Problema: a geografia e a dificuldade de acesso à saúde contribuem para a mortalidade materna e neonatal no norte e nordeste do Brasil. Objetivo: identificar os arranjos empregados durante o cuidado, por parteiras da Amazônia, no parto e nascimento. Método: estudo descritivo, de abordagem qualitativa e uso de grupo focal para a coleta de dados. Participaram 15 parteiras de Manaus e da Vila de Lindoia/ Itacoatiara, entre dezembro de 2015 e março de 2016. Análise de conteúdo baseada em núcleos de sentido e organizada em narrativas. Resultados: a maior parte dos arranjos forjados para assistir as mulheres ocorreu em cidades do interior do Amazonas. Os traços comuns das narrativas seguem em três núcleos de sentido: Cumplicidade e Reconhecimento; Memória de Parteira e Parto e Nascimento. Conclusão: as parteiras constroem uma lógica de cuidado centrada na mulher. Uma prática extensiva e criativa, disponível para a vida e o nascer.
Descritores: Parteiras; Parto Humanizado; Mortalidade Materna; Ecossistema Amazônico.
A mortalidade materna e neonatal persiste como uma problemática importante no atual contexto brasileiro. As regiões Norte e Nordeste do Brasil ainda se destacam de forma negativa com altos patamares, muitas vezes justificados pelos “vazios assistenciais” que as assolam(1).
No contexto das redes temáticas de atenção à saúde, a Rede Cegonha (RC)(2) foi instituída com o propósito de garantir acesso, acolhimento e resolutividade; além de reduzir a mortalidade materno-infantil, com ênfase no componente neonatal, incluindo crianças até os dois anos de idade. Trata-se de uma estratégia política para organizar o modelo de atenção materno–infantil(2).
Neste estudo, os alvos de investigação foram as parteiras, por estarem inscritas na composição das lógicas para humanização do nascimento e parto desde 2000, por meio do Programa Trabalhando com Parteiras Tradicionais(3), da Área Técnica de Saúde da Mulher – Ministério da Saúde/MS, em parceria com a ONG Curumim Gestação e Parto. Trata-se de um programa que já apresenta um acúmulo de experiências e é uma referência à singularidade do norte e nordeste do Brasil, uma vez que oferta uma estratégia a mais de redução da morbimortalidade materna e neonatal por meio da capacitação de parteiras tradicionais para a qualificação do parto domiciliar.
No estado do Amazonas, as parteiras estão inscritas no contexto da Rede Cegonha com o objetivo de fortalecer a estratégia de redução da mortalidade materna e neonatal, tendo em vista a proposição de sua vinculação às equipes da Estratégia de Saúde da Família. Com a introdução de formatos que vieram se adaptando, têm sido feitos investimentos de sensibilização e capacitações desde 2009 pela gerência da área técnica de saúde da mulher, com recursos do Ministério da Saúde liberados para compra de material especifico para o trabalho das parteiras(4). A Atenção Básica tem papel importante na operacionalização desse arranjo e dessa configuração.
Ainda há muito a avançar nas pautas e agendas dos gestores e dos profissionais no tocante ao reconhecimento das parteiras(5) como ator político que detém tecnologias e manejos tão caros para o alívio da dor, do desconforto, bem como do fato de ser um potencial produtor de confiança e do cuidado no agir em defesa da vida.
Este artigo versa sobre a produção de uma pesquisa compartilhada, de âmbito nacional, denominada “Observatório Nacional da Produção do Cuidado em diferentes Modalidades à luz do Processo de Implantação das Redes Temáticas de Atenção à Saúde no Sistema Único de Saúde: avalia quem pede, quem faz e quem usa”, coordenada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em cooperação com a Universidade Federal Fluminense, pelo Núcleo de Estudo e Pesquisa em Gestão e Trabalho em Saúde, bem como outras instituições de ensino superior.
Este texto destaca as parteiras da região norte do país e tem como objetivo identificar os arranjos empregados durante o cuidado, por parteiras da Amazônia, no parto e nascimento.
Arranjos aqui neste estudo entendido como os artifícios, de ordem cultural, técnica e relacional, empregados no processo do nascimento assistido por parteiras da Amazônia.
Estudo descritivo de abordagem qualitativa que envolve experiência prática, articulada a narrativas recolhidas nos encontros com e entre parteiras. Integra uma pesquisa guarda-chuva reconhecida como Rede de Avaliação Compartilhada (RAC) Universidade – SUS. Cumpriu os princípios éticos para pesquisa com seres humanos, em conformidade com a Resolução 466/ 12, do Conselho Nacional de Saúde. Foi aprovada pelo Comitê de Ética sob nº 876.385/ 2014.
A técnica de coleta de dados usada para investigação foi o grupo focal (GF)(6) visando explorar perspectivas individuais e compartilhadas acerca de determinada temática, gerando diálogo entre os participantes. No estudo, o GF foi construído pelos passos(6): 1. Definição dos participantes; 2. Contanto com os membros para esclarecer o convite; 3. Pactuação do local e data; 4. Definição de perguntas disparadoras; 5. Preparação do ambiente.
O trabalho baseou-se na lógica de construção de roda de conversa, com um cenário aconchegante(7) produzido para a narrativa dos contos das parteiras. Tais narrativas destacam vivências(8), visto que delineiam e revelam os arranjos e modos de cuidar de parteiras nas redes de cuidado operacionalizadas por elas, pelos movimentos para o acompanhamento da mulher no parto e nascimento.
O universo amostral tomou como referência inicial oitenta e seis parteiras de Manaus e Itacoatiara, municípios prioritários da RC, estas cadastradas pela Área Técnica de Saúde da Mulher, da Secretaria Estadual de Saúde do Amazonas. Quinze parteiras participaram da investigação, seguindo o critério de saturação em estudo qualitativo(7). O critério de seleção pactuado entre os pesquisadores foi ser residente da Vila de Lindóia/ Itacoatiara e de zonas periféricas de Manaus, ser indicada por trabalhadores da saúde ou por outras parteiras, possuir, no mínimo, três anos de experiência e reconhecer-se como parteira (ou com experiência de). Os critérios de exclusão foram: serem parteiras exclusivas de comunidades indígenas; com cadastro na Secretaria Estadual de Saúde do Amazonas desatualizado ou vencido. As parteiras assinaram o termo de consentimento livre esclarecido após a apresentação da pesquisa, informando dos objetivos e do anonimato.
Foram realizados dois GF(7) um, em dezembro de 2015 e outro, em março de 2016, composto por 09 e 06 participantes, respectivamente, ambos com duração de 02 horas. Contou com o auxílio de um pesquisador moderador, com experiência anterior em grupo focal, com uma atuação que se deu de forma menos diretiva possível, para que as parteiras atuassem como sujeitos no processo(7). A pesquisa contou, ainda, com quatro pesquisadores assistentes, que observaram a conduta dos grupos e fizeram as anotações. Para fins de garantir o anonimato das falas, as parteiras não foram identificadas, receberam nomes de rosas e flores, a pedido de uma delas.
O trabalho com o GF(6) associou a Fase II do método (Fase I do convite; Fase II do encontro e a Fase III da transcrição) objetos relativos ao cuidado no nascimento e parto – alguns trazidos pelas parteiras e outros como ofertas do pesquisador. Todos foram disponibilizados para decorar o cenário: uma grande cortina de voal branco, toalhas de mesa coloridas, uma cadeira de balanço posicionada em destaque, coberta por colcha de retalho, tapetes ao redor. O arranjo foi feito de forma a favorecer um clima de aconchego ao espaço da Escola Municipal da Vila de Lindoia, local da atividade.
A proposta era que os objetos servissem como convocadores das memórias e opiniões das participantes sobre o seu próprio processo de cuidar. As falas foram intercaladas com momentos de descontração, danças e cantorias próprias da região.
Participaram como observadores, a convite das parteiras, representantes da comunidade, alguns dos seus familiares, atores institucionais, incluindo os da sede do município e representantes de movimentos sociais.
Como construção da análise do material, empregou-se uma composição de fontes e narrativas apresentadas não com a intenção de colocá-las em ordem de relevância, mas como linhas tecidas e experienciadas, que se conectaram pelas possibilidades em acontecimento, gerando, assim, núcleos de sentido: Cumplicidade e Reconhecimento; Memória de Parteira e Parto e Nascimento. As narrativas fluíram em planos e lógicas distintos, em razão do que convocaram de encontros, na relação de alteridade entre sujeitos e seus processos instituintes(9) – aqueles processos que questionam o que está estabelecido como norma nas instituições, que acionaram e colocaram em cena os arranjos de cuidar das parteiras.
As narrativas foram recolhidas não apenas como o produto de experiências individuais, mas como resultado da atividade dialógica em um contexto cultural que compartilha informações(8)das parteiras que participaram do grupo focal.
As 15 parteiras envolvidas no decorrer da pesquisa são provenientes de municípios do Pará e do Amazonas, são ou foram casadas, localizam-se na faixa etária dos 47 aos 83 anos e possuem experiência de 20 a 1.250 partejamentos – iniciada junto com a mãe, ou com alguém das suas redes de existência, ou pela necessidade da comunidade. A maior parte dos arranjos forjados para assistir às mulheres ocorreu em cidades do interior do Amazonas, que se caracterizam por seus vazios assistenciais. Os achados das narrativas foram agrupados nos núcleos de sentido apresentados na figura 1 abaixo.
Figura 1. Núcleos de sentido recolhidos da análise das narrativas dos grupos focais. Amazonas, 2015-2016.
Fonte: dados da pesquisa.
Narrativa Cumplicidade e Reconhecimento
Este núcleo apresenta narrativas identificadas como uma dinâmica de interação interpessoal e social. São processos de autoafirmação do trabalho como parteira que se constituíram de forma recíproca e enredam os agentes neles envolvidos na tarefa do reconhecimento. Muitas vezes nós éramos rejeitadas e hoje está mudando através da humanização. (parteira Rosa do Deserto).
A construção do reconhecimento do trabalho é associada à cumplicidade presente entre as parteiras:
“sempre estamos em parceria, estamos sempre buscando as parteiras anônimas, para que não sejam esquecidas” (parteira Rosa do Deserto).
Aqui podemos destacar o esforço em manter a tradição de uma prática de construção de vida em que o partejar está presente e fortemente relacionado ao respeito, como sinal de reconhecimento simétrico. Isso pôde ser observado em uma narrativa durante o encontro do grupo, quando uma das parteiras fez referência à parteira Jasmim, que a ajudou no parto do seu neto.
O reconhecimento, como algo construído no cotidiano das parteiras, revela a implicação com o trabalho, um fazer rodeado de muitas dificuldades e desafios. Implicação que emerge relacionada à política e à construção do social:
Quando chegamos nessa comunidade, [a parteira] Flor do Deserto sabe disso... não tinha água encanada... muitas vezes ia fazer parto usando uma lanterna de pescador... lanterna na boca para enxergar... o parto natural é natural, mas tem uns que é difícil – cada parto é uma caixinha de surpresas... hoje... nós tivemos o pensamento de usar uma lanterna. (parteira Rosa do Deserto).
Em muitas cidades da região Norte do país, o acesso à energia elétrica e saneamento básico ainda constitui um desafio e uma luta pela garantia de direitos básicos. Na narrativa das parteiras, isso está associado à necessidade de luz para atender à parturiente.
Muitos partos a gente faz com carinho, com amor... O primeiro parto que fiz também foi à base de lampião, mas deu tudo certo. (parteira Hortência).
A cumplicidade e o reconhecimento andam juntos na narrativa das parteiras. Trata-se de cumplicidade nascida e nutrida pela amizade e pelo reconhecimento do trabalho e do fazer no auxílio do parto. O primeiro parto que fiz foi gemelar, de uma colega, fui falando: “mãezinha agora vou retirar a placenta”. (parteira Bromélia)
O espaço construído na cumplicidade não reconhece delimitação, ocorre quando o nascer chama – na casa da parteira, da parturiente, em outro lugar, pois independentemente do local, o sentimento e a sensação da parteira são de alegria e satisfação.
Sou muito conhecida em Lindóia... faço parto desde que eu tinha 35 anos... O primeiro parto que fiz foi da filha de uma mulher chamada dona B., ela teve na minha casa, no interior... desde 1975 eu já morava nessa casa... eu peguei essa criança, fiz o parto lá na minha casa, foi muito bom, fiquei muito satisfeita. (parteira Jasmim).
O sentimento da parteira é um sentimento de alegria sem limite porque você vê uma vida. (parteira Flor de Lotus).
Reconhecer-se como parteira está associado a uma experiência prática na narrativa, mas também com um “dom”, como algo construído na dinâmica familiar e na comunidade em que vivem. Para elas, partejar é uma missão atribuída por Deus e, por isso, entendem que Ele estará sempre ao seu lado; sobretudo, nas horas de aflição, sendo o seu guia, como exemplificado nas narrativas abaixo.
Não sou parteira de carteira [refere-se a não ter feito capacitação], eu fazia quando era necessário, nas horas que precisavam. (parteira Bromélia).
Não aprendi com ninguém... foi Deus que me deu esse dom. Minha mãe, ela era parteira, mas eu nunca ajudei a ela em parto nenhum... eu ia com ela pra ver... ela pedia alguma coisa pra eu fazer... mas eu não sabia nada. (parteira Orquídea).
A implicação com a existência humana e a solidariedade é um movimento constante na construção do processo de trabalho/cuidado da parteira. Uma ação edificante de um espaço para atender o parto.
Na cidade, minha mãe construiu uma casa de parto onde acolhia as mulheres que vinham do interior e da cidade quando não queriam ir para o hospital, e lá elas ganhavam seus bebês e eram cuidadas até voltarem para suas casas. (parteira Rosa do Deserto).
Narrativa Memória de Parteira
No primeiro núcleo, foi possível explorar a relação de reconhecimento e cumplicidade das parteiras com o trabalho e cuidado no parto. Este segundo conjunto concentra o sentido das memórias destas mulheres. A narrativa abaixo expressa o diálogo entre parteiras:
Graças a Deus todos os meus filhos de partos estão todos vivos... Eu gosto de fazer esse trabalho... não é porque eu queira tomar a frente de alguém... a mulher tem uma parte de alegria e um pouco triste, pois sabe a dor de ter um filho, mas quando o filho nasce é uma alegria para os seus pais e para a parteira também (parteira Flor de Lótus).
Sou uma mulher que veio de uma família humilde, que veio do interior do Pará, onde minha avó era parteira e cuidadora e minha mãe herdou esse dom. Eu recebi como um legado, sempre acompanhando minha mãe desde os 12 anos de idade. Ela me levava para acompanhá-la quando ia assistir alguém no interior. E na cidade não era diferente, sempre que podia estava com ela, pois éramos 13 filhos, só eu a única menina. (parteira Rosa do Deserto).
São histórias de um cuidado transmitido, por vezes, de geração em geração, que se mistura com a religiosidade.
As práticas do cuidado narradas pelas parteiras constituem-se como resultado de um processo ativo, atento, ativador e cúmplice:
Quando a mãe está fraca, faço caldo de caridade, alho, pimenta do reino, para ela tomar. Um copo de leite com sal, manteiga, leite morno. Aquilo vai dar uma força... rapidinho tem a dor para ter. (parteira Bromélia).
Eu pego muitas crianças, a pessoa precisou eu chego para ajudar. Não sou parteira [de carteirinha], não me comprometo mais em estar em posto. Já fiz parto com E. no posto de saúde, mas se me pedir ajuda eu vou. (parteira Hortência).
O aprender partejar inicia-se de diferentes modos, por vezes acompanhando a mãe (ou outro familiar) ainda criança. As narrativas contam como as parteiras são produzidas.
Quando eu tinha 13 a minha irmã nasceu, eu não sabia como cortar o umbigo, quando foi para cortar, aí mamãe me chamou. Depois disso já tenho feito muito parto, mas não tenho esse trabalho como profissão. (parteira Príncipe Negro).
Meu primeiro parto foi de uma neta. (parteira Orquídea).
Também as relações construídas na comunidade e o engendramento de novos laços afetivos e de apoio constituem parteiras:
Através da parteira Rosa me interessei, pois em minha família não tem parteira, perguntei a minha mãe. (parteira Margarida).
Minha mãe era parteira, minha bisavó. Sua mãe começou a fazer parto aos 11 anos, mas ao perder sua mãe foi morar um tempo com uma pessoa para ser curada, uma pessoa que fazia parto. (parteira Flor de Lotus).
Fiz meu primeiro parto aos 16 anos, em Manaus, perto de um igarapé... quando me chamou já estava tendo o bebê. (parteira Orquídea).
As histórias das parteiras são intensas. Originam-se de encontros que estabelecem um fazer e um arranjo coletivo de construção, indicador de alguns engendramentos da relação do saber da parteira com instituições de serviço, de pesquisa e de ensino:
Já conhecia S, que havia promovido através da Secretaria Estadual de Saúde/ SUSAM e outros – como o Grupo Curumim – um Encontro de Parteiras e fez parte de alguns encontros. Um dia S me ligou e disse que vinha na comunidade. E com ela veio A e L. Elas nos convidaram para um encontro na Universidade Federal do Amazonas/UFAM e lá houve uma troca de conhecimentos com as parteiras vindas do interior, da capital e uma do Pará – todas com o dom de assistir e partejar. (parteira Rosa do deserto).
Tivemos um encontro em Vila de Lindóia, em 18/12/2015, “O Conto das Parteiras”, organizado por nós da Rede de Avaliação Compartilhada no Amazonas, que hoje eu faço parte, juntamente com parteiras da minha comunidade, Vila de Lindóia, que para nós foi uma satisfação muito grande. (parteira Rosa do Deserto).
Tivemos um enorme prazer da colaboração e ajuda dos funcionários da Escola Ivo Amazonense de Moura e da gestora do colégio. Não posso esquecer de A, assistente social, pesquisadora da UFRJ, juntamente com a médica B e outras que nos ajudaram, como S, que é da saúde da mulher da SUSAM, para que esse evento pudesse acontecer. Tivemos a presença do jornalista de Itacoatiara, da enfermeira do hospital José Mendes, de Itacoatiara, profissionais da Unidade Básica de Saúde de Lindóia e a presença de companheiras do Movimento de Mulheres Camponesas. Fiquei muito feliz, como parteira, de fazer parte desse encontro, que foi maravilhoso. (parteira Rosa do Deserto).
Narrativa de Parto e Nascimento
As narrativas destacadas neste núcleo versam sobre os modos de cuidar que as parteiras empregam durante todo o trabalho de parto até o nascimento. São manejos, arranjos de apoio à mulher, que são produzidos a partir do primeiro sinal do parto. A dinâmica é sempre produzida pela parteira tendo a mulher como centro das atividades. Desta forma, os desejos e escolhas da parturiente fazem parte e entram como ferramentas, tecnologia leve no manejo da parteira.
A parteira Lírio afirma logo no início de sua fala:
Se é pra falar, então vou falar. Eu já fiz vários partos, com luz, sem luz, dessa senhora aqui... ela tem 4 filhos [mostrando um livro já amarelado pelo tempo], não tinha luz, ela comprou uma dúzia de velas e quando chegou a hora do menino nascer e as velas todas acesas... a menina pesou 4,150kg... passou tudo bem, teve a criança, a criança ficou bem, a mãe ficou bem e essa é minha história... [Para pesar a criança mostra a balança que fez] a redinha que eu fiz para pesar a criança, eu inventei essa rede. Quando a criança nascia, colocava a criança na cama e a colocava, sem machucar a criança. Ainda tem mais... quando eu ia fazer parto... anotações: eu que fazia.
Os arranjos do partejar são produzidos de acordo com o movimento do nascer. Os óleos usados estão de acordo com a avaliação da parteira em interação e vínculo com a mulher.
Quando chega a hora da criança nascer, ela nasce; quando não tem espaço, passo óleo... nem todas vai abrir. (parteira Bromélia).
Depois... Duas meninas na estrada... essa mulher, lá não tinha luz, dentro de um ramal, muito longe, 4 km pra chegar... era muito pobrezinhos, uma casinha no chão... nem assoalho tinha, e ela tinha 5 meninos e mais com esses dois que nasceu... ela me chamou e perguntou: você consegue fazer meu parto? Eu gosto muito de encorajar, assim como faziam comigo. De repente ela começou a sentir a dor pra nascer o bebê. Era dor, era dor e o bebê não nascia... eu lembrei, a gente faz o chá com três caroços de café. Quando não tem café, é raiz de chicória para mulher tomar, passa um álcool, uma manteiga na barriga... passa na barriga da mulher... quando veio primeiro a menina, com cordão embolado no pescoço... veio com aquela capa.. veio encapado... o que eu posso fazer... peguei a pele de um dente de alho cortei e passei... nasceu, mas o cordão era do outro neném que estava enrolado no pescoço dela... fui dando um jeito... e eu avexada fazendo oração... e graças a Deus a criança nasceu e depois de 3 e 4 min nasceu o outro, aí placenta só era uma.... eu acredito que essas crianças tenha uns 20 anos. (parteira Flor de Lotus).
Uma vida intensa estava a se apresentar, a cada conversa a se reatualizar, construindo com os participantes do grupo relação de alteridade.
As parteiras foram apresentando novos pontos de vista – e as vistas dos seus pontos(10) sobre a produção do cuidado, nos seus trânsitos pela rede instituída de atenção e/ou fora dela (e mesmo no “entre” esses espaços de conformação).
O arranjo de redes encontrado em Lindóia, Vila de Itacoatiara, mostra produção intensiva em um lugar tipicamente caracterizado como de “vazio assistencial”, mas que se mostrou com novas lógicas de cuidado, arranjos tecnológicos e preenchimentos para o nascimento e parto. No tocante ao primeiro núcleo de sentido, ficam destacadas as relações assimétricas e simétricas de reconhecimento(11) pelas parteiras, associadas à institucionalização da Política Nacional de Humanização (PNH) do Ministério da Saúde.
Um dos objetivos da PNH consiste em fortalecer iniciativas de humanização existentes e que ficavam visíveis com a construção de uma rede viva, permeada por um misto de satisfação e tensão, força, coragem e ação criativa.
No contexto da PNH, a possibilidade de aumentar a segurança da mulher durante o processo de parto e puerpério na maternidade, diminuindo o sentimento de fragilidade e de solidão, se assegura na normatização da presença do acompanhante(12). O reconhecimento da necessidade de suporte e apoio para mãe e bebê e as composições de redes mobilizam as parteiras em seus modos de cuidar.
Os arranjos das parteiras contam com interação que se expande de múltipla formas e tensões, na vida social e no convívio com outras práticas(13). Em Lindóia, por vezes, envolve familiares, vizinhas, outras parteiras, profissionais, membros da comunidade. Trata-se das redes de conexões que se engendram para o partejar.
As parteiras compartilham também valor moral, que se estabelece no reconhecimento da vida humana como fruto de uma ação de cuidado nutrido pelo desejo de se acercar do prosseguir na existência humana(14).
No segundo núcleo de sentido, estão as narrativas envoltas pelo conhecimento produzido no ato do partejar. É pela vivência que adquirem as técnicas e os procedimentos para assistir a mãe e o bebê. E em especial nos casos difíceis, recorrem às crenças aprendidas com as gerações(15).
O terceiro núcleo de narrativas traz o nascimento como um acontecimento(16), em virtude da sua dupla estrutura. Desse modo, o partejar como acontecimento permite que, por intermédio do concreto, do ato, se encontre o lugar do cuidado, na contraefetuação do nascer que se faz em múltiplos espaços e arranjos.
Durante as narrativas apresentadas, três objetos foram os mais escolhidos: o lampião, associado à luz; uma redinha de pesar o bebê, associado ao cuidado; e o livro de parteiras, vinculado aos registros (que muitas vezes só a memória viva poderia testemunhar). Trata-se de elementos associados a: pinça, tesoura, gaze, cordão, luvas, panos bem limpos, ervas e óleos para massagem, usados a depender da situação do chamado e do acesso. Entretanto, destaca-se, aqui, que os arranjos empregados por parteiras da Amazônia, na gravidez, parto e nascimento, se revelam para além da tecnologia dura de equipamentos necessários ao parto.
Estudos demonstram que o parto espontâneo(17) acaba sendo um momento privilegiado para mãe e bebê, não apenas na hora do parto, mas com expressão para toda uma existência. Um parto fisiológico bem sucedido permite respeito e segurança, abre e sustenta vínculos que, inclusive, podem se expressar desde a amamentação.
A singularidade do contexto estudado expressada por vezes pelo “fator amazônico” – baixa densidade demográfica, vazios assistenciais, barreiras geográficas com rios e lagos de dimensões continentais e vazantes e cheias dos rios – é tomada, aqui, como operador conceitual que fez refletir sobre vazios e cheios sanitários, assim como leva a problematizar a compreensão da organização dos serviços de saúde e das redes que os operam. Considerado sua forma extensiva de organização, temos as distâncias geográficas e estradas – de chão e de rios – que são superadas pelas parteiras no processo de cuidar, elegendo outra lógica para o nascimento.
Tal lógica se insere rompendo com a ideia da supremacia do saber científico em relação ao saber popular, pois, na história da assistência ao parto, possivelmente não exista profissional com tamanha importância e representatividade tal qual a parteira(14).
Os movimentos com as parteiras e as mulheres assistidas trazem a defesa da vida em sua radicalidade. Os arranjos e composições identificados levaram a que os saberes validados como científicos ficassem em suspensão. Isso permite afetar e ser afetado, uma vez que há o tempo de espera do partejamento, o tempo do partejar, a responsabilização diante do que tomam como prioridade e o reconhecimento dos seus limites. Aí também estão envolvidos conforto, pausa, força, escuta, toques e um manejo dos conhecimentos tradicionalmente passados, mas híbridos. Ao colocar no centro a mulher, interessam os aprendizados significativos que são feitos em ato, com a cumplicidade gerada que faz diferença nos modos de cuidar. Essa abertura, importante e interessada nas capacitações, não inscrita na lógica das profissões da área da saúde, pode ajudar a melhor cuidar.
As parteiras constroem uma lógica de cuidar que não só incluem a mulher, mas a coloca no centro do cuidar, algo que a política de humanização e a estratégia da Rede Cegonha sublinham como relevante na redução dos índices de mortalidade materna e neonatal.
Os diferentes ambientes e condições de nascimento não constituem obstáculo, mas experiência no manejo com a mulher e o bebê. São situações inusitadas, acontecimentos que reforçam o vigor, a força da vida nas mãos das parteiras.
Constatou-se, nas narrativas, que as redes para o cuidado com o parto e nascimento se constituem de diferentes formas e lógicas, não somente daquelas instituídas pelo poder público, mas, sobretudo, pelo coletivo, na prática extensiva e criativa do “dar as mãos” e estar disponível para a vida e o nascer.
Este estudo precisaria ainda aprofundar o quanto o partejar se legitima como prática potente de produção de cuidado e vida; e quais as tensões produtivas que permeiam o instituído e o instituinte nas práticas que envolvem a mulher, o parto e o nascer. Isso irá requerer novos aprofundamentos e investigação, para além do que por ora apresentamos.
Todos os autores participaram das fases dessa publicação em uma ou mais etapas a seguir, de acordo com as recomendações do International Committe of Medical Journal Editors (ICMJE, 2013): (a) participação substancial na concepção ou confecção do manuscrito ou da coleta, análise ou interpretação dos dados; (b) elaboração do trabalho ou realização de revisão crítica do conteúdo intelectual; (c) aprovação da versão submetida. Todos os autores declaram para os devidos fins que são de suas responsabilidades o conteúdo relacionado a todos os aspectos do manuscrito submetido ao OBJN. Garantem que as questões relacionadas com a exatidão ou integridade de qualquer parte do artigo foram devidamente investigadas e resolvidas. Eximindo, portanto o OBJN de qualquer participação solidária em eventuais imbróglios sobre a matéria em apreço. Todos os autores declaram que não possuem conflito de interesses, seja de ordem financeira ou de relacionamento, que influencie a redação e/ou interpretação dos achados. Essa declaração foi assinada digitalmente por todos os autores conforme recomendação do ICMJE, cujo modelo está disponível em http://www.objnursing.uff.br/normas/DUDE_final_13-06-2013.pdf