Field diary: construction and utilization in scientific researches. Bibliographic analysis  

Diário de campo: construção e utilização em pesquisas científicas. 

Adriana Roese 1; Tatiana Engel Gerhardt 1; Aline Corrêa de Souza 2; Marta Julia Marques Lopes 1

1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS, Brasil; 2 Centro Universitário Metodista IPA, RS, Brasil

 Abstract: This article emerged from the author’s necessity of finding bibliography reference which were related to the construction and utilization of field diary as a complementary instrument in scientific researches. It had the objective of doing a bibliographic review referring to its utilization and describing experiences of the use of those methodological instruments. For that, it was developed a conceptual reference, an item dealing with the construction of a field diary and other a report on the experiences which the authors had with its use. We believe this study may help other researchers who search to develop researches with this data collector instrument.

Keywords: Qualitative research, Data Colletion, Methodology. 

Resumo: Este artigo surgiu da necessidade de as autoras encontrarem referenciais bibliográficos que tratassem da construção e utilização do diário de campo como instrumento complementar em pesquisas científicas. Objetivou-se realizar uma revisão bibliográfica referente à sua utilização e descrever experiências do uso desse instrumento metodológico. Para tanto, desenvolveu-se um referencial conceitual, um item tratando da construção de um diário de campo e outro um relato das experiências que as autoras acumularam com o seu uso. Pensa-se que este estudo possa auxiliar pesquisadores que busquem desenvolver estudos com esse instrumento de coleta de dados.

Palavras-chave: Pesquisa qualitativa, Coleta de dados, Metodologia.

 

Introdução 

O presente artigo foi elaborado, considerando a utilidade do diário de campo em pesquisas científicas, as experiências das autoras e a necessidade de se ter textos que relatem, não somente a sua construção, mas também as diferentes possibilidades de utilização. Dessa forma, durante o desenvolvimento da disciplina intitulada Metodologia Qualitativa, do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural, da Faculdade de Economia, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, optou-se por sistematizar alguns estudos existentes e a experiência das autoras na construção e utilização desse recurso na coleta de dados de pesquisa.

Este texto parte, portanto, de um referencial conceitual que permite discutir a construção de um diário de campo, e avança no sentido de apresentar exemplos de experiências das autoras, referentes ao uso desse instrumento metodológico, ressaltando a complementaridade que proporciona à coleta de dados. Não se pretende esgotar o tema, mas reunir referenciais bibliográficos e experiências capazes de contribuir para a elaboração e a utilização desse instrumento, por outros investigadores. 

Fundamentação Bibliográfica 

            O diário de campo é um dos instrumentos mais básicos de registro de dados do pesquisador, inspirado nos trabalhos dos primeiros antropólogos que, ao estudar sociedades distantes utilizavam um caderno, no qual registravam as práticas cotidianas, as viagens, os experimentos. Como método de pesquisa científica, o diário de campo surge com o trabalho clássico de Bronisław Malinowski (1) e é amplamente utilizado em pesquisas etnográficas, qualitativas, mas também em pesquisas quantitativas, experimentais.

        O referencial disponível sobre o tema está presente em abordagens metodológicas observacionais. Neste tipo de pesquisa, o investigador utiliza a observação como instrumento de coleta de dados e pode registrá-los em um diário de campo, que tem nessa observação o ponto de partida para a sua utilização.

O diário de campo “é um diário de bordo onde se anotam, dia após dia, com um estilo telegráfico, os eventos da observação e a progressão da pesquisa” (2:94). Dessa forma, todas as informações e situações que ocorrem durante a realização dessa pesquisa são anotadas para uma posterior análise.

O diário de campo (3:179) é, ainda, definido como “o registro diário de eventos e conversas ocorridas; das anotações em campo que podem incluir um diário, embora tendam a ser mais abrangentes, analíticas e interpretativas do que uma simples enumeração das ocorrências”. Essas definições dos autores incluem a dimensão de cunho mais interpretativo das anotações, ou seja, consideram que, durante a observação de um fato, o pesquisador já poderia registrar algumas análises sobre o acontecimento.

Essa mesma idéia é citada em um estudo qualitativo (4:150), como “notas de campo: o relato escrito daquilo que o investigador ouve, vê, experiência e pensa no decurso da coleta de dados”. Esses autores agregam à essa definição, o uso adequado do diário de campo, para estudos qualitativos.

            Lopes (5) salienta, também, as características do diário de campo como instrumento complexo, capaz de dar conta de amplos objetivos. A autora refere que “é uma técnica de pesquisa de campo muito utilizada em estudos antropológicos, mas não só nesse campo, que permite o registro do detalhamento das informações, observações e reflexões surgidas no decorrer da investigação ou no momento observado. Trata-se do detalhamento descritivo e pessoal sobre os interlocutores, grupos e ambientes estudados. Podemos considerá-lo um instrumento de interpretação-interrogação pelas suas características” (5:132).

As anotações de cunho analítico fazem parte do diário de campo. Acredita-se que essas definições complementares possibilitam a compreensão desse instrumento como ferramenta de coleta e, ao mesmo tempo, de análise, o que contribui para o processo de investigação, nos estudos qualitativos. Nesse sentido, parte-se para discutir alguns tópicos e sugestões de como utilizá-lo, de forma a explorar suas potencialidades interrogativas e interpretativas (3, 4, 5).

Optou-se por considerar, como sinônimos, os termos utilizados para definir o instrumento; dessa forma, notas de campo e diário de campo se referem ao mesmo instrumento/técnica. 

A Construção de um Diário de Campo 

Considerando as limitações bibliográficas sobre a construção desse recurso de pesquisa, adotaram-se os autores Bogdan e Biklen (4), pois se acredita que trazem elementos para uma boa descrição e análise didática do uso do diário de campo em pesquisas científicas. Referem que o conteúdo das notas de campo consiste em dois tipos de materiais, sendo eles: o descritivo “em que a preocupação é a de captar uma imagem por palavras do local, pessoas, ações e conversas observadas”; e o reflexivo que é “a parte que apreende mais o ponto de vista do observador, as suas idéias e preocupações” (4:152).

Segundo os referidos autores, as notas descritivas são as mais extensas, devido ao esforço empregado pelo investigador para registrar detalhadamente os acontecimentos no campo empírico. O objetivo, embutido nessa fase do registro, é o de “captar uma fatia da vida”, pois se sabe que a realidade não pode ser totalmente descrita pelo investigador (4:152).

Considerando esses elementos, parte-se do pressuposto de que o diário de campo é uma fotografia instantânea que descreve um momento de observação e as percepções do pesquisador, que se sabe não ser neutro e que, mesmo sem intenção, leva a campo seus pré-conceitos, idéias e posições e, a partir delas, elabora sua leitura da realidade.

Para a construção do diário de campo citam-se (4) aspectos descritivos considerados importantes: retratos dos sujeitos (incluindo a descrição completa: aparência física, maneira de vestir, estilo de falar e de agir, particularidades dos indivíduos); reconstruções do diálogo (anotações das palavras dos sujeitos, seus gestos, pronúncias e expressões faciais – o uso das aspas auxilia nessa reconstrução); descrição do espaço físico (desenho do espaço, do arranjo da mobília, descrição dos componentes presentes, no local); relatos de acontecimentos particulares (inclusão de pessoas envolvidas, de que forma e qual a natureza de sua ação); descrição de atividades (detalhamento comportamental); comportamento do observador (aspectos do seu comportamento que possam interferir na coleta e na análise dos dados).

O conteúdo reflexivo, citado pelos autores, agrega um relato pessoal do observador no material descritivo. É a fase do registro mais subjetiva que enfatiza “especulações, sentimentos, problemas, idéias, palpites, impressões e preconceitos” (4:165). É o momento de o pesquisador se colocar no estudo, mas, ao mesmo tempo, é o momento de esforçar-se para manter um recuo necessário com certo grau de isenção nas descrições. Esse é um dos limites da utilização do instrumento, para o qual o pesquisador precisa atentar, pois é recomendável a busca contínua de distanciamento entre observador e objeto observado.

Quanto aos aspectos citados são reflexivos: sobre a análise (especulação sobre o que está emergindo, conexão entre pedaços de dados, pensamentos que ocorrem e reflexões); sobre o método (discussão metodológica sobre o que foi realizado); sobre conflitos e dilemas éticos (registro das preocupações relacionais que surgem entre os seus valores e responsabilidades e da forma como foram resolvidos); sobre o ponto de vista do observador (início do estudo com seus pressupostos acerca dos sujeitos e do meio que está estudando); e, pontos de clarificação (explicação de situações confusas)” (4).

Para separar a parte descritiva da reflexiva, os autores sugerem que se utilize “CO” (comentários do observador). Também referem que alguns pesquisadores preferem utilizar dois diários de campo, um para cada parte, separando-as totalmente (4). Pensa-se que, em ambas as formas, o diário de campo poderá corresponder ao grau de cientificidade metodológica buscada pelo investigador. A experiência do grupo de autoras revela a formatação do diário construído, agregando descrição e reflexão, mostrando uma seqüência temporal dos acontecimentos, tanto da realidade investigada, quanto do tempo dos investigadores, e sua imersão no processo investigativo.

Como sugestões práticas, recomenda-se (4, 6) que, na primeira página de cada conjunto de anotações, haja um cabeçalho com título, data, horário e local da observação, o nome do observador e o número do referido conjunto. Ressalta-se a importância da construção do texto, no decorrer das notas de campo, com parágrafos e uma margem maior à esquerda. Isso tudo para facilitar a codificação e posterior análise das anotações.

É proposta (2:95) a sistematização em dois “diários”, o da observação e o da pesquisa, bem como que seja escolhida uma das páginas do diário de campo para o “diário de observação” - uma série de anotações que podem ser breves, mas serão sempre imperativamente datadas e localizadas, além das anotações de impressões e descrições. As indicações práticas são: quem é, onde, como, quando e o que aconteceu.  Referem, ainda, que a outra página poderá ser destinada ao “diário da pesquisa” – que normalmente contempla uma série de questionamentos levantados a partir da observação e o desenvolvimento de análises que servirão, não somente para orientar a observação, mas, sobretudo, para construir os primeiros embriões do plano de redação do relatório de pesquisa. Comporta a série de questões, hipóteses, dúvidas, leituras, tudo que faz parte da pesquisa.

Dependendo das situações observadas, da sua diversidade e da complexidade de seus elementos constitutivos, a observação e a manutenção precisa dos objetivos centrais da pesquisa tornam-se difíceis. Atenta-se para o fato de que os investigadores necessitam deter-se no que estão estudando, pois correm o risco de perder o foco do estudo e deixar passar aspectos importantes da pesquisa (4).

            Sendo, portanto, um instrumento de anotações, o diário de campo pode ser construído de diferentes formas, entre as quais: um caderno com espaço suficiente para anotações, comentários e reflexão, para uso individual do investigador, no seu dia-a-dia, onde

se anotam todas as observações de fatos concretos, fenômenos sociais, acontecimentos, relações verificadas, sua experiências pessoais, reflexões e comentários (7).

            Entretanto, mesmo sendo um excelente instrumento de coleta de dados, o diário de campo apresenta vantagens e limitações:  constituindo-se uma forma de diálogo com o cotidiano do observador, ele requer agilidade no registro. Em muitos casos, as notas serão escritas após o evento, pois pode ser uma opção, no momento da observação, não tomar notas; ele requer habilidade do observador em diferenciar suas interpretações e a descrição dos fatos; não é uma técnica isolada de coleta de dados em abordagens qualitativas, mas facilita criar o hábito de escrever e observar com atenção, descrever com precisão e refletir sobre os acontecimentos, sendo complementar a outras técnicas (7).  Portanto, a observação independe do nível de conhecimento ou da capacidade dos sujeitos; o observador busca a checagem das informações fornecidas por esses; a exploração de tópicos difíceis de abordar e o “registro do comportamento em seu contexto temporal-espacial” (8:164).

                Considerando as limitações e vantagens, Bogdan e Biklen (4) afirmam que o processo de escrita das notas de campo é uma forma de diálogo com o cotidiano do investigador. Portanto, é preciso certa disciplina por parte deste e, após, uma observação, em uma sala de aula; por exemplo, na redação, o pesquisador precisa ser ágil no registro dos tópicos e frases-chave dos acontecimentos.

            Nessa mesma perspectiva, Beaud e Weber (2) apresentam dois conselhos úteis: o primeiro, é reconstituir o desenvolvimento da observação, reencontrando a cronologia dos eventos observados ou provocados, sendo necessário, para isso, estabelecer essa cronologia de forma resumida, reconstituindo as relações entre os diferentes momentos. O segundo conselho enfatiza a necessidade de retomar e recopiar os eventos marcantes, porém sem abandonar a primeira transcrição (anotação), explicitando tudo que parecia ser “normal” e reavaliar, com recuo, ao mesmo tempo, o evento e a primeira análise (2).

            Torna-se importante, ao se transcrever uma observação, perguntar se cada detalhe mencionado é compreensível para alguém que esteve presente na observação e se é indispensável para a compreensão da situação. Pode-se, assim, evitar, ao mesmo tempo, as insuficiências de explicações e um número grande de detalhes inúteis. Dessa forma, vê-se que a validade da observação está na interpretação do observador e não nela mesma. É importante compreender todo o processo do acontecimento observado, e também atentar para os detalhes mais significativos o que, segundo eles (2), é o trabalho mais difícil da análise da observação.

                Nesse sentido, esses autores (2), dão algumas sugestões que auxiliam na escrita das notas de campo, quais sejam: - não adiar a tarefa, pois quanto mais o tempo passa, menos se lembra; - registrar, antes de falar, para não confundir; - escrever as notas em local sossegado e tranqüilo; - dar-se tempo para escrever as notas; - esboçar frases-chave e tópicos, antes de começar a escrever; - escrever de forma cronológica; - deixar as conversas e acontecimentos fluírem ao papel; - acrescentar o que foi esquecido na primeira escrita; - compreender que esse é um processo muito trabalhoso e que demanda tempo. Algumas pessoas preferem ditar suas notas para um gravador e depois transcrever; aconselha-se, nesse caso, que o próprio investigador as transcreva, pois ele será mais perspicaz que uma pessoa que não participou da observação.

Considerando o que foi tratado até o momento, relativamente à construção do diário de campo, finaliza-se este item com algumas considerações referentes à organização do material reunido, antes de sua análise.

É necessário fazer uma triagem e classificação do material, podendo-se utilizar algumas estratégias como várias pastas das observações, classificadas em séries, temas e cronologia. Pode-se, também, organizar fichas recapitulativas que resumam a cronologia da observação, com os encontros significativos, as ausências e as desistências. Os autores lembram, ainda, que, ao se organizar o material coletado, o mesmo já sofre a influência da interpretação. Aconselham, também, que no final do “diário da observação” deve-se reconstituir a série de posições que o pesquisador ocupou e o processo que o fez passar desse diário para o outro (“diário da pesquisa”). Neste último, a finalização, por sua vez, deve conter a elaboração da “problemática observada” o que o pesquisador está tentando demonstrar e a série de questões e hipóteses que foram progressivamente surgindo (2).

Expressas algumas contribuições bibliográficas na produção do diário de campo, passa-se ao relato de experiências pessoais das autoras na sua utilização como instrumento complementar à coleta de dados, em pesquisas científicas.

Usos do Diário de Campo: relatando experiências 

A seguir descrevem-se algumas experiências pessoais em pesquisas científicas já concluídas, utilizando-se o diário de campo como uma das ferramentas metodológicas. A pesquisa intitulada “A mortalidade por homicídios em adolescentes, em Porto Alegre, de 1998 a 2000” foi desenvolvida junto a famílias de adolescentes mortos por homicídio, nos anos e Município citados. A coleta dos dados ocorreu no período de julho a outubro de 2001, por meio de entrevistas com instrumento-guia semi-estruturado que foram realizadas com as famílias das vítimas, em visitas domiciliares, do tipo busca ativa (9). A entrevista é muito utilizada em pesquisa social e dentre as suas vantagens está a possibilidade de obtenção de dados referentes aos diferentes aspectos da vida social, além de permitir um maior contato com o sujeito do estudo (10). Na pesquisa, paralelamente ao instrumento de coleta de dados da entrevista, desenvolveu-se um diário de campo, por iniciativa de duas das pesquisadoras. Nesse instrumento, os conteúdos descritivos e reflexivos foram registrados em um mesmo bloco de anotações e sua diferenciação ocorreu pela utilização de canetas com cores distintas. Este diário de campo deu origem ao trabalho intitulado “A visita domiciliar como instrumento de coleta de dados de pesquisa e vigilância em saúde – relato de experiência” (11).

O diário de campo, nesse caso, foi utilizado como forma complementar da primeira pesquisa e, considerando a riqueza das informações, encontradas em campo, e registradas, estruturou-se um segundo estudo, que foi desenvolvido a partir da realidade empírica, das situações presenciadas nas comunidades, dos fatos observados e das falas das famílias investigadas. Dessa forma foi possível descrever as situações enfrentadas e refletir sobre elas. As situações descritas no diário de campo permitiram a associação analítica das condutas da comunidade ao fato de que muitos dos crimes estudados permaneciam impunes ou foram cometidos por pessoas que ainda conviviam no local. Essas e outras situações proporcionaram, portanto, o adicional de qualidade ao formulário de entrevista. Esta experiência ilustra a utilização do diário de campo como “diário de observação”, sendo uma ferramenta essencial para o desenvolvimento e análise da pesquisa, contribuindo para a estruturação de núcleos de sentido que possibilitaram a construção de categorias temáticas, para fins de análise (11).

Outra pesquisa em que se utilizou o diário de campo como instrumento complementar intitulou-se “Fluxos e acesso dos usuários a serviços de saúde de média complexidade no município de Camaquã/RS” (12). Trata-se de uma dissertação de Mestrado em Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O trabalho teve como objetivo geral caracterizar a rede de serviços de saúde existente no município de Camaquã/RS e a utilização da mesma, por meio da identificação dos fluxos de utilização, do acesso dos usuários aos serviços de saúde de média complexidade e dos motivos que os levam ao uso desses serviços. Para tanto, utilizaram-se instrumentos de coleta de dados quanti-qualitativos. As entrevistas foram realizadas no Hospital Geral e no Pronto Socorro do município de Camaquã. A caracterização da rede de serviços de saúde foi possível por meio da visita aos mesmos e de entrevistas com informantes-chave.

A construção e a utilização do diário de campo, neste caso, seguiu a mesma perspectiva da pesquisa anterior. Serviu para captar os acontecimentos e situações não abordadas nas entrevistas em relação à receptividade, comportamentos, dificuldades relatadas e descritas em longas conversas do tipo “desabafo”, que, freqüentemente, faziam referência às dificuldades nas trajetórias e acesso aos serviços de saúde, além de outras informações trazidas pelos entrevistados. Constatou-se que as informações livres “em conversa”, muitas vezes, trazem uma riqueza de detalhes que escapam às perguntas estruturadas, além de expressarem uma construção interpretativa única, própria do sujeito e seu contexto, incorporando julgamentos de valor e sentimentos relativos às suas experiências, no caso, com o Sistema de Saúde. Esses aspectos auxiliaram na construção da dissertação, servindo de complemento aos dados coletados por meio da entrevista. Este tipo de pesquisa ressaltou a relevância de utilização de mais de um instrumento de coleta de dados, possibilitando uma visão bem aprofundada e concreta da realidade estudada (12).

Outro exemplo do uso de diário de campo é a pesquisa-desenvolvimento intitulada “Projeto assistencial: a construção de uma ouvidoria em saúde escolar” (13), que foi desenvolvida em uma Escola de Ensino Fundamental de Porto Alegre. Nesse local, desenvolveu-se um projeto de Educação em saúde escolar, realizando oficinas de saúde com alunos, pais e professores, bem como consultas de enfermagem com os mesmos. Durante a realização das atividades, as observações eram registradas em diário de campo, de forma similar às pesquisas anteriores, considerando sua praticidade e agilidade para o registro e futuras análises. O diário de campo, nessa situação, permitiu o registro das reações, impressões e dúvidas dos pais e professores sobre as temáticas desenvolvidas. Permitiu, também, o registro e reflexões sobre a confrontação entre Instituição (escola) e família (pais e mães). Esses momentos de interação foram ricos e oportunizaram a compreensão de problemas que se introduzem no cotidiano da escola e nas vivências dos escolares, influenciadas pelas famílias e vice-versa. No caso das práticas em saúde, as interações permitiram a manifestação de dúvidas e discordâncias de atitudes entre os envolvidos, o que, acredita-se, pode resultar em estratégias construídas coletivamente para o seu enfrentamento. Nesse sentido os registros mostram a dinamicidade desses momentos e trazem contribuições, não só para a pesquisa, mas também para a implementação participativa de práticas educativas. Os registros aconteceram em cada reunião e buscaram dar visibilidade às interações, no momento em que ocorriam. O diário de campo, neste caso, ilustra a utilização do “diário de observação” e do “diário de pesquisa”, que orientaram, sobretudo, a compreensão da problemática observada. A partir das anotações, foi possível sistematizar os dados observados durante a realização das atividades, bem como analisá-los (13).

Salienta-se a importância da utilização do diário de campo na modalidade de pesquisa e desenvolvimento, os quais se caracterizam pelo desdobramento de um programa de ação que embasa a realização da pesquisa. Nessa modalidade relatada na área de Saúde escolar, o diário de campo foi o único instrumento utilizado para análise dos acontecimentos, em confronto com a bibliografia.

Com base nessas experiências particulares de utilização de diário de campo como ferramenta de coleta de dados e reflexões de pesquisa, evidencia-se sua adequação e pertinência em pesquisas qualitativas e as possibilidades de uso em outros desenhos de estudo.  

Considerações Finais 

            O presente artigo baseou-se em uma revisão bibliográfica sobre a construção do diário de campo em pesquisas cientificas e sua utilização experienciada pelas autoras. Dessa forma, desenvolveram-se algumas conceituações e uma discussão sobre a construção desse instrumento e sua pertinência em pesquisa. A partir das experiências citadas, visualiza-se a utilidade deste instrumento de coleta de dados e seu potencial, tanto para pesquisa qualitativa, quanto para quantitativa, servindo de instrumento único ou complementar. Também ressalta-se a sua contribuição para a compreensão e a análise dos dados coletados por meio de outros instrumentos.

Espera-se que este artigo, mesmo não se tendo a pretensão de esgotar o tema, possa servir como incentivo ao uso do diário de campo como instrumento complementar para coleta de dados e potencialização compreensiva dos elementos implicados em pesquisa cientifica.  

Referências

 1. Malinowski B. Um diário no sentido estrito do termo. Editora Record: Rio de Janeiro-São Paulo; 2001.

 2. Beaud S, Weber F. Guide de l'enquête de terrain. Paris: La Decouverte; 1998.

 3. Polit DF, Hunglert B. Fundamentos de pesquisa em enfermagem. 3ª.ed. Porto Alegre: Artes Médicas; 1995.

 4. Bogdan RC, Biklen SK. Notas de Campo. In: Bogdan RC, Biklen SK. Investigação Qualitativa em Educação – uma introdução à teoria e aos métodos. Porto, PT: Porto Editora; 1994. p. 150-175. 

 5. Lopes MJM. Les soins: images et realités – le quotidien soignant au Brésil. [tese] Paris (FR): Université de Paris VII; 1993.

 6. Lüdke M, André ME. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU; 1986.

 7. Falkembach EMF. Diário de campo: um instrumento de reflexão. Contexto e educação 1987; 2(7):19-24.

 8. Alves-Mazzotti AJ, Gewandsznajder F. O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: Editora Pioneira; 1998.

 9. Lopes MJM, Sant’Anna AR, Aerts DRG. A Mortalidade por Homicídios em Adolescentes em Porto Alegre de 1998 a 2000. [projeto] Porto Alegre (RS): Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2000.

10. Silva GRF, Macêdo KNF, Rebouças CBA, Souza AMA. Interview as a technique of qualitative research - a literature review. Online Braz J of Nurs [online] 2006; 5(2) [Acesso em 20 de outubro de 2006] Disponível em: http://www.uff.br/objnursing/viewarticle.php?id=522&layout=html

 11. Roese A, Lopes MJM. A visita domiciliar como instrumento de coleta de dados de pesquisa e vigilância em saúde – relato de experiência. Rev Gaúcha Enf 2004; 25(1):98-111.

 12. Roese A. Fluxos e acesso dos usuários a serviços de saúde de média complexidade no município de Camaquã, RS. [dissertação] Porto Alegre (RS): Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2005.

 13. Souza AC, Lopes MJM. A construção de uma ouvidoria em saúde escolar: relato de experiência. Rev Gaúcha Enf 2002; 23(2):123-141.

 Contribuições dos autores:

 Adriana Roese; Tatiana Engel Gerhardt; Aline Corrêa de Souza; Marta Julia Marques Lopes: Concepção e desenho; análise e interpretação; escrita do artigo; revisão crítica do artigo; aprovação final do artigo e pesquisa bibliográfica.

 Endereço para correspondência: Rua São Manoel, 963 - Santa Cecília - Porto Alegre/RS CEP 90620-110

Recebido: Oct 23rd, 2006
Revisado:
Nov 29th, 2006
Aceito:
Dec 3rd, 2006