A reflexão que propomos é referente ao que escrevemos, registramos e narramos na abordagem da história da enfermagem, ao adotarmos métodos e técnicas na construção dos estudos, cuja seleção documental pode ser escrita, imagética, oral, objetal, dentre tantas outras. Isto implica na construção de assertivas entendidas como verdades “absolutas”, e que reproduzem determinadas crenças simbólicas do que queremos acreditar.
Descritores: Enfermagem; História; História da Enfermagem; Historiografia.
O sentido de pesquisar a história está na desconstrução das crenças e mitos estabelecidos, conduzindo o pesquisador a avançar no conhecimento, apesar de ainda se ter muito o que fazer nesse sentido. Pensar nessa perspectiva é entender o passado como invenção do presente(1), logo, a pesquisa histórica é narrada por aproximação do que ocorreu no passado, cabendo considerar a intencionalidade dos registros documentais, por exemplo dos depoimentos orais, pois a memória é seletiva(2).
Nesta perspectiva, a memória constrói lembranças e esquecimentos, o que implica nas escolhas do que se deseja lembrar e/ou esquecer(2). Em outras palavras, seja uma ou outra, a produção de sentido ocorre e com ela a produção do conhecimento, mas cabe-nos discernir ao fazermos assertivas como verdades “absolutas”. Exemplo disto é quando o sujeito de pesquisa está diante de uma imagem, ele pode fazer uma:
”Viagem livre, porque absorvida na evocação do presente de imagens que não são dali, mas estão ali expostas, relevadas aos olhos que as observam. E, nessa liberdade da viagem, que os processos formadores da experiência do sujeito que se vê se mesclam também com o imaginário, ou jogo de fantasias subterrâneas da memória(3:71).
O passado é uma “dimensão permanente da consciência humana”, sendo um desafio para o pesquisador analisar a sua natureza no “sentido do passado”(4:22). Isso ratifica que os estudos históricos são resultados da aproximação do que ocorreu no passado, por meio de documentos, métodos e técnicas, que podem produzir outra versão e interpretação daquela estabelecida.
A investigação no campo da história requer habilidade na aplicação de técnicas e métodos, seleção documental, triangulação das fontes, aplicação do referencial teórico e, principalmente, do repertório do pesquisador sobre o objeto investigado, considerando que o resultado se encontra no campo das possibilidades para a narrativa verossímil do passado. Nessa linha de pensamento, não se trata de importar e reproduzir métodos, teorias da história ou receitas pré-estabelecidas com o objetivo do devir humano para compreensão da historicidade da enfermagem; se faz necessário ir além.
Para seguir além, acreditamos que temos o suporte dos domínios da história(5), quando os historiadores de ofício organizam seus estudos em história das mulheres, história da saúde, história das guerras, e assim sucessivamente, para ativação da consciência histórica. Na enfermagem carecemos de organização deste tipo no campo da história.
No entanto, para não se cometer algum deslize sobre a assertiva supramencionada, tem-se o ensaio de três eixos temáticos, estruturados em decorrência do I Simpósio Iberoamericano de História da Enfermagem em 2009(6), a saber: Antropologia dos Cuidados, História das Instituições e História de Vida.
O primeiro, referente à Antropologia dos Cuidados, também conhecido como Cultura dos Cuidados(7), é destinado à compreensão da reflexão sobre as ideias, ações e circunstâncias. Trata-se de aspectos teóricos relacionados à prática e a situações no processo das necessidades de saúde, que se voltam para a garantia da integridade e da harmonia de todas e de cada uma das etapas que constituem a vida humana. Assim, o estudo com abordagem da cultura dos cuidados objetiva identificar variantes na forma de satisfação das necessidades e explicar as causas da diversidade e seus correspondentes significados. Sendo assim, ela é considerada essencial no conjunto dos comportamentos, patentes e latentes, desenvolvidos no campo da saúde e implicados no processo de sua satisfação de necessidades, cabendo-nos estudar o seu mecanismo tendo em vista os diferentes contextos(6).
O segundo eixo destina-se à História das Instituições e/ou trajetória do ensino, da assistência e agremiações de Enfermagem ao reunir os movimentos sociais considerados no âmbito da formação profissional. Evoca a memória dos espaços da formação e do trabalho, sendo ele o eixo temático aglutinador das investigações de monta por diversos pesquisadores e grupos de pesquisa(6).
O terceiro eixo direciona o olhar para a História de Vida, quando as biografias e memórias individuais de ilustres ou anônimos tornam-se o foco e visa-se, por elas, a versão e interpretação do desenvolvimento da profissão e dos cuidados prestados(6).
Esses eixos temáticos poderiam ser uma das estratégias de organização dos estudos em história da enfermagem, pois eles levam a compreensões e possibilidades. Podem também nortear a construção do conhecimento histórico em suas versões e interpretações, considerando a pluralidade e o aspecto transversal das outras áreas de conhecimento na enfermagem e na saúde.
Nessa vertente, com base no catálogo do Centro de Estudos e Pesquisas de Enfermagem da Associação Brasileira de Enfermagem, identifica-se que a produção da história da enfermagem corresponde a 2,4% do total da produção da Pós-Graduação Stricto Sensu no Brasil, no período de 1988-2011(8), e a 9,4%, no período de 1979 a 2013(9).
Considerando o interesse dos pesquisadores na História da Enfermagem, esses resultados são a ponta de um iceberg, o que merece investimento na busca de artigos em periódicos, identificação do fator de impacto, dentre outras variantes, para melhor posicionar a “área de conhecimento”. Essa expressão entre aspas, deve-se ao seu não aparecimento na organização das áreas de conhecimento pela Coordenação de Aperfeiçoamento do Ensino Superior e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico, por ela não visar os efeitos/impactos diretos à clientela nos serviços de saúde.
Pensar que a abordagem histórica não atende aos efeitos/impactos nos serviços de saúde é, direta e/ou indiretamente, negar o passado. É não entender às lições do passado; mas sim acreditar que o começo/início ocorre aqui e agora, como se o processo das descobertas, invenções e inovações na trajetória da humanidade não existissem. Portanto, dialogar com o passado não se trata de simplesmente registrar o que aconteceu por verossimilhança, mas evidenciar as estratégias aplicadas para avançar no presente pela consciência histórica.
A pesquisa em história é para averiguar os fenômenos, segundo resultados estabelecidos no sentido de confirmação ou refutação, por meio do debate historiográfico, ao visar novas versões e interpretações com vistas a avançar no conhecimento. Isto significa dizer que os estudos do passado carecem de atender as demandas atuais, mas eles possuem suas relevâncias para a construção de novos objetos.
Com efeito, podemos citar, por exemplo, a obra de Waleska Paixão, Páginas da História da Enfermagem (1952) e as cinco reedições intituladas História da Enfermagem, como uma das bases para novos objetos, o que faz progredir na construção do conhecimento, por entendermos se tratar de um clássico ou best seller na construção do saber na enfermagem(10).
Outro argumento que trazemos para reflexão é o cuidado como objeto de estudo para a enfermagem. Esse, quando investigado por meio da cultura dos cuidados, é revelador ao evidenciar como prestávamos e como prestamos os cuidados aos doentes/pacientes/clientes no decorrer do tempo.
A abordagem da cultura dos cuidados para as áreas de conhecimento da enfermagem são relevantes e evidenciam fatos/acontecimentos que não são novos desafios, hodiernamente, a serem enfrentados. Eles podem ser encontrados em artigos, dissertações, teses, capítulos e livros, bem como em sites e nas redes sociais, no âmbito nacional e internacional.
Exemplo do exposto são os artigos veiculados no periódico Cultura de los Cuidados, History Review, publicação da North American Association of Nursing History; no livro Cultura dos cuidados para os recém-nascidos(11); nos papers da Enfermería Avanza (http://enfeps.blogspot.com.br/) e os vestígios e rastros do passado, como possíveis objeto, pelas postagens nas redes sociais, como no Facebook: Florence Nightingale Instituut, Associação Nacional de História da Enfermagem, LACUIDEN, dentre tantos outros. Esses são alguns exemplos, que atuam como estratégias para ampliar o campo de visão na pesquisa em história da enfermagem, por trazer evidências e indícios do desenvolvimento, ou não, dos cuidados no decorrer dos tempos.
Outra possibilidade é pesquisar nos manuais sobre os cuidados que nortearam a enfermagem, em períodos anteriores das enfermeiras brasileiras se tornarem autoras de livros; nos prontuários dos pacientes/doentes/clientes de tempos idos; nas publicações de jornais e revistas de outros tempos, quando se fazia à população acreditar em determinadas condutas nas campanhas em prol da saúde pública.
O eixo da História das Instituições, por ensaio de amostragem(6), é predominante. Isto pode ser explicado, por exemplo, por meio da pesquisa intitulada Contribuição de estudos históricos sobre escolas de enfermagem para a memória e identidade da profissão: uma revisão integrativa(12), quando as autoras sugerem aos leitores “que os pesquisadores da área de história da enfermagem reforcem a necessidade de pesquisar sobre suas escolas de origem”(12:112).
A sugestão das autoras aponta para questão delicada e ao mesmo tempo crucial, pois carece de promover o debate historiográfico, o que pode conduzir a:
(...) querelas paroquiais e problemas de auto-estima institucional ou de identidades institucionais deterioradas, com ou sem razão (...) [com] preocupações excessivas com “as origens primaciais” ou primazias históricas desta ou daquela instituição de ensino no campo(13:204).
Este excerto foi retirado do estudo intitulado “Uma outra qualquer”: reflexão sobre as histórias da enfermagem(13), o que entendemos como um alerta; mas para os editores do periódico no qual ocorreu a publicação, lê-se em nota de rodapé: “Os pontos de vista expressos na presente reflexão não refletem, necessariamente, as posições da revista ou de integrantes de seu Conselho Editorial”(13:201). Isto aponta para como a crítica externa não é bem-vinda, o que deveria ser vista com outros olhos.
A promoção do debate historiográfico, para além da revisão integrativa, é a possibilidade em avançar no conhecimento. Neste sentido, cabe ao pesquisador comparar os argumentos e documentações utilizadas de cada investigação para progredir na escrita da história da enfermagem para além de revisão integrativa. Isto implica dizer que os pesquisadores em História da Enfermagem precisam amadurecer na pesquisa e serem mais ousados para alcançarem resultados que conduzam a proposições que visem o olhar crítico e reflexivo do que fazemos pela lente do passado vista pelo presente e com ele dialogar.
Outro elemento interessante a ser abordado, trata-se no eixo da História de Vida. Neste, cabe-nos investigar quando homenageamos o mito Anna Nery, como personagem da História da Enfermagem, mas sem a clareza de quem ela foi no passado, para além do mito. Isto porque, pesquisa (10) realizada sobre a pessoa Anna Nery aponta que, no século XIX, ela requereu concessão de quatro loterias como auxílio a uma enfermaria por ela criada, em 1871, sendo negada a solicitação pela Junta Central de Higiene Pública.
Às vezes, refletir sobre a temática na abordagem histórica é ter a sensação de que o passado se encontra no presente, mas com roupagem diferenciada pelo contexto. Dessa forma, não sabermos o que ocorreu no passado é não identificar onde estávamos, onde estamos e para onde queremos ir, o que nos deixa estacionado pela crença estabelecida ou cristalizada pelas investigações que nos interessam, negando as possibilidades de novas versões e interpretações.
Pensar nesta linha de pensamento é conduzir a reflexão para a participação dos auxiliares e técnicos de enfermagem na trajetória da profissão, excluídos algumas vezes na historicidade da enfermagem.
Assim sendo, para que a pesquisa em história da enfermagem possa ir para além da apropriação nos discursos, ela precisa ser entendida que não pertence apenas aos enfermeiros(as), mas também aos técnicos e auxiliares de enfermagem. Melhor dizendo, ela é transversal à trajetória humana, do cuidado na preservação da vida ao afastamento da morte(15), o que estabelece outro desafio: Como apreender a sua unidade na história da humanidade?
Recebido: 06/05/2017 Revisado: 10/05/2017 Aprovado: 10/05/2017