ARTIGOS ORIGINAIS

Vivenciando a parada cardiorrespiratória e óbito por familiares: estudo descritivo


Edilene Aparecida Araújo da Silveira1, Ana Carolina Guimarães de Magalhães1, Michely Izabel Alves1, Vivianny Christine Marques Silva1, Patrícia Peres de Oliveira1

1Universidade Federal de São João del-Rei

RESUMO

Objetivo: compreender a vivência de familiares de pessoas que sofreram parada cardiorrespiratória e foram a óbito. Método: estudo descritivo, qualitativo, que utilizou como referencial teórico e metodológico, respectivamente, interacionismo simbólico e interacionismo interpretativo. Os dados foram coletados por intermédio de entrevista semiestruturada no domicílio de 11 familiares, no período de novembro de 2015 a junho de 2016. Resultados: a análise das narrativas evidenciou diversos sentimentos como raiva, ansiedade e esperança. Foram identificadas duas epifanias. A primeira epifania, descobrindo que o familiar morreu, teve como categorias: vivenciando o momento da PCR e recebendo a notícia. Na segunda epifania, convivendo com as mudanças imediatas, evidenciou-se as categorias: relembrando e sentindo a dor da perda e mudanças após o falecimento do familiar. Conclusão: a perspectiva interacionista permitiu melhor compreender a experiência de familiares ao aguardar o atendimento de parada cardiorrespiratória e a posterior recepção da notícia de morte de seu ente querido.

Descritores: Parada Cardíaca; Família; Morte.


INTRODUÇÃO

A experiência de vivenciar a parada cardiorrespiratória (PCR), seguida pela morte de um ente querido é, na maioria das vezes, impactante para o familiar, devido ao enfrentamento da PCR, a inexorável certeza de que o corpo físico não pode viver após a morte e a constatação da impossibilidade de retroceder ou mesmo alterar a história do ocorrido(1-2).

A sociedade ocidental compreende a morte como sendo um tabu, observa-se que a morte está ausente do cotidiano do mundo familiar, pois foi transferida para os hospitais. Destarte, a morte hoje em dia é institucionalizada e os profissionais são treinados para o atendimento da PCR a partir de guidelines atualizados a cada quatro anos, contudo, nessas diretrizes não há descrição de como assistir às reais necessidades da família que está acompanhando o moribundo; há pouca interferência da família e ausência de reflexão sobre a morte e o morrer como processo natural da vida(3-4).

Tal lógica permeia o pensamento social, que institui regras para que a morte seja preferencialmente reconhecida no ambiente do serviço de saúde, seja no hospital ou em Unidades de Pronto Atendimento (UPA), por profissional capacitado. Dessa forma, mesmo que a família não queira, ela deve encaminhar o ente morto no serviço de saúde e a forma de enfrentamento e acompanhamento da morte sofrerá influências da cultura, história e cotidiano em que a pessoa vive(3); na perspectiva interacionista, há o compartilhamento na sociedade do conjunto de significados culturais e sociais. Esses significados norteiam a forma como o luto deve ser vivido e os encaminhamentos a serem seguidos antes e após a constatação do óbito(4).

Dentre as profissões, a enfermagem é aquela que possui maior contato com familiares e pacientes por estar presente no contexto dos serviços de saúde durante a maior parte do tempo. Ela deve ser comunicativa e preparada para atender a família, percebendo-a como foco do cuidado(5). A situação de PCR é um momento que a família tem necessidade de informações e de partilhar seus sentimentos. Assim, o enfermeiro precisa acolher, escutar ativamente, dar suporte e apoio à família(6) e, para isso, precisa apreender as vivências dos familiares que acompanham os moribundos.

A escolha da problemática vivência de familiares de pessoas que sofreram parada cardiorrespiratória e foram a óbito, está relacionada com a preocupação em compreender melhor este processo, no sentido de melhor adequar a assistência à pessoa em estado crítico e sua família.

A relevância desta pesquisa é manifesta por se tratar de um tema importante e por haver uma lacuna em torno dessa temática, evidenciada ao realizar busca na literatura, pois encontrou-se apenas algumas publicações sobre a família presente durante a ressuscitação cardiorrespiratória (RCR) na visão de pais de crianças e profissionais de saúde e outras pesquisas associadas aos benefícios ou desvantagens da família estar presente durante a ressuscitação cardiorrespiratória. Diante do exposto, surgiram os seguintes questionamentos: qual a vivência do familiar acompanhante frente à PCR de seu ente querido? Quais os sentimentos despertados pela notícia de morte desse ente? Para respondê-las, determinou-se como objetivo compreender a vivência de familiares de pessoas que sofreram parada cardiorrespiratória e foram a óbito.

MÉTODO

Trata-se de um estudo descritivo, qualitativo, que utilizou como referencial teórico e metodológico o interacionismo simbólico e o interacionismo interpretativo, respectivamente. O interacionismo simbólico parte da perspectiva de que o ser humano confere sentido às suas ações e cria significados. Tal processo direciona o comportamento individual em situações específicas. Dessa forma, as pessoas interpretam e se adaptam às circunstâncias, de forma flexível, de acordo com a definição da situação. A vida social é constituída por interpretações de significados compartilhados por um grupo ou comunidade(7).

O significado é um importante elemento na compreensão do comportamento humano, seus processos e interações. Esses valores são constantemente revisitados e transformados a partir do processo interativo do indivíduo com os elementos de seu próprio universo. Assim, os significados podem ser reformulados(7). Quando o pesquisador tem o objetivo de compreender plenamente o processo social, deve apoderar-se dos significados experenciados pelos participantes.

Os dados foram coletados no período de novembro de 2015 a junho de 2016, no domicílio dos familiares partícipes, por meio de entrevista semiestruturada, constituída por duas partes. A primeira composta por dados de identificação geral (sexo, idade, grau de parentesco e motivo da PCR) e a segunda constituída por perguntas norteadoras, baseadas no referencial teórico. As entrevistas foram realizadas por pelo menos duas das pesquisadoras, gravadas e posteriormente transcritas na íntegra, com duração média de 60 minutos.

Com base em amostragem por conveniência, adotou-se como critério de seleção familiares que acompanharam um ente adulto que sofreu PCR e posterior óbito, atendidos em uma Unidade de Pronto Atendimento, localizada em município do estado de Minas Gerais, Brasil, com idade superior a 18 anos, no ano de 2015. Os critérios de exclusão foram: familiares que não tinham disponibilidade pessoal para participar da entrevista e incapacidade de compreender e/ou responder as questões propostas por deficiência intelectual. Totalizaram 11 participantes no estudo, conforme descrito na Figura 1.

Figura 1

O contato com os entrevistados foi realizado por meio do telefone, pelo qual foi explicado o objetivo da pesquisa, consultando, assim, o interesse do acompanhante em participar da entrevista. Em caso afirmativo, foi marcado local e data para a realização da mesma. Ressalta-se que todas as entrevistas foram realizadas em lugar privativo, no domicílio dos participantes.

O número de familiares não foi delimitado a priori, foi determinado em razão da análise dos depoimentos até configurar a saturação teórica. À medida que a análise dos dados era realizada, foram procurados novos dados, para que as categorias fossem mais bem desenvolvidas e densificadas.

A análise dos dados foi realizada conforme as premissas do interacionismo interpretativo. Esta abordagem foi escolhida por reconhecer que os significados das ações para o indivíduo repousam na experiência vivida, e porque tem o objetivo de gerar discrições densas e detalhadas dessas vivências biograficamente importantes com enfoque nas interações humanas e em como elas alteram o comportamento das pessoas no contexto a que pertencem(8).

As fases da análise são constituídas por captura, bracketing ou reconstrução do fenômeno e contextualização. Essas fases são precedidas pela formulação do problema de pesquisa e desconstrução. Na fase de desconstrução, o problema de pesquisa foi examinado à luz de outras pesquisas existentes. A fase da captura se iniciou com a coleta das histórias das pessoas, contadas pelos participantes, sobre o fenômeno em estudo. Nessa fase buscou-se momentos experienciados que marcaram a vida das pessoas, de forma positiva ou negativa. Esses momentos são denominados como epifanias e estão envolvidos diretamente com o objeto de pesquisa(8).

O momento em que o acompanhante vivenciou o atendimento da PCR de um ente querido deixou marcas em sua vida. Essas marcas mudaram interações e influenciaram comportamentos futuros. Esse foi o momento de epifania, que foi capturado pela coleta de dados buscando-se resgatar significados e interpretações dadas pelos familiares aos eventos vivenciados. Ao final dessa fase, os pesquisadores confrontaram os relatos com a literatura existente e ocorreu a localização e o isolamento das frases-chave do relato, de forma que elas fossem interpretadas. Assim, teve início a fase de reconstrução. Nessa fase, buscou-se relacionar as frases-chave com outros elementos do fenômeno em estudo, de forma a reconstruir o fenômeno em sua totalidade. Na reconstrução, iniciou-se a contextualização -quando a análise dá significado ao fenômeno- e o recolocou no contexto do participante(8).

O desenvolvimento do estudo ocorreu em conformidade com os preceitos éticos e o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal de São João del-Rei, conforme parecer número 1.286.336. Foi mantido o anonimato dos participantes, adotando-se a letra E (de entrevistado), seguida pelo número sequencial de pronunciamento dos participantes da pesquisa.

RESULTADOS

Fizeram parte do estudo 11 familiares com idade entre 21 e 81 anos (média de 42 anos). A maioria era do sexo feminino (8 casos). O grau de parentesco dos entrevistados com as vítimas de PCR foi de primeiro grau consanguíneo - oito filhos e um pai – segundo grau consanguíneo – neto e avó – e, finalmente, esposa e marido.

Com relação aos diagnósticos que motivaram a PCR do ente querido verificou-se que seis foram por problemas cardiovasculares; três por doenças oncológicas e dois por agravamento de doença pulmonar obstrutiva crônica.

A análise das narrativas das pessoas que presenciaram a PCR de seus familiares evidenciou os momentos marcantes. Foram identificadas duas epifanias: descobrindo que o familiar morreu e convivendo com as mudanças imediatas.

A primeira epifania (descobrindo que o familiar morreu) teve como categorias: vivenciando o momento da PCR e recebendo a notícia. Na segunda epifania (convivendo com as mudanças imediatas), foram evidenciadas as categorias: relembrando e sentindo a dor da perda e mudanças após o falecimento do familiar.

Descobrindo que o familiar morreu

Todos os participantes receberam a notícia de que seu familiar morreu após o atendimento pela equipe de saúde. Oito participantes sabiam que a pessoa estava morta antes do atendimento devido ao fato de terem percebido a ocorrência durante os últimos momentos de contato com o paciente.

Vivenciando o momento da PCR

Todos os participantes perceberam que o familiar estava se sentimento mal em casa e ele ou outra pessoa próxima chamou o serviço de urgência. Neste período de aguardo, o participante acompanhava o paciente e percebia todas as alterações. Essas alterações foram relatadas com detalhes por todos os participantes, que trouxeram à tona seus sentimentos. Um dos principais sentimentos foi o desespero:

Bete, eu acho que a mãe morreu, aí eu cheguei lá na beirada da cama dela, eu abracei e sacudi, chamava ela e falava: ô mãe me perdoa, eu pedi pra Deus levar a senhora, vai não, vai não mãe, fica aqui mãe, mãe fala comigo, faz alguma coisa, aí ela não reagiu mais não.(...) Nossa! Eu queria morrer, eu queria morrer na hora, falei meu Deus.(...) Um abafamento, uma vontade de chorar, de chorar, chorar, de gritar, gritar e ... Nossa terrível! Praticamente ela morreu nos meus braços. E2. Pai, acorda, levanta, faz isso comigo não. Eu chorava, eu gritava. (...) Desespero assim, que eu queria que ele acordasse. E ele não acordava. Subi em cima dele e pai, faz isso comigo não, acorda! Fazia assim em cima dele (gestos) e nisso o corpo de bombeiros chegou. E8.

A seguir, o atendimento pelos profissionais ocorria na UPA e, durante esse período, o familiar ficava esperando, sem notícias. Nesse momento, os familiares evidenciaram diversos sentimentos como raiva, ansiedade e esperança:

Eu estava com muita raiva, porque parece que eu estava sabendo que ela não ia voltar para casa. E4. Ah, eles tiveram que me dar calmante, porque eu não ficava quieta, ficava andando pra lá e pra cá. E6. Eu fiquei quieta. Fiquei quieta. Porque eu achava que ele não ia morrer, tinha esperança. A gente sabia da gravidade, todo mundo sabia, mas na minha cabeça eu achava que ele ia sair do hospital. Porque, todo mundo sabia da gravidade, mas meu pai era cheio de vida. E7.

Ao término do atendimento, a equipe de saúde informou aos familiares que acompanhavam o paciente sobre a morte.

Recebendo a notícia

Ressalta-se que a maior parte dos participantes relataram que haviam percebido, antes da equipe de atendimento de urgência chegar, que o ente querido já estava morto, porém ao ser confirmado o óbito, a princípio, tiveram dificuldade em acreditar, como pode-se perceber nas falas a seguir:

Não queria nem aceitar nem acreditar. Pensava que era um sonho. Porque ele não estava doente. Foi de repente. E3. Não acreditei não. A gente não acredita não, acha que é mentira. Parece brincadeira de mau gosto. E10. Eu não acreditei, comecei a ligar para minha mãe, minha mãe mora em São Joao del-Rei, pode vir para cá agora que aconteceu o pior. Como a gente já estava pelejando há 5 anos, a gente espera, mas não acredita. A gente assusta. E11.

Observou-se que mesmo os familiares de pessoas cronicamente doentes expressam dificuldade em acreditar que o parente havia falecido. Outros sentimentos que surgiram imediatamente após a descoberta de que a pessoa estava morta foram: tristeza, raiva, impotência, além da fé, trazendo sentimento de paz, apesar da tristeza.

Senti impotente, inútil, você vê a vida da pessoa indo. Então você fica inútil, porque a vida foi embora. E5. No momento foi um sentimento de tristeza, porque nunca mais eu ia vê-la e eu ia ter que dar essa notícia aos demais, porque era eu que estava lá. Mas por outro lado, o sentimento de paz porque eu cumpri o que o senhor designou para eu fazer, eu exigi a Deus que quando ele levasse ela, que nenhum dos meus irmãos e meu pai estivesse com ela, eu que queria estar com ela. Foi aonde eu fiquei em paz, um sentimento de paz. E9.

Todos os participantes nunca haviam passado pela situação de presenciar a PCR seguida do óbito do familiar, como podemos evidenciar a seguir:

Nunca havia passado por isso, eu fui a única que conviveu mais com ela, toda situação dela, eu estava ali, eu que levava pro hospital, eu que fazia tudo? Era só eu, sofri muito. E2. Foi horrível. Nunca passei, porque quando eu perdi meu pai eu era pequenininha, aí depois eu perdi minha mãe, mas minha mãe ficou doente, ficou muito ruim, o médico falou que ela não ia ter cura (...) Faz sofrer mais. Foi um choque. Quando tem a espera, você vai conformando aos poucos. Agora de repente assim, tá doido: é difícil demais. E3. Eu nunca vi uma pessoa morrer perto de mim, primeira vez, fica martelando na minha cabeça sabe? Eu vendo ele cair assim (gestos), eu nunca tinha visto, nunca. E8.

Verificou-se que mesmo para as pessoas que tinham passado pela morte de outros entes queridos, a situação da PCR seguida do falecimento trouxe elementos diferentes que fizeram com que o participante a percebesse como um evento totalmente novo.

Convivendo com as mudanças imediatas

Relembrando e sentindo a dor da perda

Relembrar do familiar falecido e das situações vivenciadas junto a ele esteve no relato de todos os participantes.

A netinha dela vai casar. Ela não vai poder acompanhar o casamento da primeira neta dela. Então isso aí dói muito, lembro dela sempre. E5. Engraçado que eu ando na rua, eu penso que vou ver ele. Porque andava na rua e sempre encontrava com ele. Ele andava pra baixo e pra cima. E7. A gente não ouvir, não ver mais a pessoa, não ter mais a pessoa pra contar o que houve, o que está acontecendo, às vezes dói. E9. Nós vivemos 13 anos nessa casa com ela, então tipo assim a lembrança tá aqui (mostra o coração) e em qualquer lugar que eu for as lembranças estão, mas em casa as recordações são maiores. E4. Penso direto, tenho meu som, meus discos, cd, dvd, meu rádio na cabeceira. Não escuto mais, até guardar já guardei o rádio no guarda roupa. Não tenho vontade mais, me lembra ele. E1.

Mudanças após o falecimento do familiar

Além de conviver com as lembranças da pessoa que se foi e o luto, foi preciso fazer adaptações imediatas para que as consequências da morte não se tornassem mais graves e trouxessem mais sofrimento. Observa-se que foram necessárias a realização de algumas mudanças na morada ou de moradia e na rotina diária que envolvia o ente falecido:

Tivemos que alugar a casa, ela (mãe) foi para um apartamento. E8. Porque meu pai foi morar com minha irmã depois do enterro, ficou lá uma semana e não adaptou e pediu para ficar aqui e deu certo, ela se adaptou. E9. A gente vai se ajustando, as lembranças passam a não ser toda hora, conhece outras pessoas, faz amizade, sai mais (...), participo de um grupo de caminhada diária aqui do bairro. E6. Hoje eu tenho mais liberdade para sair sabe, para viver minha vida. Porque eu não vivia minha vida, eu vivia para ela. Eu não saía, eu ficava dentro de casa, eu não podia ir trabalhar tranquila, se eu estava na rua tinha que vir correndo. E2.

DISCUSSÃO

A partir dos resultados obtidos nesta pesquisa, pôde-se perceber a presença de inúmeros sentimentos, de ordem distinta, que caracterizam a vivência de cada entrevistado diante da PCR e posterior óbito do ente querido. Tais sentimentos foram classificados e inseridos em epifanias. A primeira epifania - descobrindo que o familiar morreu -, revelou múltiplos sentimentos, como desespero, raiva, ansiedade e esperança. Estudos apontam que a expressão de sentimentos decorrentes da perda faz parte do luto; as reações diante de uma perda podem ser de choque, desejo, desorganização e organização; é a hora de aprender que a morte do familiar aconteceu; somente a partir da vivência do processo de luto será possível estabelecer novas visões sobre o mundo, favorecendo investimentos pessoais(9-10).

Corroborando com o encontrado neste estudo, pesquisas revelam que o choque inicial da notícia do falecimento pode gerar desespero, raiva, irritabilidade, amargura e isolamento. Tais sentimentos podem despontar em reações emocionais intensas(3,11). A morte é o estágio final do desenvolvimento do homem. As reações, os sentimentos e as percepções das pessoas no que concerne à vida e à morte estão inteiramente relacionados com a sociedade em que vivem, a educação que receberam e suas experiências prévias(12). Na perspectiva do interacionismo simbólico, o indivíduo constrói significados diante das experiências e elas são a base de suas ações e reações(4). Desta forma, a variação dos sentimentos relatados pelos participantes se dá conforme os significados construídos por eles, na interface da interação com o ente que morreu.

Destarte, tendo em vista a constatação do óbito, o profissional deve estar preparado para dar essa notícia aos familiares, pois este momento influenciará no enfrentamento do luto(11,13). A forma específica como a notícia do óbito foi dada e a maneira que ocorreu a morte influenciaram na elaboração do luto e na percepção da notícia de morte(3,11). A situação de perda abrupta e inesperada pode provocar no familiar desorganização, paralisação e impotência. Nas situações em que há um período longo de cuidados, como nos casos de doenças graves e progressivamente limitantes, os familiares, principalmente o cuidador, podem vivenciar sentimentos ambíguos diante da notícia da morte(11), como demonstrado neste estudo.

Evidenciou-se também o sentimento de paz, advindo da fé no poder divino e na oração que auxiliaram na redução do sofrimento e na busca de coragem para superar as dificuldades. Segundo a literatura, a espiritualidade, quando vivenciada de forma conscienciosa, auxilia a vivência de períodos conturbados durante a vida e nos eventos de luto, pois colabora de diferentes formas amenizando o processo, trazendo outras perspectivas para se continuar à vida, e, portanto, é um dos recursos usados pelas famílias no enfrentamento da impotência e dor que surgem nos momentos de perdas(13).

A fé favorece a elaboração do luto. O luto desperta sentimentos diversos, os quais oscilam bastante durante o processo(13-14). Neste período, de fato, buscar por apoio espiritual auxilia no entendimento do luto, proporcionando reflexões que leva o enlutado a novas perspectivas, auxiliando na compreensão sobre a morte e o morrer, a perda, e, na maior parte das vezes, proporcionando mudanças que o indivíduo leva para outros aspectos do dia-a-dia, havendo, inclusive, uma melhora na qualidade de vida(12,14-15), como apontado em algumas entrevistas desta pesquisa.

Autores apontam que reconhecer a fé, a espiritualidade ou a religiosidade como estratégias de enfrentamento e buscar as lacunas espirituais da pessoa fazem com que o trabalhador de saúde possa planejar e prover um cuidado integral ao indivíduo assistido, destacando a importância dos profissionais compreenderem as crenças e os valores de cada familiar enlutado e perceberem a influência desses fatores na qualidade de vida dessa pessoa(14,16).

Em relação ao sofrimento e à dor da perda relatada pelos familiares, estas são reações naturais e estão presentes em todas as formas de luto(11). Nesse contexto, o profissional de saúde precisa aceitar a expressão emocional do familiar, não se considerando a necessidade de medicalizar o acontecimento, o enlutado deve ser livre para expressar seus sentimentos, mesmo que de raiva, angústia e desespero(9,12).

Ressalta-se que a pessoa enlutada somente começa a perceber sua nova existência se é permitida a expressão de sua tristeza e dor. Todavia, os profissionais de saúde são ensinados a cuidar da vida e não da morte, e isso pode ser observado pela inexistência de uma abordagem tanatológica nos cursos da área da saúde(13-14). A morte, por ser uma realidade do dia a dia dos trabalhadores de saúde, principalmente dos que trabalham em uma UPA, demonstra a necessidade do encorajamento do discente, de todos os cursos da área da saúde, à promoção de reflexões sobre o ciclo da vida do ser humano, ponderando que precisa estar preparado para lidar com o processo de nascer, viver e morrer(13).

Na segunda epifania - convivendo com as mudanças imediatas - os participantes mencionaram mudanças na rotina e de moradia. Essas transformações tiveram repercussões na vida do familiar acompanhante e da família como um todo. Diante da morte do ente querido, o familiar interpreta os significados, as reações das outras pessoas e o contexto. Esses significados são compartilhados socialmente e constantemente os indivíduos refletem sobre eles utilizando-os para a ação(4). Mesmo diante do processo de luto e de todos os sentimentos que o acompanham, tal interpretação impulsiona decisões relacionadas a mudanças na rotina e de moradia.

Estudos expõem que os ritos de passagem numa família podem ser uma oportunidade para mudanças tanto psicológicas, quanto espirituais, além de alterações na rotina das pessoas(14-15).

A perda de um ente querido deixa marcas eternas, todavia, prosseguir é primordial, já que a vida demanda do enlutado começar de novo, edificar novas rotinas e sonhos, tentando vivenciar uma nova etapa de sua vida(14,17). O tempo faz com que o desespero dê lugar à reconstrução, o sofrimento é amenizado, as lembranças sempre estarão presentes, contudo, o pesar é abrandado e o futuro passa a ser vislumbrado positivamente, demonstrando que tudo é crível(15).

A morte de quem se ama agendra rupturas profundas, requerendo mudanças e ajustamentos na maneira de se compreender o mundo e de se fazer planos para prosseguir vivendo nele. Entretanto, as reações ao processo de perda, processam-se de forma diferente entre os indivíduos e depende de múltiplas situações que perpassam a morte, tais como: a idade, o relacionamento que existia, a doença crônica ou não, a fé, a personalidade e a cultura(18).

Os depoimentos na categoria relembrando e sentindo a dor da perda, revelam que o familiar não esquece as lembranças de uma relação significativa. Estudos afirmam que o indivíduo em processo de luto não esquece completamente o ente querido falecido, os seres humanos não conseguem expurgar aqueles que foram caros e participantes ativos de sua história(15,18). Recordar é uma necessidade do enlutado. As lembranças têm a função de manter conservada a relação com o falecido.

À medida que o tempo vai passando, as lembranças dos entes queridos se tornam companheiras de uma existência, porém, no lugar do sofrer, surge um agradecer pela oportunidade de ter compartilhado momentos ao lado desta pessoa. Ressalta-se que esse tempo é variável de pessoa para pessoa, do grau de parentesco e da ligação afetiva com o falecido, ou seja, a duração do sofrimento pode variar. Alguns enlutados podem evidenciar seu pesar por um período maior, alcançando inclusive mais de uma década, como aqueles que passam por uma morte trágica(18-19).

Do mesmo modo, algumas pessoas conseguem demonstrar sua dor mais naturalmente, enquanto outras são mais recolhidas e introspectivas(18), inclusive, neste estudo, muitos familiares que vivenciaram a PCR seguida de óbito do ente querido e atendiam aos critérios de inclusão da pesquisa, disseram não ter disponibilidade pessoal para participar da entrevista por ausência de condições emocionais para falar sobre a experiência vivida.

A limitação deste estudo está relacionada à não possibilidade de entrevistar todos os familiares que vivenciaram a parada cardiorrespiratória seguida de óbito de seu ente querido, a fim de ampliar a percepção sobre o momento vivido. Outra possível limitação foi não ter abordado como a notícia do óbito foi comunicada ao acompanhante.

CONCLUSÃO

A vivência de familiares de pessoas que sofreram parada cardiorrespiratória e foram a óbito foi um momento marcante para esses indivíduos. Os participantes deste estudo contaram com detalhes, de acordo com sua percepção, esse evento. Foi, portanto, uma epifania que trouxe mudanças.

O período que precedeu a presença dos profissionais foi constituído por sentimentos intensos e suposições. A possibilidade de morte foi temida pelos acompanhantes que aguardavam o término do procedimento de RCP. Um turbilhão de sentimentos composto por medo, ansiedade, desespero, raiva e ansiedade acometeram aqueles que aguardavam por informações.

Ao receber a notícia do óbito, os familiares enfrentaram o luto de diferentes formas, sendo que a espiritualidade teve uma influência positiva. Contudo, essa notícia precisa ser comunicada pelos profissionais de saúde com sensibilidade e preparo, pois terá impacto no processo do luto deste familiar.

O acolhimento dos acompanhantes e o conhecimento sobre tanatologia certamente auxiliarão o profissional de saúde a lidar com as pessoas que acabaram de receber a notícia de morte de alguém que lhe é querido, pois assim, poderá dar suporte e informações pertinentes nesse momento permeado de dor.

A morte é uma temática que não se esgota mesmo com muitos estudos nesse campo; já que é um acontecimento natural, contudo, vivenciado de forma dolorosa na cultura ocidental. Entretanto, necessita ser amplamente discutida nas universidades, nas residências, nos locais de trabalho, ou seja, no dia-a-dia dos indivíduos; desse modo, acredita-se, será um fato menos avassalador e mais natural.

Diante dos resultados deste estudo, sugere-se, para pesquisa futura, que seja avaliado o impacto do processo de comunicação do óbito e o apoio da equipe de saúde como um todo nesse momento inexorável.


REFERÊNCIAS

  1. Jabre P, Belpomme V, Azoulay E, Jacob L, Bertrand L, Lapostolle F, et al. Family presence during cardiopulmonary resuscitation. N Engl J Med. 2013; 368:1008-18.
  2. De Stefano C, Normand D, Jabre P, Azoulay E, Kentish-Barnes N, Lapostolle F, et al. Family presence during resuscitation: a qualitative analysis from a national multicenter randomized clinical trial. PLoS One. 2016 June; 11(6):e0156100.
  3. Pazes MCE, Nunes L, Barbosa A. Factors influencing the experience of the terminal phase and the grieving process: the primary caregiver’s perspective. Revista de Enfermagem Referência[Internet]. 2014 [cited 2016 Aug 30]; 4(3):95-104. Available from: http://dx.doi.org/10.12707/RIII12135.
  4. Martins CBC. O legado do Departamento de Sociologia de Chicago (1920-1930) na constituição do interacionismo simbólico. Soc Estado [Internet]. 2014 [cited 2016 June 03]; 28(2): 217-39. Available from: http://www.scielo.br/pdf/se/v28n2/v28n2a03.pdf.
  5. Virgínio BCAE, Escudeiro CL, Christovam BP, Silvino ZR, Guimarães TCF, Oroski G. Death and organ donation from the point of view of nurses: a descriptive study. Online Braz J Nurs [Internet]. 2014 Mar [cited 2016 June 03]; 13(1): 92-101.Available from: http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/4164.
  6. Ferreira PD, Mendes TN. Família em UTI: importância do suporte psicológico diante da iminência de morte. Rev SBPH [Internet]. 2013 Jan-June [cited 2016 June 23]; 16(1): 88-112. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rsbph/v16n1/v16n1a06.pdf.
  7. Le Breton D. L'interactionnisme symbolique. 3. ed. Paris (FRA): Puf; 2012.
  8. Denzin NK. Interpretive Guidelines In: Denzin NK. Interpretive Autoethnography. 2. ed. Los Angeles, CA: SAGE; 2014. p. 35-48.
  9. Silva MDF, Ferreira-Alves J. O luto em adultos idosos: natureza do desafio individual e das variáveis contextuais em diferentes modelos. Psicol Reflex Crit. 2012; 25(3):588-95.
  10. Simon NM. Treating complicated grief. JAMA [Internet]. 2013 Jul [cited 2016 Sep 24]; 310(4): 416-23. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4530627/
  11. Tome LY, Popim RC, Dell’Acqua MCQ. Enfermagem cuidando de paciente adulto e família no processo de morte em sala de emergência. Cienc Cuid Saude [Internet]. 2011 [cited 2016 Sep 30]; 10(4): 650-57. Available from: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/CiencCuidSaude/article/view/18307/pdf
  12. Holland JM, Thompson KL, Rozalski V, Lichtenthal WG. Bereavement-related regret trajectories among widowed older adults. J Gerontol B Psychol Sci Soc Sci. 2014 Jan; 69(1): 40-7.
  13. Oliveira PP, Amaral JG, Viegas SMF, Rodrigues AB. The perception of death and dying of professionals working in a long-term care institution for the elderly. Cienc saúde coletiva [Internet]. 2013 [cited 2016 Sep 30]; 18(9): 2635-644. Available from: http://www.scielo.br/pdf/csc/v18n9/v18n9a18.pdf
  14. Lima MGR, Nietsche EA, Santos SC, Teixeira JA, Bottega JC, Nicola GDO, et al. Revisão integrativa: um retrato da morte e suas implicações no ensino acadêmico. Rev Gaúcha Enferm. 2012; 33(3):190-7.
  15. Silva JDD, Sales CA. From the imaginary to reality: the experience of bereaved parents. Rev. RENE [Internet]. 2012 [Cited 2016 May 6]; 13(5): 1142-151. Available from: http://www.revistarene.ufc.br/revista/index.php/revista/article/view/76/pdf
  16. Cervelin AF, Luce Kruse MH. Spirituality and religiosity in palliative care: proposing a good death. J Nurs UFPE on line [Internet]. 2015 Apr [cited 2016 Feb 29]; 9(Supl. 3):7615-24. Available from: file:///C:/Users/User/Downloads/6353-70801-1-PB.pdf
  17. Plaisance A, Witteman HO, Heyland DK, Ebell MH, Dupuis A, Lavoie-Bérard CA, et al. Development of a Decision Aid for Cardiopulmonary Resuscitation Involving Intensive Care Unit Patients' and Health Professionals' Participation Using User-Centered Design and a Wiki Platform for Rapid Prototyping: A Research Protocol. JMIR Res Protoc. 2016 Feb 11; 5(1): e24.
  18. Oliveira PP, Onofre PSC, Norberto PB. Death of the friends and family: experiences of elderly in long-term care institution. J Nurs UFPE on line [Internet]. 2012 Jan [Cited 2016 May 30]; 6(1): 104-12. Available from: http://www.revista.ufpe.br/revistaenfermagem/index.php/revista/article/view/2087/pdf_762
  19. Santos EC, Feijão AR, Menezes RMP. The care during terminal process in intensive therapy units. J Nurs UFPE on line [Internet]. 2014 [cited 2016 Feb 19]; 8(8): 2915-9. Available from: http://www.revista.ufpe.br/revistaenfermagem/index.php/revista/article/view/6654/pdf_5988

Todos os autores participaram das fases dessa publicação em uma ou mais etapas a seguir, de acordo com as recomendações do International Committe of Medical Journal Editors (ICMJE, 2013): (a) participação substancial na concepção ou confecção do manuscrito ou da coleta, análise ou interpretação dos dados; (b) elaboração do trabalho ou realização de revisão crítica do conteúdo intelectual; (c) aprovação da versão submetida. Todos os autores declaram para os devidos fins que são de suas responsabilidades o conteúdo relacionado a todos os aspectos do manuscrito submetido ao OBJN. Garantem que as questões relacionadas com a exatidão ou integridade de qualquer parte do artigo foram devidamente investigadas e resolvidas. Eximindo, portanto o OBJN de qualquer participação solidária em eventuais imbróglios sobre a matéria em apreço. Todos os autores declaram que não possuem conflito de interesses, seja de ordem financeira ou de relacionamento, que influencie a redação e/ou interpretação dos achados. Essa declaração foi assinada digitalmente por todos os autores conforme recomendação do ICMJE, cujo modelo está disponível em http://www.objnursing.uff.br/normas/DUDE_final_13-06-2013.pdf