Objetivo: analisar a associação entre o uso de álcool e a co-ocorrência de violência entre parceiros íntimos em uma amostra de usuárias da Estratégia Saúde da Família de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro. Métodos: foi realizado estudo seccional a partir de uma amostra de 476 mulheres com idade entre 25 e 64 anos e com parceiros íntimos há pelo menos um ano. Os instrumentos utilizados foram validados e adaptados transculturamente para uso brasileiro. Resultados: observaram-se associações estatisticamente significantes entre o uso de álcool pela mulher e a co-ocorrência de violência íntima (OR:4,2), incluindo as formas psicológica (OR:4,6), física (OR:2,7) e sexual (OR:2,2). Conclusão: os resultados chamam atenção para a possível relação entre o uso de álcool e a violência entre parceiros íntimos. Implicações práticas: o rastreamento sistematizado de uso de álcool pode ser utilizado como importante marcador na suspeição de casos de violência na saúde da família, ampliando as possibilidades de atuação das equipes.
Descritores: Consumo de Bebidas Alcoólicas; Violência; Violência Doméstica; Violência Contra a Mulher; Atenção Primária à Saúde.
Analisar a associação entre o uso de álcool e a co-ocorrência de violência entre parceiros íntimos em uma amostra de usuárias da Estratégia Saúde da Família de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro.
Trata-se de um estudo observacional do tipo seccional, desenvolvido a partir do grupo de controles da pesquisa intitulada “Barreiras no acesso do rastreio do câncer do colo uterino: um estudo sobre as relações da violência íntima e do uso abusivo de álcool em usuárias da Saúde da Família” que utilizou um desenho metodológico do tipo caso-controle em quatro unidades de saúde da família da área central do município de Nova Iguaçu.
A população-fonte compreendeu o conjunto de mulheres entre 25 e 64 anos de idade, com parceiros íntimos há mais de um ano e residentes nas áreas de cobertura das equipes de saúde da família, perfazendo a investigação das 476 usuárias do grupo controle do estudo-base. A estratégia amostral utilizada foi a de captação por oportunidade a partir do acesso das mulheres elegíveis às unidades de saúde. A coleta de dados ocorreu no período de novembro de 2012 a julho de 2013, utilizando técnica de entrevista face a face, aplicada por quatro profissionais de enfermagem do sexo feminino.
Foi utilizado um questionário estruturado e multidimensional para a coleta de dados. A primeira dimensão se debruçou nas características sociodemográficas e econômicas, utilizando os critérios da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisas(1). Para avaliação da ocorrência de violência íntima física e psicológica (variáveis dependentes) e do uso de álcool (variável independente de interesse), as dimensões seguintes utilizaram, respectivamente, os instrumentos Revised Conflict Tactics Scales (CTS2) e TWEAK (Tolerance, Worried, Eye-opener, Amnesia and K/C Cut down), ambos validados e adaptados transculturalmente para uso brasileiro.
Considerou-se como caso positivo quando ao menos um item de cada subescala apresentou positividade durante a entrevista. O consumo abusivo de álcool foi considerado na presença de dois ou mais pontos na escala de aferição. A co-ocorrência de violência foi considerada quando houve relato de vivência simultânea de conflitos pelos parceiros.
Foi realizado o cálculo das prevalências e dos intervalos de confiança a 95,0%, utilizando o software Stata SE 13 como suporte. Para as análises bivariadas - como o cálculo dos Odds Ratio (OR) -, foi utilizado o teste Exato de Fisher, considerando relação estatisticamente significante quando o resultado foi inferior a 0,05. Também foi realizado o ajustamento dos OR por meio de regressão logística não condicional, utilizando as variáveis independentes que apresentaram p-valores ≤ 0,25 na análise bivariada. Essa medida visou garantir a entrada da maior quantidade de fatores possivelmente confundidores no modelo de ajustamento. Destaca-se, também, que foi garantida a entrada forçada no modelo quando uma variável com relação já estabelecida pela literatura não apresentou significância estatística. Nesse último caso, os p-valores foram calculados por meio do Teste de Razão de Verossimilhança.
Visando atender aos preceitos éticos de estudos com seres humanos, a pesquisa foi submetida e aprovada em Comitê de Ética sob o número 01724512.6.0000.5259, contando também com a utilização de Termos de Consentimento Livre e Esclarecido para todas as respondentes.
A prevalência de co-ocorrência de violência entre parceiros íntimos foi identificada em 89,7% (n=427; IC95%:86,6/92,1) da amostra estudada, sendo 13,0% do tipo física (n=62; IC95%:10,3/16,4), 89,1% (n=424; IC95%:85,9/91,6) do tipopsicológica e 12,6% do tipo sexual (n=60; IC95%:9,9/15,9). A tabela 1 apresenta a análise univariada das variáveis dependentes e a caracterização sociodemográfica da amostra estudada. A magnitude do consumo abusivo de álcool pelas usuárias, identificada na presença de dois ou mais pontos na escala de aferição, foi de 21,0% em uma amostra predominantemente de mulheres com mais de 40 anos de idade, pretas ou pardas, casadas, com menos de oito anos de estudo e pertencentes à classe econômica C.
A tabela 2 apresenta os resultados da análise bivariada entre as variáveis dependentes, independentes e de controle (características sociodemográficas e econômicas). O consumo abusivo de álcool pela mulher associou-se, de modo estatisticamente significante, a todos os desfechos testados. A faixa etária e a escolaridade também foram variáveis que apresentaram relações significativas.
Legenda:
A tabela 3 apresenta o ajustamento, por técnica de regressão logística, dos OR entre as variáveis independentes e os desfechos. Não foi observada relação estatisticamente significante para as relações entre as violências e o uso de álcool pelo parceiro. Também não foram observadas interações na regressão logística condicional.
Legenda:
-OR ajustado pelas variáveis idade e escolaridade
--OR ajustado pelas variáveis estado civil e classe econômica
---OR ajustado pela variável estado civil
Os resultados para a associação entre o consumo abusivo de álcool pela mulher e a violência entre parceiros íntimos, principalmente na forma de co-ocorrência (OR 4,2), corroboramos achados de pesquisas realizadas no Brasil (aproximadamente OR 3,0) e no exterior (OR variando entre 1,2 e 1,8)(2,3). O debate sobre essas relações não é novo, como verificado em estudo recente no Brasil, sobretudo quando o consumo abusivo de álcool está vinculado ao parceiro (P=38,1%)(4). Entretanto, o cenário da Estratégia Saúde da Família ainda merece ser privilegiado nas investigações, conforme abordado neste trabalho.
A aparente dificuldade de detectar os casos de violência íntima, por serem velados na maior parte das vezes, pode ser parcialmente enfrentada pela adoção de programas de rastreamento sistematizados do uso de álcool e de outras características de risco das usuárias dos serviços, como sugere um inquérito populacional realizado com mais de 34 mil participantes(5). Considerando a facilidade na aproximação entre as mulheres e os profissionais da Saúde da Família, acredita-se que a identificação do uso e do abuso de álcool pode ser um importante marcador na suspeição dos casos de violência íntima, favorecendo, sobremaneira, as intervenções da instituição . Enfim, esta droga dispõe de uma maior aceitação na sociedade, o que facilita a abordagem durante as atividades das equipes.
A tipificação da ocorrência de violências demonstrou forte associação entre o uso de álcool e as formas psicológica, física e sexual, acompanhando os resultados de estudo realizado com mais 10 mil adultos-jovens nos Estados Unidos da América (EUA)(6). Um trabalho realizado com 105 mulheres em Rhode Island (EUA) demonstrou que, do mesmo modo, o consumo de substâncias pelas mulheres – álcool e outras drogas – favoreceu a bidirecionalidade das violências, especialmente na perpetração (OR: 10,6) e na vitimização (OR 6,0) de violência física. Entretanto, não foram identificadas relações com a coerção sexual ou psicológica(7).
O álcool afeta funções físicas e cognitivas envolvidas na regulação do autocontrole dos sujeitos e, por isso, pode disparar gatilhos – sentimentos e práticas – que dificultem a negociação frente aos conflitos conjugais, propiciando um conjunto de fatores motivadores dos eventos violentos(8). O sentimento de raiva, que pode ser desencadeado por diversos motivos inerentes às relações interpessoais, inclusive os cotidianos, conjugado com o consumo de álcool – especialmente de modo abusivo –, também tem sido relatado como um importante fator de risco para os atos de violência(9).
Parece haver bidirecionalidade entre esses agravos, já que os sentimentos negativos, em combinação com o álcool, podem imputar riscos ao casal. Por outro, alguns autores revelam: a própria vivência de situações de violência pode ser aspecto motivador para o uso de álcool e de outras drogas(10). Esse cenário estimula a reflexão sobre a necessidade de estratégias que, efetivamente, rompam o aparente ciclo estabelecido nessas relações. A abordagem territorial e a pluralidade de olhares dos atores, comum nas equipes da Estratégia Saúde da Família, podem facilitar a efetivação dessas ações. Portanto, acredita-se que maiores investimentos nos quais se trabalhe o manejo destes casos são urgentes e necessários no âmbito da Atenção Primária à Saúde.
Mesmo com as limitações dos estudos seccionais – que avaliam a exposição e o desfecho simultaneamente –, os resultados apontam para uma possível relação entre o uso de álcool pela mulher e a ocorrência de violência entre parceiros íntimos, evidenciada pela a magnitude da associação com as formas psicológica, física e sexual.
O rastreamento e a detecção do uso de álcool pelas usuárias dos serviços de saúde da família podem ser utilizados como importantes marcadores na suspeição de casos de violência íntima, e isso deve ser um fato amplamente investigado durante os atendimentos individuais e coletivos da equipe multiprofissional.
Todos os autores participaram das fases dessa publicação em uma ou mais etapas a seguir, de acordo com as recomendações do International Committe of Medical Journal Editors (ICMJE, 2013): (a) participação substancial na concepção ou confecção do manuscrito ou da coleta, análise ou interpretação dos dados; (b) elaboração do trabalho ou realização de revisão crítica do conteúdo intelectual; (c) aprovação da versão submetida. Todos os autores declaram para os devidos fins que são de suas responsabilidades o conteúdo relacionado a todos os aspectos do manuscrito submetido ao OBJN. Garantem que as questões relacionadas com a exatidão ou integridade de qualquer parte do artigo foram devidamente investigadas e resolvidas. Eximindo, portanto o OBJN de qualquer participação solidária em eventuais imbróglios sobre a materia em apreço. Todos os autores declaram que não possuem conflito de interesses, seja de ordem financeira ou de relacionamento, que influencie a redação e/ou interpretação dos achados. Essa declaração foi assinada digitalmente por todos os autores conforme recomendação do ICMJE, cujo modelo está disponível em http://www.objnursing.uff.br/normas/DUDE_final_13-06-2013.pdf
Recebido: 24/07/2016 Revisado: 26/10/2016 Aprovado: 26/10/2016