ARTIGOS ORIGINAIS

Atendimento às vítimas de acidentes de trânsito pelo serviço pré-hospitalar: estudo transversal


Érika Mitiyo Watanabe1, José Carlos Dalmas2, Maria Regiane Trincaus3, Elma Mathias Dessunti2, Eleine Aparecida Penha Martins2

1Secretaria da Saúde do Estado do Paraná
2Universidade Estadual de Londrina
3Universidade Estadual do Centro-Oeste

RESUMO

Objetivo: avaliar o perfil dos atendimentos de acidentes de trânsito realizados pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) de uma cidade da região Sul do Brasil. Método: estudo transversal, retrospectivo e quantitativo, desenvolvido com dados de 342 vítimas de acidentes de trânsito atendidos pelo SAMU no ano de 2015, analisados estatisticamente. Resultados: entre as vítimas, prevaleceram os homens (71,3%); com idades de 15 a 44 anos (65,7%); e que se envolveram em acidentes de automóveis com motos (29,2%). As lesões mais frequentes foram as escoriações (48,2%) e as corto-contusas (33,0%); e as que acometeram múltiplos locais do corpo (50,6%) e os membros inferiores e superiores (85,1%). O suporte avançado atendeu 75,1% das ocorrências. Conclusão: constatou-se associação estatística entre os mecanismos do acidente com os grupos etários, com as fraturas abertas e fechadas e com as lesões nos membros superiores e inferiores.

Descritores: Acidentes de Trânsito; Serviços Médicos de Emergência; Estudos Epidemiológicos.


INTRODUÇÃO

A expansão da frota de veículos circulando na rede rodoviária e o aumento populacional proporcionaram a elevação dos casos de acidentes de trânsito, que se configuram como uma das maiores preocupações de saúde pública do mundo, em razão dos seus impactos negativos sobre a economia, família e sociedade, decorrentes da gravidade das lesões, das hospitalizações e das vítimas fatais(1,2).

São considerados acidentes de trânsito os eventos que ocorrem em local de tráfego público, resultando em uma ou mais vítimas feridas ou mortas, e que envolva pelo menos um veículo em movimento. Nesse grupo, incluem-se as colisões entre veículos e entre veículos e pedestres, animais, obstáculos geográficos ou arquitetônicos(3).

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), esses acidentes são a nona causa de morte no mundo e, se não forem tomadas as devidas providências, a estimativa para 2030 é a de que essas mortes aumentem abruptamente, alçando esta causa à sétima posição no ranking(4). Mundialmente, cerca de 1,2 milhões de pessoas morrem nas estradas todos os anos e outras 50 milhões de pessoas ficam feridas(5).

Conforme os dados do Ministério da Saúde, morrem anualmente cerca de 43 mil brasileiros por acidentes de trânsito. Este fato caracteriza o País como detentor de um dos maiores números de mortes no trânsito por habitantes da América do Sul, com a taxa de óbito duas vezes maior que a dos países europeus, se assemelhando às taxas dos países africanos(7).

Os acidentes de trânsito são apenas a ponta do iceberg dos desperdícios de recursos humanos e sociais provocados por essa tragédia. É considerada uma das principais causas de óbitos entre jovens de 15 a 29 anos e, nos países de baixa e média renda, a faixa de idade mais atingida é a economicamente ativa, sobretudo aqueles com menos de 50 anos. O impacto é incomensurável: as famílias são levadas ainda mais a pobreza pela perda do chefe de família, pelas despesas médico-hospitalares e/ou pela necessidade de cuidar de um familiar com incapacidades resultantes das lesões do acidente(5,6).

Mais de 75 % das vítimas de ferimentos graves são transportadas por serviços pré-hospitalares, compostos por médicos e por enfermeiros capacitados(5). Sem esse primeiro atendimento na cena do acidente, os números de óbitos poderiam ser ainda maiores. Um atendimento pré-hospitalar adequado pode incidir positivamente nos indicadores de morbidade e de mortalidade e, assim, reduzir os danos ou sequelas às vítimas(8).

Nesse âmbito, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), instituído pela Política Nacional de Atenção às Urgências por meio da Portaria nº 1.864, de 29 de setembro 2003, tem por finalidade prestar socorro à população em casos de urgência e/ou emergência, inclusive nas ocorrências de acidentes de trânsito(9).

Considerada a magnitude das repercussões dos acidentes de trânsito e a importância do atendimento pré-hospitalar como um dos determinantes da sobrevida das vítimas, se torna necessário o conhecimento dos aspectos epidemiológicos desses eventos, elucidando, concomitantemente, o perfil das vítimas, das ocorrências e dos atendimentos prestados pelo serviço pré-hospitalar.

Diante deste fato, essa pesquisa teve como objetivo avaliar o perfil dos atendimentos de acidentes de trânsito realizados pelo SAMU de uma cidade da região Sul do Brasil.

MÉTODO

A pesquisa seguiu um delineamento transversal, retrospectivo, de abordagem quantitativa, realizada a partir de dados secundários coletados nos Relatórios de Atendimento dos Socorristas (RAS) do SAMU de um município situado no interior do Paraná, região Sul do Brasil.

Foram analisados os RAS de todas as vítimas de acidentes de trânsito do ano de 2015, preenchidos pela equipe de enfermagem após o atendimento na cena do trauma. A amostra foi composta por 342 vítimas, correspondente a 23,4% (n=1.461) de todas as ocorrências de origem traumática atendidas pelo SAMU neste período. Em relação aos critérios de diagnósticos e de elegibilidade para a pesquisa, foram consideradas todas as vítimas de acidentes de trânsito, e excluídos os registros que não apresentavam os mecanismos do acidente, impossibilitando alcançar o objetivo deste estudo. Salienta-se que no município do estudo existem dois serviços de emergência: o SAMU e o Sistema Integrado de Atendimento ao Trauma em Emergência (SIATE). Há uma integração entre os dois serviços, sendo que o primeiro a ser acionado em uma situação de causas externas é o SIATE e, em segundo lugar, o SAMU, nas ocorrências que são consideradas de maior gravidade e necessitam do atendimento dos profissionais da saúde: o auxiliar/técnico de enfermagem e/ou o enfermeiro e o médico.

O município possui o Complexo Regulador de Urgência e Emergência, responsável pelo polo macrorregional de atendimentos e regulação assistencial de 21 municípios. O SAMU possui uma base centralizada e conta com quatro viaturas de Suporte Básico de Vida (SBV), duas de Suporte Avançado de Vida (SAV), um Veículo de Intervenção Rápida e, introduzida mais recentemente, uma aeronave.

As informações foram coletadas a partir da consulta manual de todos os RAS, no período de janeiro a abril de 2016, e transcritas para um instrumento específico que contemplou as variáveis relacionadas: (1) características da vítima: gênero, idade, lesões apresentadas e locais; (2) ocorrência: período do dia (manhã: 06-12h; tarde: 12h01-18h; noite: 18h01-23h59; madrugada: 00h00 – 05h59), dia da semana, mês, estação do ano conforme o Instituto Nacional de Meteorologia (INMET), mecanismo do acidente, avaliação do traumatismo cranioencefálico (TCE) segundo a Escala de Coma de Glasgow (ECG), que considerou os escores de 13 a 15 para TCE leve, de nove a 12 para moderado, e de três a oito para grave, e a gravidade do trauma avaliada pelo Revised Trauma Score (RTS), considerando os escores de 11 a 12 como trauma leve, de oito a 10 como moderado e de três a sete como grave; (3) atendimento: procedimentos realizados pelos profissionais, tempo resposta do atendimento, destino da vítima, serviço encaminhado para atendimento e região da cidade na qual o acidente ocorreu.

Os dados foram duplamente digitados no programa Microsoft® Excel 2010 visando a verificação de inconsistências e, por conseguinte, a garantia da qualidade das informações. Em seguida, foram compilados no software Statistical Package for the Social Sciences® (SPSS) versão 20.0 e submetidos à análise exploratória por meio da estatística descritiva (frequências absoluta e relativa). Para verificar a associação estatística entre as variáveis, procedeu-se com o teste qui-quadrado de Pearson (X2), considerando um intervalo de confiança de 95% e um nível de significância de 5% (p<0,05).

O estudo teve consentimento da coordenação do SAMU do município e respeitou as exigências formais previstas nas normas nacionais e internacionais regulamentadoras de pesquisas que envolvem seres humanos, obtendo aprovação de Comitê de Ética em Pesquisa sob o Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) 05931612.8.0000.5231.

RESULTADOS

No período do estudo, das 342 vítimas de acidentes de trânsito, 244 (71,3%) eram do sexo masculino, 96 (28,1%) eram do sexo feminino e em duas fichas (0,6%) não constava o sexo. A média de idade foi de 35,6 anos (desvio padrão - DP=17,6), com variação de três a 90 anos. Conforme a Tabela 1, do total de vítimas, o grupo etário que mais se envolveu em acidentes foi o de 15 a 44 anos, correspondendo a 68,0% das vítimas do sexo masculino e a 60,4% do feminino.

Tabela 1 - Vítimas de acidentes de trânsito atendidas pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, segundo gênero e grupo etário. Paraná, 2015

Tabela 1

Fonte: Dados da pesquisa, 2015. *p-valor <0,05 teste qui-quadrado; em duas fichas não constavam o sexo.

Os mecanismos dos acidentes de trânsito preponderantes foram os automobilísticos com motos (29,2%), seguidos dos acidentes automobilísticos (27,5%) e atropelamentos (22,5%). Com relação à faixa etária, entre as vítimas de 15 a 34 anos os acidentes automobilísticos com motos foram mais frequentes; entre 45 e 64 anos foram os automobilísticos; e, nos extremos de idade, que corresponde à faixa entre 5 a 14 anos e acima de 65 anos, os atropelamentos prevaleceram. Houve associação estatisticamente significava entre os mecanismos do trauma e as faixas etárias (p<0,001) (Tabela 2).

Tabela 2 - Mecanismos dos acidentes de trânsito atendidos pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência segundo grupo etário. Paraná, 2015

Tabela 2

Fonte: Dados da pesquisa, 2015. *p-valor <0,05 - teste qui-quadrado.

Verifica-se, na Tabela 3, que os acidentes de trânsito se distribuíram em todos os meses do ano, com maior frequência em maio (12,6%) e junho (13,5%). Em se tratando do dia da semana, o maior número de ocorrências se deu entre segunda e quinta-feira, correspondente a 51,2% do total dos atendimentos. Os acidentes registrados nos finais de semana (sexta, sábado e domingo) somaram 167 (48,8%), cuja maior frequência se deu aos sábados (19,9%). O período do dia em que houve mais ocorrências foi o noturno (36,6%), seguido pelo vespertino (com 32,7%), com pico das 17h às 19h (n=65). Quanto à sazonalidade, o outono (36,5%) e a primavera (23,4%) foram as estações do ano em que mais ocorreram os acidentes.

Tabela 3. Distribuição dos mecanismos dos acidentes de trânsito atendidos pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência segundo mês, dia da semana e horário do dia. Paraná, 2015

Tabela 3

Fonte: Dados da pesquisa, 2015. *p-valor <0,05 - teste qui-quadrado.

A presença do hálito etílico, declarado pela vítima ou percebido pela equipe no momento do atendimento, correspondeu a 10,2% dos casos. Quanto à região da cidade em que mais aconteceram esses eventos, prevaleceu à área central (32,7%), seguida pela zona leste (16,4%) e zona norte (15,2%).

Em relação ao TCE, observa-se que a maioria dos pesquisados sofreu lesões cerebrais leves (75,4%), conforme a classificação da ECG, e traumas leves (72,2%), segundo o RTS. Apesar de os acidentes que envolveram automóveis com motos terem sido os mais frequentes, os atropelamentos repercutiram em maior número de vítimas com TCE grave (n=37,7%). As vítimas cujos escores na ECG indicaram TCE grave somaram 21% e, destes, 6,4% já estavam ou evoluíram para óbito durante o atendimento.

No que se refere à região corporal mais atingida pelo trauma, predominaram as lesões em múltiplos locais (50,6%), seguidas pelas lesões nas extremidades do corpo: membros inferiores (45,3%) e membros superiores (39,8%). As lesões mais presentes foram as escoriações (48,2%), os ferimentos corto-contusos (33,0%) e as fraturas fechadas (29,8%) e abertas (11,7%). Em ambos os casos, o somatório é ser superior a 100% porque o instrumento permite a marcação de mais de uma opção de local e tipo de lesão. Verificou-se associação estatística entre o mecanismo do acidente de trânsito com as fraturas abertas e fechadas (p<0,05) e as lesões que atingiram os membros superiores e inferiores (p<0,05) (Tabela 4).

Tabela 4 - Análise das variáveis associadas aos acidentes de trânsito atendidos pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, conforme mecanismo do acidente. Paraná, 2015

Tabela 4

Fonte: Dados da pesquisa, 2015. *p-valor <0,05 - teste qui-quadrado; 1admitido mais de uma resposta

A equipe de SAV foi acionada em 75,1% das ocorrências e, em alguns casos, associada ao SBV e ao SIATE. Os procedimentos mais executados durante o atendimento foram a imobilização com a tábua rígida (54,1%), a obtenção de um acesso venoso (28,7%) e a imobilização da coluna cervical com o colar cervical (27,5%). Em 27,5% não foram necessários procedimentos ou apenas realizou-se verificação dos sinais vitais. Ressalta-se que pode ter sido necessário realizar mais de um procedimento por vítima, justificando o somatório superior a 100%. A recusa do atendimento ou do encaminhamento ocorreu em 2,6% dos casos. A tabela 5 apresenta a média do tempo resposta em cada fase do atendimento realizado pela equipe de SBV e SAV do SAMU.

Tabela 5 - Média de tempo reposta (em minutos), em cada fase do atendimento pelo Suporte Básico de Vida e Suporte Avançado de Vida do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência. Paraná, 2015

Tabela 5

Fonte: Dados da pesquisa, 2015. *SBV - Suporte básico de vida; SAV - suporte avançado de vida.

Em relação ao destino das vítimas após o atendimento pré-hospitalar, 81,6% foram encaminhadas para os serviços de saúde do município pelo SAMU e 5,8% seguiram ao destino com o SIATE. A maioria dos casos foi encaminhada para hospitais terciários (57,0%), e 11,7% para hospitais secundários.

DISCUSSÃO

Por meio da análise dos resultados, é possível constatar que os acidentes de trânsito predominaram nos homens jovens e adultos, tal como evidenciado em estudo realizado em Kashan, no Irã, onde a média da idade das vítimas foi de 34,4 anos (dp=19,2) e o percentual de homens vitimados somou 82,7%(10).

Os homens estão mais vulneráveis aos agravos por causas externas, em razão de fatores culturais e biológicos que os expõem mais frequentemente aos eventos violentos. As repercussões impactam negativamente na sociedade e na estrutura familiar dos indivíduos envolvidos: comprometem as atividades laborais, geram aposentadorias precoces, limitações físicas, psicológicas e, até mesmo, a interrupção da vida(4,11).

Neste estudo foi encontrada associação significativa entre os mecanismos dos acidentes de trânsito com as faixas etárias (p<0,001). Dentre essas ocorrências, ressalta-se os casos de atropelamento que sobressaíram nos idosos (>65 anos) e em crianças e adolescentes de cinco a 14 anos. Em estudo realizado com idosos vítimas de trauma atendidos em um hospital terciário, os atropelamentos foram identificados como a segunda maior causa de internação (28,2%). De acordo com esse mesmo estudo, os idosos são facilmente atropelados devido às condições da estrutura das vias públicas, normalmente avenidas largas que não permitem a travessia no tempo determinado pelos semáforos(12).

Em outro estudo, conduzido com crianças e adolescentes vítimas de acidente de trânsito, verificou-se que, nos acidentes com automóveis e motos, o atropelamento ocorreu em 5,8% e 52,5% dos casos, respectivamente; fato que pode estar relacionado com o horário de saída da escola ou de atividades de lazer em vias públicas(13).

Por meio dos registros dos acidentes de trânsito analisados neste estudo, averiguou-se que as ocorrências aconteceram mais frequentemente entre segunda e quinta-feira, principalmente no final da tarde e início da noite. Esses dados foram condizentes com achados de outros estudos quanto ao período do dia, mas diferiram em relação aos dias da semana, já que apontaram maior número de ocorrências nos finais de semana(14,15).

De acordo com os dados da literatura, os acidentes estão mais propensos a acontecer no período noturno devido ao aumento do fluxo de veículos circulantes nas ruas ao fim do expediente laboral, do cansaço após o expediente de trabalho, da visibilidade limitada pelo alcance dos faróis, do desrespeito às sinalizações e do uso abusivo de álcool e de drogas(16)

Ainda nessa perspectiva, embora a área central não seja a mais populosa, alguns fatores podem explicar ela ter sido a região do município onde se deu o maior número de acidentes registrados (32,7%), como as suas ruas estreitas, que apresentam alto fluxo de pessoas e de veículos circulantes em horário comercial, e o fato de ser a região de acesso às outras localidades da cidade.

Em relação ao período do ano, os acidentes aconteceram mais frequentemente no outono (36,5%), especialmente nos meses de maio (13,5%) e junho (12,6%). Esses dados foram semelhantes ao encontrado em estudo que analisou a epidemiologia dos acidentes de trânsito da Índia, em que os meses de maio (8,8%) e abril (8,7%) prevaleceram. Na Índia, estes meses correspondem ao verão(2), estação que, assim como o outono, no Brasil, são caracterizadas por apresentarem mais nebulosidade e umidade.

Em estudo nacional, realizado na Paraíba, o mês de maio ficou na quarta colocação (9,4%) em número de acidentes de trânsito, os quais ocorreram mais frequentemente em novembro (9,9%) e dezembro (9,8%), isto é, final da primavera e início do verão(15). Segundo a literatura, neste período o uso de bebidas alcoólicas e o fluxo de veículos aumentam, possivelmente em razão das festividades de final de ano, dos casamentos e das férias escolares(1), fatores não relacionados aos meses nos quais o número de ocorrências foi mais prevalente neste estudo.

Com relação à aplicação da ECG e RTS, este estudo encontrou dados semelhantes aos da pesquisa de Paravar(10), na qual a maioria das vítimas apresentou traumatismo leve e um baixo percentual evoluiu para o óbito. A Central de Regulação Médica das Urgências, parte integrante do SAMU, é uma estrutura física que conta com um médico regulador que orienta e classifica as chamadas telefônicas conforme a gravidade da situação e direciona o atendimento para a unidade de suporte mais adequada(9). No presente estudo, o SAV, equipe composta por um condutor, um enfermeiro e um médico, atendeu a maioria das ocorrências. Em alguns casos, apoiou a equipe de SBV (composta por um condutor de veículo de urgência e de um técnico ou auxiliar de enfermagem) e o SIATE (corpo de bombeiros), após já terem realizado o primeiro atendimento.

Ressalta-se que, apesar de a maioria das vítimas terem sofrido traumatismo leve, a equipe de SAV foi acionada com maior frequência, possivelmente porque as ocorrências tinham potencial para evoluírem para casos mais graves em razão das características das lesões e dos mecanismos do trauma. Situação corroborada pelos achados desta pesquisa, em que as fraturas abertas (p=0,001) e as fechadas (p=0,022), que atingiram principalmente os membros superiores (p=0,034) e inferiores (p<0,001), tiveram associação estatística com o mecanismo do trauma e foram identificadas em quase metade das ocorrências. Dentre esses mecanismos, as ocorrências que envolveram motos foram as que mais acometeram as extremidades do corpo. Outros estudos também evidenciaram que os seguimentos corpóreos mais atingidos pelos acidentes foram os membros superiores e membros inferiores, quando somados(15,16).

Em pesquisa realizada com motociclistas também foi evidenciada maior frequência de lesões nos membros superiores e inferiores. Essas últimas são as que mais ocasionam morbidades, o que pode ser explicado pelo fato de serem as áreas do corpo dos motociclistas mais desprotegidas(16).

No que se refere aos procedimentos executados pelas equipes, identifica-se um percentual reduzido destes em relação ao total de atendimentos. A imobilização com tábua rígida ocorreu em mais da metade dos casos (54,1%), enquanto a imobilização da coluna cervical em apenas 27,5% das vítimas – inferior ao percentual de acessos venosos realizados (28,7%). Esses dados divergem do protocolo internacional do trauma, que preconiza que os dois procedimentos de imobilização devem ser, concomitantemente, os primeiros a serem realizados(17).

Tais procedimentos podem ter sido pouco executados durante o atendimento devido à avaliação da vítima pelo médico intervencionista, que é responsável por definir, através do exame clínico, os procedimentos que julga necessários. Com relação ao tempo resposta dos atendimentos, estudo realizado com motociclistas identificou que o tempo entre a solicitação do usuário até a cena do atendimento foi, em média, de 39,9 minutos e o tempo resposta total, correspondente ao tempo decorrido da solicitação ao desfecho do atendimento, foi de aproximadamente 69,1 minutos. Esses tempos mais delongados foram justificados pelo fato de a base do SAMU ser centralizada para o atendimento de todo o município(18), cuja densidade demográfica e características do SAMU se assemelham às do município em análise no presente estudo. Tendo isso em vista, a comparação dos dois estudos, no que tange ao parâmetro tempo resposta, sugere maior eficiência do serviço pré-hospitalar do município estudado aqui. Cabe ressaltar que, em razão de o SAMU não registrar o tempo de permanência da viatura na cena do acidente, não foi possível verificar a coerência desse tempo resposta com o que a literatura preconiza.

Outra atribuição da central de regulação é a de ordenar o fluxo efetivo das referências dentro da Rede de Atenção à Saúde, conforme a gravidade e a necessidade de cada caso(11). Neste estudo, a maior concentração das vítimas foi encaminhada para os hospitais terciários (57,0%), principalmente aos serviços de saúde públicos de referência ao trauma e que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), inclusive as vítimas com TCE classificadas como leves, que deveriam ser encaminhadas à rede secundária de atendimento.

Essas incoerências nos encaminhamentos podem ser justificadas pelo fato de que os parâmetros dos escores utilizados para a avaliação das vítimas de acidentes podem não ser suficientes para definir o quadro de gravidade e a necessidade de maiores intervenções. Nesse sentido, um instrumento mais criterioso para avaliação e triagem das vítimas poderia auxiliar na determinação dos procedimentos e do encaminhamento para o serviço de saúde mais adequado, conforme a individualidade de cada caso.

Além disso, outro fator que pode ter associação com os encaminhamentos equivocados é a pouca integração assistencial que deriva, em grande medida, da precariedade estrutural e de recursos médico-assistenciais nos hospitais de referência(19).

CONCLUSÃO

Os resultados deste estudo possibilitaram identificar maior prevalência de vítimas de acidentes de trânsito do sexo masculino, principalmente nas ocorrências envolvendo automóveis com motos; e na faixa etária compreendida entre 15 e 34 anos. Vítimas com idades entre cinco e 15 anos e acima de 65 anos estiveram mais frequentemente envolvidas em atropelamentos. Foi encontrada associação significativa entre os mecanismos do acidente e as faixas etárias.

As principais repercussões dos acidentes foram os ferimentos em múltiplas regiões corpóreas, com predomínio das lesões escoriativas e das fraturas abertas e fechadas, as quais foram estatisticamente associadas ao mecanismo do trauma e atingiram mais frequentemente os membros inferiores e superiores.

A maioria dos atendimentos foi realizada pelo SAV, com posterior encaminhamento para hospitais terciários. O tempo resposta nas diferentes fases de atendimento do SBV e SAV foram semelhantes e considerados de alta qualidade. O conhecimento do perfil das vítimas de acidentes de trânsito, das ocorrências e do atendimento prestado pelo SAMU é de grande valia, pois constitui um importante instrumento para a formulação de estratégias de fiscalização e de urbanização. Ademais, pode subsidiar o emprego de intervenções educativas, em especial para o público infanto-juvenil, no sentido de formar futuros motoristas e pedestres mais conscientes e mais responsáveis no trânsito.

Por meio dos resultados deste estudo, anseia-se ampliar o conhecimento sobre o perfil dos acidentes de trânsito que acometem a população do município estudado e realizar a divulgação para os profissionais do SAMU, no intuito de subsidiar a (re)organização do serviço para diminuir as lacunas encontradas neste estudo, principalmente em relação às informações não descritas e não preenchidas nos RAS, e propiciar melhorias no próprio serviço. Além disso, a avaliação do tempo resposta do serviço pré-hospitalar pode auxiliar no estabelecimento de indicadores de qualidade do atendimento e, por conseguinte, melhorar a segurança do paciente nesta área de atuação.

O estudo pode ter sido limitado pela subnotificação de dados nos RAS, pela ausência de registo de muitos itens contidos nos relatórios e pela ausência de um sistema informatizado para realizar o armazenamento desses dados. Embora a dinâmica do atendimento pré-hospitalar possa dificultar a prática do registro, as informações que dela derivam podem contribuir para o desenvolvimento de novas pesquisas que possam auxiliar na implementação de estratégias e políticas públicas que amenizem as repercussões dos acidentes de trânsito para o indivíduo e para a sociedade.


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Recebido: 01/03/2017 Revisado: 18/09/2018 Aprovado: 18/09/2019