ARTIGOS ORIGINAIS

Crianças dependentes de tecnologia, um desafio na educação em saúde: estudo descritivo


Muriel Fernanda de Lima1, Jorseli Angela Henriques Coimbra2, Bruna Caroline Rodrigues2, Bruno Maschio Neto2, Roberta Tognollo Borotta Uema2, Ieda Harumi Higarashi2

1Universidade Estadual do Paraná
2Universidade Estadual de Maringá

RESUMO

Objetivo: verificar de que forma a equipe de saúde da Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP) promove a capacitação de cuidadores familiares de Crianças Dependentes de Tecnologia (CDT); identificar os fatores que interferem na assistência familiar à CDT no ambiente da UTIP e no domicilio; e verificar o sistema de apoio de saúde oferecido no cuidado domiciliar aos cuidadores. Método: estudo qualitativo-descritivo realizado com 14 cuidadores familiares de CDT. Utilizou-se a Análise de Conteúdo Temática como estratégia de análise e o Interacionismo Simbólico como referencial teórico. Resultados: dentre os inúmeros fatores que influenciam o cuidado da CDT, destacam-se a deficiência no suporte das cuidadoras, a desinformação e desconhecimento relacionados ao cuidado complexo e um sistema de apoio desarticulado e quase inexistente. Conclusão: foram constatadas lacunas no cenário de cuidado à CDT, especialmente no processo de educação em saúde das cuidadoras e no seguimento e acompanhamento por parte dos serviços públicos.

Descritores: Assistência Domiciliar; Cuidado da Criança; Cuidados de Enfermagem; Doença Crônica; Família.


INTRODUÇÃO

As inovações tecnológicas e os avanços nas políticas públicas de saúde possibilitaram mudanças no perfil epidemiológico brasileiro, aumentando a expectativa de vida de crianças com doenças crônicas e de casos anteriormente condenados à morte. Os sobreviventes, muitas vezes, necessitam de dispositivos médico-hospitalares para manutenção de suas atividades vitais, sendo denominados Crianças Dependentes de Tecnologia (CDT)(1).

As CDT possuem a saúde debilitada e necessitam de atenção continua. Dentre os dispositivos tecnológicos mais utilizados para compensação da perda de uma função vital em pediatria, estão os ventiladores mecânicos, nutrição parenteral, traqueostomia, gastrostomia e diálise peritoneal(2).

Estudo realizado nos Estados Unidos estima que de 15% a 20% das crianças entre zero e 17 anos sobrevivem com alguma necessidade especial de saúde(3).

No Brasil não existem registros sobre a prevalência e caracterização de CDT, somente registros isolados em algumas localidades como Rio de Janeiro e Santa Maria, dificultando a inferência de um número absoluto desses casos(4-5). A escassez de dados epidemiológicos constitui um desafio aos profissionais de saúde, dificultando o planejamento e implementação de estratégias direcionadas a esta clientela e seus cuidadores(6-7).

As CDT são, habitualmente, submetidas a longos e recorrentes períodos de internação em Unidades de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP). A alta hospitalar constitui um processo com significado caótico para os familiares, já que o cuidado domiciliar requer conhecimentos específicos(6) nem sempre trabalhados no âmbito da internação. A família passa a assumir o papel de cuidador, ou seja, da pessoa que atrai para si a incumbência de atender as demandas de cuidado da CDT,(6) sem que, para isto, tenha sido devidamente preparada.

Apesar das mudanças ocorridas no cenário nacional em relação à capacitação de cuidadores para o ambiente domiciliar, as ofertas de serviços e programas de saúde pública, como o Programa Melhor em Casa (PMC) e Programa de Assistência Domiciliar Interdisciplinar (PADI), ainda são muito restritas.

Frente ao exposto, o estudo teve como objetivos: verificar de que forma a equipe de saúde da Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP) promove a capacitação de cuidadores familiares de Crianças Dependentes de Tecnologia (CDT); identificar os fatores que interferem na assistência familiar à CDT nos ambientes hospitalar e domiciliar; e verificar o sistema de apoio de saúde oferecido no cuidado domiciliar aos cuidadores.

MÉTODO

Buscando contemplar o cuidador familiar da CDT como sujeito que vivencia o cuidado à criança, fez-se necessário recorrer a uma teoria que possibilitasse adentrar ao universo empírico desse cuidador, desvelando-o a partir das interações simbólicas nele contidas, o Interacionismo Simbólico(8). Os registros foram gravados com o auxílio de um gravador digital e cada entrevista teve, em média, 40 minutos; também foram realizadas anotações em campo, utilizadas como fontes de informações. Posteriormente, as informações foram transcritas na íntegra e analisadas, com base na Análise de Conteúdo de Bardin.9 Segundo a autora, trata-se de uma estratégia analítica que consiste num agrupamento de técnicas que organizam-se em torno de três polos cronológicos: pré-análise; exploração do material; tratamento, inferência e interpretação dos resultados.

A pré-análise compõe a fase de organização dos dados coletados. Nesta, os pesquisadores realizaram a leitura criteriosa do material, a fim de operacionalizar e sistematizar os dados. Ao todo foram realizadas três leituras do material coletado. Na primeira leitura, também chamada de “flutuante”, procurou-se conhecer e analisar o texto. Nesta oportunidade, os autores tiveram a primeira impressão do conteúdo expresso nas falas. Utilizou-se o auxílio de canetas marca texto coloridas, a fim de identificar na redação temas ou unidades, que foram posteriormente reagrupadas conforme uma unidade de codificação para origem das unidades temáticas. A codificação é um processo no qual os dados brutos são agregados em unidades, as quais permitem uma descrição exata das características do conteúdo. Em seguida, realizou-se outra leitura para revisar as unidades grifadas, a fim de garantir a correta identificação dos aspectos essenciais do discurso. Na terceira leitura, as informações foram organizadas levando em consideração os objetivos da pesquisa, realizando-se a codificação dos dados(9).

Na exploração das informações, realizou-se a categorização, ou seja, organização dos dados. Nesta etapa, os pesquisadores realizaram associações, que, posteriormente analisadas, permitiram a leitura analítica e realização de inferências, resultando em uma categoria e três subcategorias temáticas, quais sejam, respectivamente: significados da vivência de cuidadoras familiares de CDT com o ambiente hospitalar; significados atribuídos à UTIP; significados do processo de qualificação para o cuidado complexo; e assumindo o cuidado complexo.

A abordagem simbológica teve como intuito buscar subsídios que conduzissem à identificação do significado de assumir o cuidado de uma CDT, bem como os desafios encontrados na aprendizagem e execução do cuidado domiciliar.

Trabalhar sob a ótica do Interacionismo Simbólico permite reflexões do comportamento humano baseado em significados e o desvelar do mundo empírico dos cuidadores em diferentes contextos de sua vivência.

O estudo foi realizado tendo como ponto de partida a UTIP de um Hospital de Ensino situado na região noroeste do Paraná. Participaram 14 cuidadoras familiares de CDT incluídas no estudo por ocasião da internação das crianças. A coleta de dados foi realizada por uma única pesquisadora, no segundo semestre de 2013.

As entrevistas foram agendadas e ocorreram em dois momentos distintos: o primeiro no decorrer da internação, em uma sala reservada na UTIP e o segundo, no domicílio, no período aproximado de uma semana após a alta hospitalar das CDT. Os dados foram coletados por meio de entrevista com a aplicação de um roteiro semiestruturado, constituído de questões referentes à caracterização dos sujeitos, 18 questões norteadoras para entrevista em ambiente hospitalar e 16 questões norteadoras para entrevista no domicílio. O roteiro de entrevista semiestruturado foi elaborado pelos autores e aplicado previamente a um grupo de cinco cuidadoras, não inclusas no estudo, para testagem de sua eficácia.

Os critérios de inclusão foram: ser cuidador familiar preferencial da CDT internada na UTIP no período vigente da pesquisa, ter idade igual ou superior a 18 anos e CDT com idade compatível ao conceito de criança segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, ou seja, a pessoa que tem 12 anos incompletos(10). O critério único de exclusão teve caráter ético-metodológico, e consistiu na impossibilidade ou recusa em participar no estudo.

O desenvolvimento do estudo atendeu às exigências formais contidas nas normas regulamentadoras de ética em pesquisa envolvendo seres humanos(11) e teve aprovação do Comitê Permanente de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Estadual de Maringá (COPEP), sob o parecer nº 131.658.

RESULTADOS

Dos 14 cuidadores entrevistados, todos eram do sexo feminino, 13 eram mães das CDT e uma, avó materna, duas estavam com idade entre 20 e 29 anos, cinco entre 30 e 39 anos, quatro entre 40 e 49 anos e três entre 50 e 59 anos de idade. Sete (50%) cuidadoras eram casadas, três (21%) referiram ter um relacionamento estável e quatro (29%) eram divorciadas.

Oito participantes (57%) não possuíam vínculo empregatício, indicando dedicação integral ao cuidado da CDT e atividades do lar. A renda familiar de nove cuidadoras (64%) era entre um e três salários mínimos, quatro (29%) referenciaram entre três e cinco salários mínimos e uma (7%) não soube referir a renda mensal da família. A escolaridade variou desde a ausência de instrução, referida por duas cuidadoras (14%), ensino fundamental incompleto com sete indicações (50%) e ensino médio completo referenciado por cinco (36%) entrevistadas.

A totalidade das crianças apresentava idade entre cinco meses e sete anos. Os diagnósticos encontrados relacionados à causa da dependência tecnológica foram: síndromes de origem genética, como Werdnig Hoffman e síndrome de West, insuficiência respiratória, cardiopatias, hidrocefalia, microcefalia, atresia de esôfago, laringomalácia e toxoplasmose congênita. Todas as crianças possuíam mais de um diagnóstico e, dentre as dependências tecnológicas encontradas, destacaram-se: traqueostomia, gastrostomia, uso de ventilador mecânico, sondagens enterais e vesicais.

A utilização do sistema público de saúde foi relatada por todas as famílias, no entanto, algumas recorreram ao sistema privado em alguma fase da evolução clínica da criança.

Ao adentrarmos no mundo empírico da cuidadora, nos deparamos com informações que expressam o significado da vivência durante o período de internação e após a alta hospitalar do ente querido:

Significados da vivência de cuidadoras familiares de CDT com o ambiente hospitalar

Significados atribuídos à UTIP: Ao se deparar com um ambiente de cuidados complexos, num primeiro momento, as cuidadoras manifestaram reações motivadas por sentimentos como sofrimento, choque e desespero.

Eu levei um choque com tudo aquilo, ver ele sofrendo e depois ser intubado(e7).

Quando o médico me disse que ela ia pra UTI eu entrei em desespero, achei que ela tava morrendo(e12).

A internação em uma UTIP significa um acontecimento marcado por significados negativos que remetem à ideia de morte.

Eu fiquei bem assustada no começo, com medo de perder ela mais cedo. E tinha medo de ficar aqui na UTI, mas o doutor falou que eu tinha que ficar(e3). Quando falavam de UTI, eu pensava numa pessoa à beira da morte(e5)

O significado atribuído à estadia da CDT em uma unidade complexa, aliada ao tratamento de uma doença crônica prolongada, remete à instalação de um quadro de fragilidade emocional das cuidadoras. O medo e insegurança são favorecidos pelo próprio ambiente, ou seja, pela ideia comum que caracteriza uma UTIP, marcada pelo uso de aparelhos, pelo isolamento do mundo externo e pelo contato constante com outras crianças em estado grave.

Porque eu não sabia como era uma UTI, só tinha visto na televisão, aquele monte de remédio e um monte de aparelho e todos quase morrendo. Então eu fiquei com muito medo(e1).

Verificou-se que as cuidadoras se apropriaram inicialmente do conhecimento transmitido pelo senso comum acerca do significado de UTI, até o momento em que adentram de fato nesta realidade, resignificando-a a partir de sua vivência. Não obstante esta ressignificação, a falta de um conhecimento acurado sobre a patologia e a terapêutica instituída, acrescida pelo estresse causado pela internação, contribuem para a instalação de alterações de ordem psíquica e emocional e temores quanto à possibilidade de danos irreversíveis, como a morte da CDT.

Significados do processo de qualificação para o cuidado complexo: frente ao aprendizado do cuidado complexo, as participantes apresentaram variadas reações. Dentre os significados emergidos das falas e que dizem respeito ao processo de instrumentalização, destacam-se o preparo deficitário, a insegurança, a negação no exercício do cuidado e o medo do não saber fazer.

Quando foi na possibilidade de alta eles começaram a me orientar. Levei um susto, do nada falaram que eu tinha que aprender. Eu não queria que isso fosse verdade(e2).

Eu ainda não me sinto segura de fazer sozinha (aspiração), tenho medo de machucar tudo por dentro(e5).

As dificuldades no processo de qualificação incluíram, por vezes, a falta de disponibilidade dos profissionais da UTIP para o exercício de atividades de ensino e orientação. Outro aspecto apontado se referiu ao período tardio em que esta atividade educativa/informativa se processa, usualmente por ocasião ou em período muito próximo à alta hospitalar.

Eu tenho que aprender sozinha, a enfermeira nunca tá disponível pra vir me ensinar (e7).

Fugi o tempo inteiro, só fui cair na real quando o médico falou que ia dar alta e em casa era eu que ia mexer na gastro(e8).

Em contrapartida, verificou-se também a presença de uma postura diferenciada por parte de uma das cuidadoras em relação à aprendizagem do cuidado complexo, significada por esta uma responsabilidade inerente ao seu papel de mãe, e não algo exterior a ela.

sempre ficam reclamando da falta de funcionários e a gente não pode deixar tudo nas costas das enfermeiras, aqui também tem outras crianças e outras mães que precisam aprender a cuidar dos filhos(e2).

Assumindo o cuidado complexo: no tangente ao período posterior à alta hospitalar, as dificuldades relatadas pelas cuidadoras se referiram, novamente, à insegurança na execução do cuidado complexo, e ainda sem a supervisão de uma equipe especializada, como a disponibilizada durante o período de internação.

Eu sei que não posso ter medo e nem insegurança. Lá no hospital eu fiz tudo certinho, mas se desse algo errado tinha médico(e3).

As dificuldades se avolumavam principalmente diante da necessidade de realizar procedimentos como a aspiração de vias aéreas e a manipulação de sondas e drenos. O medo, a ansiedade diante da possibilidade de falha na execução do procedimento e a sensação de despreparo constituíram-se em significados negativos prevalentes no discurso das cuidadoras.

Eu aspiro, mas quando vejo que ela fica roxa eu paro. Parece que eu tô matando ela (e3).

Eles falavam, só que eu não prestava muita atenção, porque lá é uma coisa, e aqui na minha casa é diferente: não tenho todos os aparelhos de uma UTI(e7).

Aqui eu faço do jeito que posso, não tenho como saber se tá certo(e12).

Foram também relatadas dificuldades estruturais, que se constituíam em barreiras à efetiva implementação do cuidado. Nos discursos, asseveram-se dificuldades na aquisição de insumos necessários à continuidade da realização do cuidado.

Me informaram que a secretaria de saúde deveria disponibilizar um aspirador. Fui lá, eles não tinham nem pra emprestar. Fui na promotoria, também falaram que ia demorar, e não tinha um tempo exato. Em dezembro eu fui no Pinga Fogo (programa da TV e rádio local), consegui no mesmo dia(e3).

Tenho que conseguir os aparelhos, quer dizer, o aspirador só(e5).

Tal contexto é agravado, segundo as cuidadoras, pelo fato destas desconhecerem onde ou em que instância da rede pública de saúde encontrar apoio para o cuidado domiciliar. Foi também mencionada a falta de apoio de instituições que compõe a rede básica de saúde (Estratégia Saúde da Família), avaliada pelas entrevistadas como uma rede ausente em relação à assistência domiciliar; e utilizada exclusivamente para a aquisição de materiais necessários à realização do cuidado complexo.

O pessoal do posto veio aí esses dias pra ver o que ele usava de material(e11).

Eu só acho assim, que o Posto não tá muito interessado. Eu sou a responsável por ela, se eu quiser ver ela bem, tenho que fazer tudo sozinha mesmo(e13).

DISCUSSÃO

O estudo evidenciou que a grande maioria das entrevistadas eram mães, replicando o resultado de pesquisas sobre cuidadores e elencando o cuidado como uma atividade de responsabilidade eminentemente feminina(12-13). Determinantes culturais relativas ao gênero continuam arraigando conceitos inerentes ao ato de cuidar.

Sob a ótica do Interacionismo Simbólico, seres humanos são vistos como atores sociais que comunicam-se por meio de símbolos, ou seja, como objetos sociais(14).

O significado do impacto gerado pelo ambiente hospitalar observado neste estudo confirma aspectos comportamentais encontrados na literatura sobre a temática. O medo é uma constante no processo de internação e aprendizagem com os cuidados ofertados à CDT. Ao sentirem-se ameaçadas, as cuidadoras ficam predispostas a significações de medo, insegurança, ansiedade e preocupação, podendo comprometer qualitativamente o aprendizado e a oferta do cuidado(15-16).

A situação vivenciada pelas cuidadoras na UTIP denuncia a deficiência de acessibilidade e acolhimento durante o processo educativo em saúde. Depreende-se da análise dos relatos que, para a efetividade da experiência assistencial com vistas ao preparo para o cuidado da CDT, o cuidador necessita desenvolver um sentimento de segurança, mesmo em um ambiente não-familiar como a UTIP, por meio da atenção e interação com o profissional e de um apoio adequado que considere a criança hospitalizada e sua família neste contexto(1).

Assim, e considerando que o cuidado a uma CDT constitui um fenômeno crítico na vida de quem o vivencia, é oportuno lembrar a importância da equipe de saúde no preparo técnico, conduzindo o acompanhante, enquanto potencial cuidador familiar, a participar efetivamente das ações que permeiam o cuidado já no ambiente hospitalar.

Os objetos e interações utilizados de modo intencional na interação social empregam a comunicação para representar algo aos outros. Nesta perspectiva, na interpretação dos símbolos, o receptor é o ator responsável por definir a situação e atuar em resposta à mesa de acordo com definições, seguindo a sua percepção(14).

Um estudo de revisão sobre cuidados às CDT mostrou que uma barreira na oferta do cuidado é a descrença de profissionais de saúde relacionada a esse tipo de cuidado(3).

Na visão dos profissionais, pode-se entender que a família não será suficientemente capaz de executar os cuidados em casa, fato que predispõe à diminuição de vínculos e desenvolvimento de segurança nos cuidadores familiares para aplicação das informações recebidas, tornando o processo mais desgastante.

Nesta pesquisa, a inserção das cuidadoras familiares na realidade da UTIP se restringe ao papel de meros acompanhantes, sendo a educação em saúde realizada de uma maneira superficial e tardia, como significam as cuidadoras que classificam o atendimento profissional recebido como aquém do esperado. É necessário um planejamento para a alta dessas crianças, visando o aprendizado do cuidador, que deve ser adquirido diariamente durante a internação.

No entanto, não se verificou uma culpabilização dos membros da equipe de saúde atuante por tal deficiência, atribuída essencialmente à problemas de ordem estrutural-organizacional e à escassez de funcionários, pois na unidade em questão há protocolo com vistas a educação em saúde propostos pela equipe.

Tais constatações laçam luz sobre o fazer profissional da categoria de enfermagem, tendo em vista que o processo educativo representa uma das mais importantes atribuições do enfermeiro e esse é o profissional que participa ativamente na implementação dos cuidados à CDT no âmbito de uma UTIP(17).

A comunicação está diretamente ligada à linguagem, seja ela verbal ou simbólica. O sucesso do processo educativo depende da comunicação adequada, conduzida de maneira individualizada junto a cada cuidador, de modo que as informações sejam realizadas em uma linguagem clara, possibilitando que este familiar seja agente do cuidado. No que tange ao relacionamento entre os profissionais de saúde e acompanhantes cuidadores, vale ressaltar que a educação em saúde para a alta hospitalar visa aumentar a autonomia destes, auxiliando-os na construção do conhecimento necessário ao cuidado, empoderando-os para o exercício do cuidado complexo(17).

O preparo para alta hospitalar deve ser iniciado a partir da admissão, já prevendo possíveis encaminhamentos e contato com as demais unidades de saúde necessárias à manutenção do cuidado no ambiente domiciliar(18).

À medida que os familiares experienciam o cuidado diário e vão desenvolvendo habilidades necessárias, as internações podem ser menos frequentes(19). Entretanto, muitos serviços transferem às famílias a responsabilidade do cuidado complexo, sem que haja uma sistemática e um planejamento adequado deste processo. Essa transferência constitui uma atitude potencialmente problemática por dois motivos: primeiro, porque a realidade das instituições hospitalares não dispõe de estrutura e recursos humanos necessários para acomodar e apoiar adequadamente este cuidador, encarando-o como mero acompanhante e não como sujeito do cuidado; segundo, porque os serviços que constituem a atenção básica de saúde carecem de uma reordenação de suas ações, em colaboração com as demais instituições ou instâncias assistenciais, com vistas à padronização de condutas, objetivando a real inclusão do cuidador informal no processo educativo assistencial.

Os desafios encontrados pelos cuidadores no cuidado domiciliar foram as mais variadas. A transferência do hospital para o domicílio resultou num anseio em “fazer correto” e contribuiu para a exteriorização de sentimentos relacionados à insegurança e à dificuldade de adaptação, agravados pela falta de apoio para a realização do cuidado domiciliar.

No estudo, a maioria dos cuidadores habitam o município no qual localiza-se a instituição hospitalar, com uma cobertura de 100% das Equipes de Saúde da Família. Apesar disso, a totalidade das entrevistadas referiu não receber visitas domiciliares, conforme preconizado pela Estratégia Saúde da Família. Os serviços da Unidade Básica de Saúde restringiram-se à dispensação de materiais inerentes ao cuidado.

Assim, apesar da existência de normativas para a criação de Serviços de Atenção Domiciliar no âmbito do Sistema Único de Saúde, regulamentada por meio da portaria n° 963 de maio de 2013,(20) conforme contato e consulta realizada junto à Secretaria Municipal de Saúde, confirmou-se que o município não dispõe de nenhuma Equipe de Atenção Domiciliar implantada e a tramitação encontra-se em processo de estudo.

Em contrapartida, existem iniciativas de criação de instituições de caráter não-governamentais, como evidenciado num estudo realizado no município de Ribeirão Preto, no qual existem oito destas instituições. As mesmas contam com o apoio de pacientes, profissionais de saúde, sociedade civil e doações de terceiros. Chama a atenção o fato de estas instituições ofertarem um serviço multiprofissional voltado ao acompanhamento de CDT(1).

Acredita-se que o acompanhamento contínuo dessas cuidadoras pode contribuir para a amenização do medo e insegurança no cuidado. Os resultados encontrados mostraram uma situação preocupante da condição de cuidado da CDT, indicando lacunas no processo de educação em saúde das cuidadoras e o seguimento e acompanhamento deficitários por parte dos serviços públicos.

CONCLUSÃO

Constatou-se que os principais desafios com os quais as cuidadoras familiares se defrontam na execução do cuidado complexo domiciliar são uma instrumentalização deficitária no âmbito da internação, resultando em significados de insegurança e medo, agravados pela falta de uma rede de apoio que contemple a família da CDT em seus anseios e necessidades. Não obstante os limites da investigação, posto tratar-se de um estudo qualitativo e, portanto, sem a pretensão de generalização de seus achados e conclusões, acredita-se sejam desejáveis outros estudos relacionados à investigação desta realidade crescente em nossa sociedade e voltados também ao aprofundamento da disposição das redes de apoio das famílias, pois, no presente estudo, os sujeitos não sabem onde procurar apoio. Ressalta-se também a necessidade de fortalecimento das redes de referência e contra-referência, a fim de diminuir as lacunas existentes entre atenção hospitalar e atenção básica. As contribuições do estudo se relacionam, principalmente, à abertura de um espaço para a reflexão acerca do papel educativo-assistencial dos profissionais de enfermagem, imprescindível neste cenário de atenção, e essencial ao processo de construção da autonomia familiar para o cuidado, como aspecto basilar para a qualidade de vida desta clientela.


REFERÊNCIAS

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