembargadores e procuradores, de maneira que a ideia inicial foi distorcida, dando lugar a um novo mercado. Uma vez que é impossível mensurar o incremento na qualidade dos novos “adevogados” a partir da aprovação no Exame da Ordem, o que, de fato, pode-se afirmar, é que o referido exame não é consenso nem entre os próprios advogados.

A contabilidade foi outra categoria profissional que também adotou o referido exame, em 1999, por meio da Resolução do Conselho Federal de Contabilidade (CFC) nº 853/99, porém este exame foi suspenso por uma medida judicial requerida pelo Ministério Público no ano de 2005, por não possuir respaldo legal, o que foi conseguido somente no ano de 2010 por meio da Lei 12.249/2010 e da Resolução do CFC Nº 1.301/2010. No entanto, após sua implementação, a esperada melhoria da qualidade dos cursos não se constatou(8).

Na seara marasmática de lideranças legislativas diplomadas na categoria de enfermagem, surge, da microrregião de Ilhéus-Itabuna, um representante de uma histórica família de barões do cacau, o paladino para conduzir os destinos da qualificação profissional do enfermeiro: Lúcio Quadros Vieira Lima, o remidor. O egrégio deputado federal baiano é um pecuarista, engenheiro agrônomo e cacauicultor que, embora esteja no seu segundo mandato federal, apresentou “relevantes” projetos à sociedade brasileira, dentre os quais destacam-se a PEC 221/2012, que altera a redação da Constituição Federal, reduzindo para vinte e cinco anos a idade mínima para Governadores e Vice-Governadores; a Medida Provisória 712/2016, que obriga o programa radiofônico “A Voz do Brasil” incluir um minuto dedicado exclusivamente para a divulgação de ações de combate e conscientização sobre o mosquito transmissor do Vírus da Dengue, do Vírus Chikungunya e do Zika Vírus, além do Projeto de Lei 4930/2016(9), com vistas a alterar a Lei nº 7.498, de 25 de junho de 1986, que regulamenta o exercício da enfermagem, para nela incluir a obrigatoriedade da realização de exame de suficiência para obtenção de registro profissional. Na justificação do projeto lê-se: ”...tem a finalidade de garantir uma melhor segurança no atendimento de saúde prestado à população brasileira, quando da necessidade de se colocar no mercado de trabalho de saúde, profissionais comprovadamente preparados para a imediata resposta técnica que a profissão e os usuários do sistema de saúde necessitam” e, “...será um importante instrumento de avaliação para tais profissionais, na medida em que analisará as competências e habilidades mínimas...”. Pergunta-se: O eminente coronel acredita que uma prova escrita será capaz de garantir uma melhor segurança? Uma prova escrita ambiciona analisar as competências e habilidades para o adequado desempenho da profissão? Não seria o mais sensato criar mecanismos de aferição, acompanhamento, critérios de abertura e continuidade dos cursos de graduação em Enfermagem ao invés de punir aqueles que sobreviveram a uma formação deficiente, contudo, legalizada? A obrigatoriedade do exame cria, assim, de forma discriminatória, os “suficientes” e “insuficientes”, e para estes últimos pode-se dizer que, que nada mais representa do que a “culpabilização da vítima” ou uma “seleção predatória”(10). O problema está no indivíduo ou na instituição?

Nos Estados Unidos, por exemplo, os graduandos de enfermagem que são examinados como “insuficientes” pelo National Council Licensure Examination (NCLEX) sofrem consequências físicas, como depressão, sociais, como isolamento e ainda financeiras, pois, mesmo desempregados, continuam a pagar o empréstimo estudantil e sem apoio da instituição que lhes formou. E, ainda, as escolas sofrem pressão para a manutenção de altas taxas de aprovação, se preocupando com o recrutamento de estudantes qualificados etc(11).

Mas quem é o bastião dos enfermeiros e defensor da segurança da população, Lúcio Quadros Vieira Lima? Por que não se ouvia falar do insigne parlamentar até um passado recente? Ocorre que o congressista, conhecido como “Bitelo”, é citado na lista de propinas da empreiteira Odebrecht. Mais do que isso, o libertador da profissão de enfermagem é irmão de Geddel Quadros Vieira Lima, polidelatado Ministro-chefe da Secretaria de Governo do Brasil do Presidente Temer, preso, e com as digitais encontradas nos 51 milhões de Reais em apartamento de propriedade de pessoa íntima do irmão Bitelo, o redentor da enfermagem. Existe um terceiro irmão, Afrísio Vieira Lima Filho, diretor legislativo da Câmara.

A Associação Brasileira de Enfermagem - ABEn, por ocasião do 14º Seminário Nacional de Diretrizes para a Educação em Enfermagem – 14º SENADEn, que ocorreu em Curitiba, em 2016, manifestou-se contrária ao exame e seu posicionamento apoia-se no entendimento de que o exame de suficiência para o acesso à carreira de Enfermagem é uma medida de responsabilização do indivíduo que acentua a injustiça social e as condições de desigualdade e iniquidade, além de penalizar quem busca ascender socialmente pelos caminhos da enfermagem.

Em carta aberta à comunidade de Enfermagem, a Associação Brasileira de Enfermagem, a Executiva Nacional dos Estudantes e a Federação Nacional dos Enfermeiros - entidades representativas da enfermagem brasileira, tornaram público posicionamento contrário ao referido exame. Como afirma-se na carta aberta é questionável que o exame, por si só, possa avaliar habilidades e atitudes de forma suficiente para garantir o cuidado seguro e competente prestado pela/o enfermeira/o.

A realidade da educação em enfermagem no Brasil demonstra uma expansão consequente da democratização do acesso, com o crescimento do número de cursos e vagas na graduação em Enfermagem, associado aos incentivos para a inclusão e permanência dos estudantes, por meio de políticas e programas governamentais. Tais medidas tiveram influência significativa no âmbito da formação em enfermagem, na qual observa-se a predominância de pessoas do sexo feminino, de origem das camadas sociais menos escolarizadas; muitos iniciam a carreira na maturidade e prosseguem sua qualificação como graduando em enfermagem.

Assim, o exame de suficiência para profissionais de enfermagem no Brasil implica numa seleção inoportuna, inadequada e perversa, que promoverá exclusão, em sua maioria, de mulheres brasileiras que acreditaram no sonho da educação, particularmente, daquelas que acreditaram ser possível ascender, socialmente e profissionalmente, pelos caminhos da Enfermagem.

Frente a isso, as três entidades reconhecem que é necessário reforçar o rigor regulatório sobre a formação em enfermagem no Brasil, que atenda às especificidades da área, ampliando os mecanismos de avaliação de cursos, instituições de educação superior (cursos, escolas e faculdades) e ampliando o movimento pela qualidade da educação em enfermagem.

Retornando à história do Século XVI, D. Sebastião liderou a Batalha de Alcácer-Quibir, onde foi cercado e simplesmente desapareceu. Atribuem-se suas últimas palavras como sendo(12): “A liberdade real só há de perder-se com a vida”. O seu sumiço, sem herdeiros constituídos, levou a uma série de desdobramentos, que culminaram com a anexação do Reino de Portugal e suas colônias à Coroa Espanhola por 60 anos. Ainda nos dias de hoje, em Portugal, perpetua-se a lenda de que tudo melhorará após o retorno do Adormecido.

Definitivamente não é razoável admitir que o Exame defendido pelo COFEN seja a resolução dos problemas da profissão, sobretudo, quando conduzida a partir da proposta do Bitelo. A enfermagem não precisa e não merece ser guiada por D. Lúcio Vieira Lima, Rei do Cacau e usufrutuário da Odebrecht, até porque, tudo leva a crer que, diferentemente de D. Sebastião, a versão tupiniquim não desaparecerá, mas será encarcerada por um longo tempo: ganha a enfermagem, ganha o Brasil.


REFERÊNCIAS

  1. Cardoso A. Ministro do STF diz que redução da maioridade penal não deve ser vista como esperança [Internet] Portal EBC; 2015 apr 1 [cited 2017 sept 5]. Available from: http://www.ebc.com.br/noticias/2015/04/ministro-do-stf-diz-que-reducao-da-maioridade-nao-deve-ser-vista-como-esperanca
  2. Conselho Federal de Enfermagem(Brasil). Enfermagem em número [internet] Brasília; [s.d.][cited 2017 aug 28]. Available from: http://www.cofen.gov.br/enfermagem-em-numeros
  3. Brasil. Conselho Federal de Enfermagem. Resolução COFEN 276/2003 de 16 de julho de 1973.Regula a concessão de inscrição provisória ao auxiliar de enfermagem. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil [internet] 1974 jul 12; Seção 1.[cited 2017 Sept 2]. Available from: http://www.cofen.gov.br/resoluo-cofen-2762003-revogada-pela-resoluo-cofen-3142007_4312.html
  4. Brasil. Conselho Federal de Enfermagem. Resolução COFEN 314 de 30 de abril de 2007. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil [internet] 30 apr 2007; Seção 1. [cited 2017 aug 25]. Available from: http://www.cofen.gov.br/resoluo-cofen-3142007_4349.html
  5. Congresso Nacional (Brasil). Lista de parlamentares [internet] Brasília; [s.d.]. [cited 2017 sept 1]. Available from: http://www.congressonacional.leg.br/portal/parlamentar
  6. Brasil. Presidência da República. Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil [internet] 23 dec 1996; Seção 1. Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm
  7. Menezes Neto PE. Vestibular e Exame de Ordem: uma análise crítica. Aval. Pol. públ. Educ. 1995 jul-sept; 3(8): 317-322
  8. Bugarim MCC, Rodrigues LL, Pinho JCC, Machado DQ. Análise histórica dos resultados do exame de suficiência do conselho federal de contabilidade. Revista de Contabilidade e Controladoria [internet] 2014 jan-apr [cited 2017 aug 20]; 6 (1): 121-136. Available from: http://revistas.ufpr.br/rcc/article/view/33455/22671
  9. Brasil. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 4930 de 2016. Altera a Lei nº 7.498, de 25 de junho de 1986, que regulamenta o exercício da enfermagem, para nela incluir a obrigatoriedade da realização de exame de suficiência para obtenção de registro profissional [internet][cited 2017 aug 26]. Available from: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1448875&filename=PL+4930/2016
  10. Lavour A. Enfermagem: projeto quer exigir exame para exercício da profissão. [internet] Radis: comunicação e saúde. 2017 apr [cited 2017 aug 22] 175. Available from: https://portal.fiocruz.br/pt-br/content/enfermagem-projeto-quer-exigir-exame-para-exercicio-da-profissao
  11. National League of Nursing (USA). The fair testing imperative in nursing education [homepage] 2012 February. [cited 2017 aug 26]. Available from: http://www.nln.org/docs/default-source/about/nln-vision-series-%28position-statements%29/nlnvision_4.pdf
  12. Silva LAR. História de Portugal nos séculos XVII e XVIII. Lisboa: Imprensa Nacional; 1860.

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Recebido: 18/05/2017 Aprovado: 16/06/2017