Prazer e sofrimento na formação de doutores em enfermagem: estudo descritivo

 

Maria José Quina Galdino1, Julia Trevisan Martins2

 

1 Universidade Estadual do Norte do Paraná

2 Universidade Estadual de Londrina

 

 

 

RESUMO

Objetivo: desvelar as situações de prazer e de sofrimento no processo de formação de doutores em enfermagem. Método: estudo descritivo, de abordagem qualitativa, cujos dados foram coletados com 16 doutorandos de Programas de Pós-Graduação em Enfermagem de universidades públicas do Sul do Brasil. Utilizou-se a análise de conteúdo para organização dos dados e a Psicodinâmica do Trabalho como referencial teórico. Resultados: o prazer foi relacionado ao aprimoramento científico, ao doutorado-sanduíche e aos relacionamentos interpessoais, sobretudo com o orientador. O sofrimento ocorreu devido à produtividade acadêmica, ao relacionamento frustrante com o orientador, a sobrecarga oriunda de conciliar doutorado, trabalho e vida pessoal, e as despesas relativas ao curso. Conclusão: o processo de formação de doutores foi permeado pela dialética de sentimentos de prazer e sofrimento.

Descritores: Emoções; Estudantes de Enfermagem; Educação de Pós-Graduação em Enfermagem.

 

 

INTRODUÇÃO

O doutorado é um curso de pós-graduação que constitui-se no mais importante dos graus acadêmicos, cujo objetivo é preparar profissionais para a docência e a pesquisa, com vistas à continuidade do desenvolvimento científico-tecnológico em todas as áreas de conhecimento. Assim, as universidades têm aumentado a oferta de vagas para o treinamento em pesquisa para formar talentos internacionais(1).

No campo da enfermagem, além destas funções tem apresentado-se como uma forma de consolidar a profissão como ciência, fundamental ao aperfeiçoamento da assistência prestada às pessoas, visto que, por meio de investigações pode-se produzir fortes evidências científicas(2). Assim, acredita-se que os Programas de Pós-Graduação em Enfermagem (PPGEnf) estão cada vez mais empenhados em atingir tais objetivos e galgar padrões de excelência equivalentes aos programas internacionais de referência.

Dessa forma, os doutorandos são inseridos em numerosas atividades com prazos e metas previamente estabelecidos, entre elas: cursar disciplinas para integralização de créditos, que fornecem fundamentação epistemo-metodológica para o desenvolvimento de pesquisas; inserir-se em atividades de ensino, sob a supervisão do orientador, como ministrar aulas, orientar estudantes de iniciação científica e trabalho de conclusão de curso; realizar estágio doutoral no exterior; produzir sua própria pesquisa, que implica resumidamente em construir o “estado da arte” da temática em estudo –denotanto extensas leituras compreensivas da produção científica relacionada–, coleta de dados, elaboração dos resultados e sua interpretação, que requer aptidão com os métodos de análise de dados qualitativos e/ou quantitativos; apresentar estudos em eventos científicos, sobretudo internacionais; e produzir artigos para periódicos científicos bem qualificados e de alto fator de impacto(3-5). Soma-se a isso, a multiplicidade de papéis desempenhados por estes estudantes, evidenciados pela manutenção do vínculo laboral e as responsabilidades da vida particular, podendo levar ao desgaste, sofrimento e adoecimento físico e mental(3,5).

Ressalta-se que essas atividades simultâneas se configuram como uma “sombra” que acompanha diuturnamente os doutorandos, para que consigam realizar as atividades nos prazos previstos com qualidade e excelência(6).

Assim sendo, pode-se considerar que o processo de formação do doutor é envolto por perspectivas e desafios, exigindo dos estudantes resiliência e determinação, o que pode provocar sentimentos de sofrimento, insatisfação, tristeza, dentre outros. Por outro lado, esse processo pode ser permeado por sentimentos de prazer, realização e abertura para novos conhecimentos. Entretanto, para que as vivências de prazer aconteçam os doutorandos precisam utilizar estratégias individuais e/ou coletivas para superar esses obstáculos.

Embora os estudantes não sejam formalmente considerados trabalhadores, na perspectiva psicológica, os seus afazeres acontecem em uma estrutura organizacional com atividades obrigatórias, o que possui similaridade com o labor(7). Assim, neste estudo foram utilizados os pressupostos da Psicodinâmica do Trabalho para compreender as situações de prazer e sofrimento que permeiam o processo de formação doutoral, e a atividade intelectual desenvolvida pelos doutorandos foi considerada como sinônimo de trabalho.

Segundo a Psicodinâmica do Trabalho “um trabalho intelectual pode se revelar mais patogênico que um trabalho manual(8:31). Todavia, este adoecimento é precedido pelo sofrimento, que acontece quando há incompatibilidade entre as expectativas da pessoa e as exigências da organização laboral, emergindo conflitos relacionados à finalidade do trabalho e ao conteúdo significativo da tarefa. Nem todo sofrimento é patogênico, pois há o sofrimento criativo, que se transforma em prazer e desenvolvimento pessoal. Os sentimentos de prazer ocorrem quando há espaços para que os indivíduos possam desenvolver suas potencialidades e expressar a sua subjetividade e criatividade, relacionacionando-se fortemente à valorização e ao reconhecimento no trabalho(8).

Frente a essas considerações e as vivências das autoras, enquanto estudante e docente de PPGEnf, em que observou-se situações que propiciavam insatisfação, desgaste e sofrimento, bem como satisfação e prazer aos doutorandos é que houve o despertar para este estudo. Os achados oriundos desta investigação poderão contribuir com a proposição de ações que busquem um processo de ensino-aprendizagem o mais prazeroso possível, e, por consequência, criar um ambiente que promova a saúde física, mental e social destes indivíduos.

Diante do exposto, teve-se como questão de pesquisa: Quais as situações de prazer e sofrimento que permeiam o processo de formação de doutores em enfermagem? Para responder a esta indagação traçou-se como objetivo deste estudo desvelar as situações de prazer e de sofrimento no processo de formação de doutores em enfermagem.

 

MÉTODO

Estudo descritivo, de abordagem qualitativa, pautado no referencial teórico da Psicodinâmica do Trabalho(8). A pesquisa qualitativa busca aprofundar a compreensão do fenômeno a ser investigado, destacando os processos subjetivos vivenciados pelas pessoas(9).

A investigação foi realizada com pós-graduandos de dois cursos de doutorado em enfermagem pertencentes a duas universidades públicas da Região Sul do Brasil. Adotou-se como critérios de elegibilidade: ser estudante regularmente matriculado no doutorado, no ano de 2015, e ter concluído todos os créditos referentes às disciplinas teóricas, a fim de incluir apenas estudantes que estão vivenciado a atividade de produção de suas teses.

Para identificar os possíveis participantes de pesquisa foi realizado um levantamento junto às Coordenações dos PPGEnf em estudo, que forneceram listas com 50 estudantes, destes, 24 doutorandos atendiam aos critérios de elegibilidade, sendo 12 de cada universidade.

Para propiciar oportunidades de participação análogas aos estudantes, procedeu-se um sorteio manual de 10 estudantes de cada um dos cursos, totalizando 20 possíveis participantes. Contudo, para definir o número de participantes adotou-se o critério de convergência dos dados(9), o que neste estudo ocorreu com 16 doutorandos, sendo oito de cada programa.

A coleta de dados foi realizada entre junho e setembro de 2015, mediante o autopreenchimento de um formulário composto de duas partes, sendo a primeira referente à caracterização sociodemográfica (sexo, idade e estado civil) e ocupacional dos participantes, e para alcançar o objeto do estudo, foi utilizada a seguinte questão norteadora: Que situações de prazer e sofrimento você vivencia em seu processo de formação enquanto estudante de doutorado em enfermagem?

As informações obtidas na coleta de dados foram analisadas pela técnica de análise de conteúdo temática, na qual buscou-se identificar os núcleos de sentido, ou seja, a presença de expressões relativas ao objeto analítico a ser investigado. Desta forma, o processo de análise dos dados foi realizado seguindo três fases distintas: na pré-análise procedeu-se a leitura flutuante com organização do corpus, considerando os princípios de exaustividade, representatividade, homogeneidade e adequação, bem como houve a formulação dos pressupostos; na segunda etapa, realizou-se a exploração do material, com a finalidade de alcançar o núcleo de compreensão dos dados e classificar as categorias que representam as características que surgiram, bem como realizou-se os recortes e a escolha das unidades de registro, com seleção e codificação diante da convergência com o fenômeno; na terceira e última fase ocorreu o tratamento e interpretação dos resultados(9), voltando-se ao referencial teórico da Psicodinâmica do Trabalho, em que foram estabelecidas duas pré-categorias: situações de prazer e situações de sofrimento no processo de formação de doutores(8).

O desenvolvimento deste estudo respeitou as exigências das normas nacionais e internacionais preconizadas para pesquisas envolvendo seres humanos, incluindo aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa local, conforme Parecer n.º 798.093.

 

RESULTADOS

Em relação aos dados sociodemográficos a idade variou entre 26 anos e 61 anos, com média de 36 anos. A maioria dos participantes pertencia ao sexo feminino (n=12) e eram casados (n=10). Quanto à ocupação, cinco possuíam dedicação exclusiva e recebiam bolsa de estudos, e 10 com vínculo laboral, sendo seis enfermeiros da assistência e quatro docentes.

A análise dos dados permitiu identificar as situações de prazer e de sofrimento presentes no processo de formação dos doutorandos, conforme as categorias temáticas apresentadas a seguir:

 

Situações de prazer no processo de formação de doutores Para os doutorandos as situações de prazer estiveram relacionadas a diversos aspectos presentes no processo de formação.

Os participantes indicaram que o prazer relacionou-se ao fato do doutorado abrir possibilidades para novos conhecimentos, aprofundamento na pesquisa, bem como poder repassar o que aprendeu para as suas práticas laborais cotidianas, o que foi identificado nos seguintes fragmentos:

Eu estou muito feliz, pois tem sido uma oportunidade de aprender muito sobre pesquisa, de troca de experiência com outros colegas e depois levar o que aprendi para o meu local de trabalho e para minha vida pessoal. (D6)

O mestrado me deu uma boa base de pesquisa, mas o aprofundamento que eu estou tendo no doutorado é incomparável. O meu desempenho é outro [...] atualmente eu leio um projeto de pesquisa ou vejo a apresentação de um colega no seminário de pesquisa e sei identificar se título, pergunta de pesquisa e objetivos estão coerentes, se a justificativa é relevante. [...] Estou dominando melhor os programas estatísticos e a interpretação das análises, [...] e também aperfeiçoei muito a minha escrita. Sem dúvidas, isso é o que me dá mais prazer, ver que estou progredindo e amadurecendo. (D7)

O doutorado propicia uma visão mais crítica e apurada, [...] à medida que leio bons artigos sobre o meu tema, me apaixono mais por ele e vão surgindo outras ideias de pesquisa [...] isso me motiva, me instiga, me sinto desafiada [...]. Então, essa será mesmo minha linha de pesquisa depois de finalizado o doutorado! (D12)

Ser doutoranda neste programa possui diversos aspectos positivos que me proporcionam prazer. [...] O desenvolvimento da competência profissional no âmbito da pesquisa, os laços de amizade construídos, as confraternizações dos grupos de pesquisa e as reuniões de estudos que são produtivas e, muitas vezes, desafiadoras. (D15)

 

O prazer também foi relacionado à realização do estágio doutoral no exterior, evidenciado como oportunidade de desenvolvimento profissional e acadêmico, e de parcerias internacionais para futuras pesquisas, o que foi desvelado na expressão:

No último ano, fiz o doutorado sanduíche na Espanha, na companhia do meu marido e do meu filho [...]. Foi uma experiência ímpar e enriquecedora, que me deu muito prazer e satisfação. [...] pude vivenciar a cultura de outro país e o mais importante é que eu aprimorei meus conhecimentos na pesquisa. Agora me sinto um passo à frente, com a visão mais ampliada, quando comparado àqueles que não tiveram a mesma oportunidade. [...] Também fiz parceria com os doutorandos de lá para futuras pesquisas e fui convidada pela tutora para ser parecerista da revista [periódico] que pertence à escola deles. (D11)

 

Ainda, os participantes sentem-se satisfeitos devido ao incentivo do corpo docente e ressaltaram a importância de o professor compreender cada aluno em sua singularidade:

Meu maior prazer é quando percebo que o professor me compreende e respeita o meu tempo de aprendizado e dos meus colegas, [...] a “coisa” flui com naturalidade, mesmo quando se tem prazo para cumprir. (D1)

Ninguém é igual e quando o professor compreende isso me deixa muito feliz e seguro [...]. Há professores especiais, que me incentivam diante das dificuldades, o que é muito significativo para mim. (D4)

Os encontros com o meu orientador são muito prazerosos, pois ele transmite muito conhecimento e conduz as coisas com tranquilidade, o que me deixa confiante. Sempre me encoraja dizendo que tudo vai dar certo e que eu sou capaz. [...] É uma relação tão boa e de tanto respeito que só pode mesmo colaborar com minha formação. Quando for orientador pretendo replicar com meus alunos essa postura. (D7)

 

Situações de sofrimento no processo de formação de doutores Nesta categoria as situações de sofrimento ocorreram em diversas situações durante o processo de formação. Evidenciou-se que ser doutorando provoca sentimentos de sofrimento devido às altas exigências relacionadas à produção científica, fruto das disciplinas teóricas e da pesquisa da tese, conforme denotou-se a seguir:

Praticamente toda disciplina tinha como critério de avaliação a produção de um artigo científico. [...] [elas] aconteciam em um curto período e não havia tempo hábil para elaborar um artigo consistente. [...] se diminui a complexidade na construção das reflexões teóricas e revisões de literatura, mas para se fazer bem feito requer domínio do método e tempo para a análise e escrita. [...] Isso me causou sofrimento, porque eu tive que produzir algo sem o conhecimento necessário. No final saiu um artigo bom e os demais aqueles artigos “fraquinhos”, revisões sem nexo, sem chance de publicar. [...] Isso foi desnecessário, desgastante e desmotivador. (D5)

Durmo e acordo pensando nos artigos da minha tese, [...] é muita pressão para que eu submeta e publique esses artigos. Na verdade, somos tratados como “máquinas” de escrever artigos. Sei que isso é fruto de um sistema maior, e por isso acredito que o tempo destinado para finalização de uma pesquisa de doutorado com tantas exigências de publicação e pontuação propostas pela CAPES, é insano! Essa pressão afeta a nossa saúde e dos nossos orientadores [...] pois está baseada em grandes centros de pesquisa, como os europeus e norte-americanos, como se no Brasil houvessem o mesmo investimento e estrutura. [é necessário] rever o gasto humano neste tipo de trabalho de pesquisador-professor. (D8)

Os doutorandos indicaram que o sofrimento também surgiu diante das dificuldades do relacionamento interpessoal com os orientadores, conforme depreendeu-se das expressões:

[...] muito sofrimento, insatisfação, desgaste e ansiedade eu tenho no relacionamento com meu orientador. Ele marca e desmarca os encontros, e quando acontece eu levo o que consegui produzir, mas é difícil uma palavra carinhosa e de incentivo. Sei que as vezes está ruim, mas foi o que consegui fazer, porque estou ali para aprender e há jeitos e jeitos de ensinar. [...] O relacionamento é uma conquista, mas essa eu ainda não consegui. (D13)

Eu defini o que iria pesquisar no final do ano passado, ou seja, após dois anos de doutorado [...], nada do que eu propunha estava bom [...], mas todos os contatos eram por e-mail, nada presencial, me sentia meio abandonada pelo meu orientador. [...] esse ano do nada ele “ressuscitou” querendo tudo definido, para qualificar, passar no comitê, coletar e defender em três anos e meio no máximo. [...] tem dias que me bate um desespero, não sei se vou dar conta. (D9)

 

As numerosas atividades desempenhadas pelos doutorados em seu cotidiano foram mencionadas como fonte de sofrimento e adoecimento físico e mental, conforme foi desvelado nos seguintes fragmentos:

Ser doutorando significa trabalhar em casa, com horário para começar as atividades, mas não para terminá-las. [...] sempre tenho a sensação de que faço tantas coisas, e ao mesmo tempo, parece que não faço quase nada! Não consigo me dedicar à tese por estar envolvida com tantas outras atividades, entre elas, correções de resumos para eventos, relatórios, artigos científicos, coleta de dados, organização do grupo de pesquisa. Outra coisa que desmotiva é não ser reconhecida por desenvolver apenas atividades acadêmicas – não ter um emprego; receber críticas por não desenvolver a prática profissional diretamente (devido a dedicação exclusiva). É ruim ouvir comentários como ”“você só estuda?, como se fosse pouca coisa o que fazemos em um curso de doutorado! (D11)

Sobre o sofrimento?! Só sabe quem vive! Os aspectos negativos são tantos, tenho a responsabilidade de orientar alunos de iniciação científica, as longas viagens semanais, a demanda intensa de atividades, a cobrança do programa para publicação, o ambiente de competitividade entre docentes e discentes que gera um ambiente ’‘denso, entre outros fatores que repercutem em estresse, desgaste físico, emocional, fadiga e taquicardia. [...] Estar doutoranda também é aprender diariamente a gerenciar o seu próprio conflito interior, aprender a dosar a autocobrança e o estresse, e também a se permitir errar, pois isso também faz parte do aprendizado. E, em meio essas reflexões, é claro que já tive a ideia ”“não brilhante de desistir deste percurso, mas logo a vontade passa, ou melhor, tem que passar. Afinal, estar doutoranda inclui diferentes aprendizados e também aquele de abdicar do valor maior de sua vida: sua família, pois logo você não estará mais doutoranda. (D3)

Não estou conseguindo realizar todas as minhas atividades do doutorado e fico bem ansiosa por isso, acabo por descontar na comida todas as minhas insatisfações e dificuldades e engordei 18 quilos nesse processo. (D14)

A minha coleta de dados está me tirando o sono, são muitas etapas bem complexas. [...] ultimamente estou bem irritada e na última semana tive uma crise hipertensiva após discutir com a minha orientadora.

 

Para alguns participantes a sobrecarga também relaciona-se à situação de conciliar o doutorado com o trabalho e as atividades de sua vida pessoal, o que gera sentimentos de sofrimento conforme identificou-se a seguir:

Tenho sofrido muito devido à sobrecarga de atividades, pois eu trabalho, curso doutorado e ainda sou mãe, esposa e dona de casa. (D2)

Às vezes me sinto ansioso e esgotado, devido a minha rotina diária entre trabalho e pós-graduação, pois na instituição que trabalho o colaborador que busca e se dedica nos estudos e pesquisa é desvalorizado. Esta é a minha maior dificuldade atualmente: manter-me estudando, pois não tenho qualquer dispensa ou redução da minha jornada semanal de trabalho. [...] Me sinto frustrado, pois eu poderia render muito mais na área acadêmica se tivesse apoio da instituição em que trabalho. Se pudesse deixava o trabalho, mas preciso me sustentar financeiramente. (D8)

 

Ainda foi indicado pelos doutorandos que os custos relacionados com o curso de doutorado e os poucos recursos recebidos pelos programas provocam sofrimento, visto que, além dos seus gastos pessoais, têm que arcar com despesas relativas ao curso, conforme demostra-se a seguir:

Eu tenho sofrido demais com os gastos do doutorado que são muitos e não se tem verba para nada. Tive que arcar com todas as despesas da minha coleta, fora o que estou gastando com artigos: revisão de português, tradução, taxa de submissão e quando aceita tem a taxa de publicação. Sinceramente isso tem me levado à insônia, porque eu sustento minha casa e agora estou tendo que economizar muito nas despesas da minha casa, e lazer então, nem existe mais. (D3)

 

DISCUSSÃO

Na perspectiva da psicodinâmica do trabalho, os sentimentos de prazer são de ordem subjetiva e dependentes da cultura em que a pessoa está inserida, mas de maneira geral permeia o alcance de objetivos, das relações e das realizações. Tais vivências ocorrem quando dentro da organização permite-se que o indivíduo tenha certo grau de autonomia, reconhecimento e liberdade de pensamento, elementos que favorecem o desenvolvimento de laços cognitivos com a atividade ocupacional(8,10).

As situações de prazer vivenciadas pelos doutorandos em seu processo de formação estiveram relacionadas ao aprimoramento de conhecimentos, competências e habilidades nas esferas profissional e acadêmica. Nesse sentido, o doutoramento objetiva capacitar os pós-graduandos para que se tornem pesquisadores independentes, a fim de contribuir na geração de conhecimento e na melhoria da prática por meio da pesquisa(1,4). Contudo, é esperado que estes alunos apresentem diferentes níveis de habilidades de escrita e de domínio das ferramentas tecnológicas de apoio à pesquisa, que podem aperfeiçoadas durante o período de formação(4,11).

O sentimento de prazer percebido pelos participantes também vinculou-se às diversas relações propiciadas pelo ambiente acadêmico, entre elas os laços amistosos e de cooperação estabelecidos com os pares, que por estarem vivenciando situações semelhantes se ajudam mutuamente no enfrentamento das dificuldades individuais e coletivas(12). Dejours postula que na prática laboral, a cooperação e a solidariedade, carregam consigo a figura da outra pessoa para além do simples conviver, implicando em cuidar, interagir, confrontar, aprender e servir, permitindo que os sentimentos de prazer aflorem e tornem o ambiente mais humano e produtivo(8,10).

O estágio doutoral no exterior foi evidenciado como fonte de prazer por ter oportunizado ao doutorando a vivência de outro processo de trabalho acadêmico. O doutorado-sanduíche é incentivado e fomentado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), destacando-se como ação de internacionalização dos PPGEnf, que proporciona visibilidade aos programas nacionais e possibilita parcerias com pesquisadores de outros países(2). Embora essa experiência apresente desafios como a fluência no idioma, os custos extras, a adaptação à outra cultura e a burocracia do processo, neste estudo foi citado apenas como fonte de prazer e desenvolvimento profissional e pessoal.

O prazer também foi verificado na relação orientador-orientando, sobretudo quando nas orientações prevalece o diálogo de ensino-aprendizagem, em que o professor faz o papel de direcionador e mediador do conhecimento, estimulando o pós-graduando a explorar suas potencialidades, e ajudando-o em suas dificuldades. Ademais tornou-se relevante a percepção do orientador a respeito da personalidade do estudante, a escuta ativa e a empatia, pois cada indivíduo é singular e precisa de um tempo para assimilar e realizar tarefas das quais não tem domínio, com amparo na assertiva de que o processo de aprendizagem não é estanque.

De forma semelhante, o relacionamento torna-se gratificante quando os orientadores são acessíveis e demonstram compreensão das circunstâncias desafiadoras e únicas vividas pelos estudantes, sendo que quando o pós-graduando experimenta períodos de estagnação em sua pesquisa, as atitudes acolhedoras e de incentivo do orientador são essenciais para o progresso acadêmico, e impedir o distanciamento do estudo e que este seja visto como uma fonte de sofrimento(13).

Cabe enfatizar que este relacionamento prazeroso certamente contribuirá para que as pesquisas sejam desenvolvidas com mais entusiasmo e dedicação, fazendo com que o estudante torne-se um pesquisador efetivo após o doutorado, com uma linha de pesquisa definida.

Entretanto, como em qualquer relacionamento interpessoal, podem haver pensamentos e opiniões divergentes e, por consequência, os desacordos são passíveis de acontecer e gerar sentimentos de sofrimento no orientando e no orientador. Estes conflitos podem ocorrer devido a uma dissonância entre as expectativas de ambos, na qual os orientadores esperam que os doutorandos sejam autossuficientes e diante de sua sobrecarga docente, por ter numerosas atividades e orientandos, acabam por estabelecer uma relação indiferente, sem o apoio e o feedback que os alunos esperam, gerando sentimentos de frustração. As relações verticalizadas de poder firmadas entre orientador-orientando também merecem destaque quando geram excessivo controle hierárquico e culminam em episódios de assédio moral, emergindo conflitos relacionados ao conteúdo significativo da tarefa e sentimentos de sofrimento(10,14-15).

As vivências de sofrimento acontecem de um descompasso, isto é, do encontro de uma pessoa que possui uma trajetória singular e individual com uma organização laboral rígida, inflexível e que muitas vezes, limita a subjetividade da pessoa e prescreve um modo operatório específico(8).

Nesse sentido, as situações que levam ao estresse e ao sofrimento de pós-graduandos devem ser evitadas ao máximo, pois o descontentamento e desencorajamento podem levar a evasão ou a interrupção de sua carreira acadêmica. Ademais, é preciso transcender o mito de que o aprendizado só acontece quando o processo de formação é envolto por um percurso de grande sofrimento(6).

O produtivismo acadêmico configurou-se como fonte de sofrimento dos estudantes, que também afeta orientadores e coordenadores dos PPGEnf. Nos últimos decênios, em nível mundial, os pesquisadores têm vivenciado o dilema “publicar ou perecer”, que caracteriza-se por um modelo produtivista fortemente influenciado pelo paradigma de produção capitalista, em que o indivíduo é visto como mera mão de obra(5,16). Para Dejours(17:34) esses princípios de organização do trabalho conferem consequências positivas e negativas: “de um lado, o crescimento extraordinário da produtividade [...], de outro, a erosão do lugar acordado à subjetividade e à vida no trabalho. Disto resulta um agravamento das patologias mentais decorrentes do trabalho em crescimento em todo o mundo ocidental, o surgimento de novas patologias [...], a agravação das patologias da sobrecarga e a explosão de patologias do assédio”.

Desse modo, o desempenho com base na produtividade, na universidade neoliberal é visualizado como uma tendência anti-intelectual, com potencial prejudicial à saúde dos envolvidos e à qualidade do ensino, à medida que estimula os acadêmicos para ensinar mais alunos, obter mais subsídios e publicar mais artigos(6,18).

Sobre o impacto do produtivismo na qualidade da produção científica ressaltam-se consequências nefastas, como: artigos com métodos pífios e pouco inovadores; a prática do ”“salami science, ou seja, a fragmentação de uma única descoberta para publicar o maior número possível de artigos científicos; incentivo à autocitação e ao autoplágio; a precarização do trabalho na pós-graduação e nos valores da próxima geração de professores-pesquisadores, pois muitos docentes pressionados a produzir terceirizam a tarefa para seus estudantes, e conforme relatado neste estudo, o estudante sem adquirir o saber necessário é impelido a escrever artigos(18-20).

Tais premissas somadas àquelas numerosas atividades que os participantes deste estudo relataram como integrantes de seu cotidiano indicam um ritmo intenso e acelerado, em que pode haver inadequação entre o processo de trabalho presente (ou real) e a organização do trabalho ideal (ou prescrito), gerando sobrecarga e potencializando as vivências de sofrimento(8,10).

A sobrecarga e o ritmo laboral intenso levam ao acúmulo da energia psíquica, que produzem desgaste físico e mental, e por sua vez, disparam o processo de somatização e adoecimento mental e comportamental(10).

Contudo, o ritmo de vida extenuante e a sobrecarga não podem ser limitados ao processo de formação, mas deve-se considerar os múltiplos papéis do doutorando, que aludem a vivência de uma tripla jornada representada por estudo, trabalho e vida pessoal (família), pois não há como separar as esferas “dentro da universidade” e “fora da universidade”, pois o psiquismo não pode ser dividido(17).

Como muitos doutorandos são estudantes em tempo parcial, a combinação do estudo com suas outras responsabilidades deve ser criteriosamente planejada, para que sua vida não seja reduzida ao doutorado e trabalho, incluindo nesta rotina o lazer e o descanso, fundamentais ao bem-estar e qualidade de vida(20).

A preocupação com os custos financeiros dispendidos no doutorado está entre as principais situações geradoras de estresse entre os pós-graduandos, que ocorre tanto devido à escassez de bolsas e seus baixos valores, bem como à insuficiência de recursos financeiros disponibilizados para pesquisa pelas agências de fomento, em que a disputa é acirrada, levando o pesquisador, muitas vezes, a arcar com todos os custos(6,13).

Enfatiza-se que as atividades ocupacionais nunca são neutras no âmbito da saúde do indivíduo, a articulação dinâmica dos sentimentos de prazer e sofrimento pode ser equilibrante ou resultar na desestabilização, fragilização e provocar adoecimento físico, mental e social(8). Assim, para que torne fonte de saúde deve-se reconhecer as pessoas, com a finalidade significar o sofrimento vivenciado, transformando-o em prazer, desenvolvimento pessoal, construção de sua própria identidade e autorrealização.

 

CONCLUSÃO

O processo de formação de doutores foi permeado por situações que propiciaram os sentimentos de prazer, visto que, tiveram a possibilidade crescimento pessoal, acadêmico e profissional, por meio da aquisição de novos conhecimentos e das relações interpessoais estabelecidas durante a formação. Entretanto, este processo também foi envolto por situações que provocaram sentimentos de sofrimento nos doutorandos, que estão relacionados com as altas exigências para produção científica, as dificuldades de relacionamento com os orientadores, os múltiplos papéis desempenhados pelo estudante e os custos relativos ao doutorado.

Embora o objetivo desta pesquisa tenha sido atingido é preciso considerar os resultados em sua particularidade, visto que, foi desenvolvido em apenas dois cursos de doutorado e investigar sentimentos envolve a singularidade e subjetividade dos participantes.

Sugere-se que sejam desenvolvidas investigações com os docentes desses programas, pois eles podem estar vivenciando situações de prazer e sofrimento no seu processo de trabalho que podem influenciar suas condições de vida e saúde.

 

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Recebido: 25/09/2016

Revisado: 22/11/2019

Aprovado: 22/11/2019