Nurses’ competencies in primary health care: a Delphy technique study.

Competências da enfermeira na rede básica: referencial para atenção à saúde

Competencias de la enfermera en los cuidados primarios: referencial para la atención a la salud

Regina Rigatto Witt*,  Maria Cecília Puntel de Almeida**, Vivian Araújo*

*Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS, Brasil, ** Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil.

 ABSTRACT. An investigation on nurses´ primary health care practice was developed to identify and analyze nurses’ general and specific competencies at the Brazilian Health System. This quantitative-qualitative research adopted the Delphi Technique as a method of study. Two groups of participants were selected. Fifty-two nurses and fifty-seven specialists accepted to participate in the study. Questionnaires were developed for data collection, including a Likert scale. A 75 percentage was adopted as a consensus criterion for scores 4 or 5 of this scale. Results showed 17 general and 8 specific competencies for the nursing group and 19 general and 9 specific competencies for the specialist group. These competencies were classified into ten areas of domain. This paper presents and discusses health care competencies found in this investigation.

Descriptors: public health nursing, professional competence, primary health care.

RESUMO. Realizamos uma investigação sobre o trabalho da Enfermeira na atenção básica, tendo como objetivo identificar e analisar como as competências gerais e específicas requeridas da enfermeira, estão sendo construídas no Sistema Único de Saúde. Trata-se de uma pesquisa do tipo quantitativa-qualitativa, tendo a Técnica Delphi como método de investigação. Foram selecionados dois grupos de participantes. Aceitaram participar da pesquisa, 52 enfermeiras e 57 especialistas. Para a coleta de dados foram utilizados questionários, com inclusão de Escala de Likert. Como critério de consenso, adotamos o percentual de 75% para os escores 4 ou 5 desta escala. Obtivemos 17 competências gerais e 8 específicas no grupo de enfermeiras e 19 competências gerais e 9 específicas no de especialistas. As competências para as quais houve consenso foram submetidas a uma classificação, que resultou em dez áreas de domínio. Este artigo apresenta e discute as competências da área de domínio de atenção à saúde.

 Descritores: enfermagem em saúde pública, competência profissional, atenção primária à saúde.

RESUMÉN. Desarrollamos una investigación sobre el trabajo de la Enfermera en la atención primária de salud, con el objectivo de identificar y analisar como las competencias generales y específicas requeridas de la enfermera, están sendo construydas en el Sistema Único de Salud. En esta pesquisa qualitativa-quantitativa se adoptó la Técnica Delphi como método de investigación. Fueron seleccionados dos grupos de participantes. Aceptaron participar 52 enfermeras y 57 especialistas. La recopilación de datos fue realizada por medio de cuestionarios, con la inclusión de una escala Likert. Fue adoptado como criterio de consenso el porcentual de 75% para los escores 4 o 5 de esta escala. Como resultado, obtuvimos 17 competencias generales y 8 específicas en el grupo de enfermeras y 19 competencias generales y 9 específicas en el de especialistas. Estas competencias fueran clasificadas, en diez areas de domínio. Este artigo presenta y discute las competencias de atención a la salud encontradas en esta investigación.

 Palabras-claves: enfermería en salud pública, competencia profesional, atención primaria de salud.

 

INTRODUÇÃO

 A atenção à saúde pressupõe que os profissionais, dentro de seu âmbito profissional, devem estar aptos a desenvolver ações de prevenção, promoção, proteção e reabilitação da saúde, tanto em nível individual quanto coletivo.

Os profissionais de saúde devem assegurar que sua prática seja realizada de forma integral e contínua com as demais instâncias do sistema de saúde, sendo capaz de pensar criticamente, de analisar os problemas da sociedade e procurar soluções para os mesmos, tendo em conta que a responsabilidade da atenção à saúde não se encerra com o ato técnico, mas, sim, com a resolução do problema de saúde, tanto em nível individual como coletivo (1).

Como competência da enfermeira, espera-se que atue profissionalmente, compreendendo a natureza humana em suas dimensões físicas e sociais, em suas expressões culturais, emocionais e culturais e fases evolutivas e que promova cuidados de enfermagem compatíveis com as diferentes necessidades apresentadas pelo indivíduo, pela família e pelos diferentes grupos da comunidade, atuando nos programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente, da mulher, do adulto e do idoso (1).

As competências dos profissionais de saúde fazem parte de um conjunto de iniciativas (2-4) que buscam dar resposta às necessidades dos serviços para a resolução dos problemas de saúde, tendo em vista as transformações estruturais ocorridas nesse setor e no mundo do trabalho devido, sobretudo, aos processos de globalização e integração econômica e às mudanças nos paradigmas em saúde pública, cujo âmbito de ação ampliou-se para incorporar, com ênfase, as dimensões internacional e local de saúde segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) (5).

A competência, ou habilidade de prestar serviços profissionais específicos, quando utilizada na prática, na educação e na regulação, pode ajudar a definir o papel da enfermagem e fornecer evidência do cuidado prestado (6).   Nesse contexto, aprofundar e clarificar o campo de conhecimento da enfermagem foram identificados, pela OPAS (7), como necessidades, tendo em vista o planejamento dos serviços de enfermagem ser essencial para o alcance da eqüidade, do acesso, da qualidade e da sustentabilidade dos serviços de saúde.

A enfermagem tem contribuído historicamente com o desenvolvimento da atenção primária (7). A produção científica da enfermagem no Brasil nas duas últimas décadas apresenta uma preocupação em definir a especificidade do seu trabalho junto à equipe multiprofissional, articulando saberes interdisciplinares e transdisciplinares. As enfermeiras têm buscado modificar sua prática, a fim de avançar no atendimento integral de saúde. No entanto, têm encontrado dificuldades na determinação de suas competências, no trabalho em equipe multiprofissional e na indefinição da programação da assistência à saúde em nível local.

Desenvolvemos uma investigação sobre o trabalho da enfermeira na atenção básica em saúde, tendo como questão central a especificidade desse trabalho e como objetivo identificar e analisar as competências gerais e específicas requeridas da enfermeira, para atuação na saúde pública, tendo como suporte o trabalho realizado na rede básica de saúde.

MÉTODOS

Para a realização deste estudo, optamos por utilizar a Técnica Delphi. Ela tem sido definida como um método que possibilita a um grupo de indivíduos lidar com um problema complexo a partir de um processo de comunicação grupal (8).

No presente estudo, a Técnica Delphi foi adaptada a fim de possibilitar a apreensão das competências a partir do trabalho, ou seja, para que as competências pudessem ser explicitadas pelas trabalhadoras de enfermagem dos grupos de enfermeiras e de especialistas.

A seleção dos participantes considerou a característica dessa Técnica, ou seja, o respeito e a valorização da experiência e do conhecimento de cada um dos participantes (9). Foram selecionados intencionalmente dois grupos, um de enfermeiras e outro que denominamos de especialistas.

Para participar do primeiro grupo foram convidadas enfermeiras que trabalham na rede municipal de saúde de Porto Alegre, na atenção básica: nos ambulatórios básicos, em centros de saúde, nas unidades de saúde próprias, nas Equipes de Saúde da Família, no Serviço de Saúde Comunitária Conceição e no Centro de Saúde-Escola Murialdo, totalizando 271 enfermeiras. Destas foram selecionadas aquelas com tempo de trabalho de no mínimo dois anos, ou seja, 131 enfermeiras.

Para o segundo grupo, foram convidadas enfermeiras que ocupam cargos nas Secretarias Estadual e Municipal de Saúde, em número de 37 e enfermeiras-docentes de todas as Escolas de Enfermagem do Estado do Rio Grande do Sul da área de enfermagem em saúde pública/comunitária/coletiva, em número de 107, totalizando 144 especialistas.

Aceitaram participar da pesquisa 109 enfermeiras, 54 no grupo de enfermeiras e 57 no de especialistas, destas últimas 13 em cargos administrativos e 44 docentes.

O projeto foi apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto. Os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido foram assinados pelas enfermeiras participantes de acordo com a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Durante o processo de coleta de dados, o anonimato das participantes foi garantido por meio de um código anotado em uma ficha de identificação, manuseada somente pela pesquisadora e mantida separada dos instrumentos, para evitar a identificação dos respondentes.

A coleta de dados foi realizada por meio de três questionários. O primeiro deles teve o objetivo de gerar listas de competências gerais e específicas. O segundo questionário constou de duas listas para cada grupo, uma, de competências gerais e outra, de competências específicas, compiladas das respostas obtidas com o primeiro questionário, retirando-se as repetidas. Com essas listagens, foram elaborados dois instrumentos: um para o grupo de enfermeiras e outro, para o grupo de especialistas. A estas listagens, foi adicionada uma escala de Likert com escores de 1 (discordo muito) a 5 (concordo muito), para obter o grau de concordância dos participantes com as competências listadas por cada grupo.

O último questionário conteve uma análise das competências para as quais não houve consenso na segunda etapa, com a média obtida para cada competência listada e o escore individual apresentado no questionário anterior. A essa listagem foi adicionada uma escala de Likert com escores de 1 (discordo muito) a 5 (concordo muito) pontos.

Utilizamos uma abordagem de análise quantitativa-qualitativa. A análise quantitativa dos dados visou estabelecer consenso entre os respondentes, tendo sido adotado como critério de consenso, o percentual de 75% para os escores 4 ou 5.

Para a padronização dos enunciados, adotamos um formato consistente com um verbo e um substantivo e buscamos contemplar os critérios preconizados pela OMS (6) para uso internacional ou nacional.

Na análise qualitativa, foram discutidos os motivos pelos quais essas competências são necessárias para o trabalho da enfermeira na atenção básica, conforme justificativa indicada pelas participantes na primeira fase da pesquisa frente ao percurso da enfermagem na implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), aos preceitos da atenção primária, aos conteúdos da atenção básica e aos enunciados de competências existentes na literatura.

Estas justificativas serão apresentadas, acompanhadas dos códigos utilizados para os sujeitos, ou seja, TE para as enfermeiras, IE para docentes das Instituições de Ensino Superior do Estado do Rio Grande do Sul, adicionado de uma letra para cada instituição e EC para enfermeiras em cargos na Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre.

As competências para as quais houve consenso nos dois grupos foram submetidas a uma classificação, elaborada a partir de quatro referenciais (1-2,10-11), que resultou em dez áreas de domínio (12). Este artigo apresenta os resultados da análise qualitativa das competências da área de domínio de atenção à saúde.

RESULTADOS 

Obtiveram consenso na área de domínio de atenção à saúde quatro competências, duas gerais e duas específicas, sendo que apenas para uma competência geral o consenso foi obtido nos dois grupos, conforme apresentado no quadro a seguir:

3.1 Realiza atendimento integral dentro dos princípios do Sistema Único de Saúde

 A concepção ampliada de saúde exige dos serviços das instituições de saúde e dos profissionais que assumam novas possibilidades e responsabilidades no que diz respeito à produção da saúde (12). Conforme a legislação do exercício profissional, a enfermeira, como integrante da equipe de saúde, participa nos programas e nas atividades de assistência integral à saúde individual e de grupos específicos, particularmente daqueles prioritários e de alto risco (13). Na atenção básica, o atendimento integral é uma atribuição da enfermeira no Programa de Saúde da Família, que prevê o desenvolvimento de ações de assistência integral em todas as fases do ciclo de vida (14).

A integralidade, entendida como a articulação das atividades de prestação de cuidados de enfermagem voltados para a proteção e promoção da vida da coletividade, e de prestação de cuidados individuais que contribuam para a recuperação de pessoas doentes, no espaço onde se insere a unidade de saúde (15), compreende a ligação das diversas ações e das várias instituições de saúde e pressupõe o plano de equipe. A esse respeito, os dados coletados apontaram que a enfermeira ‘realiza atendimento integral dentro dos princípios do SUS’: 

 Compreender o ser humano inserido em micro e macro espaços ambientais, potenciais geradores das doenças, de modo a atendê-lo de forma preventiva, emotiva e reabilitadora” (IEC4). 

A integralidade, intimamente ligada à concepção de saúde e doença, define-se pela capacidade de oferecer ações de satisfação às varias demandas ligadas à promoção e recuperação da saúde (16)

representa o desafio de se superar o paradigma clínico de assistência à saúde por um outro modelo que considere a determinação social do trabalho no interior da equipe sanitária e inverta a relação com o paciente de forma a torná-lo sujeito ativo de sua condição sanitária (17:45). 

 No atendimento integral à saúde, a equipe de profissionais de saúde deve articular os seus saberes com os aspectos singulares dos pacientes. As enfermeiras encontram-se tipicamente no ponto de articulação, neste vaivém entre saber técnico e relação individualizada com o paciente: para elas, este é, ao mesmo tempo um tipo nosológico e uma pessoa (18).  

3.2 Demonstra capacidade de acolhimento e sensibilidade 

O acolhimento, como forma de organização do processo de trabalho em saúde, significa desenvolver na equipe a capacidade de solidarizar-se com as demandas do usuário, criando uma relação humanizada e uma referência para os pacientes que necessitam de cuidados individuais ou coletivos (16). Com esse entendimento, a enfermeira ‘demonstra capacidade de acolhimento e sensibilidade’: 

Um ponto essencial à efetivação do cuidado na enfermagem, dele decorrendo todo o relacionamento entre a enfermeira cuidadora e o sujeito cuidado, sendo que o exercício atento e consciente da sensibilidade da enfermeira cuidadora promove e facilita o desempenho do cuidado, voltado às particularidades de cada indivíduo assistido  (IEL2). 

As especialistas que participaram deste estudo indicaram o acolhimento como uma competência da enfermeira na atenção básica, sendo que as justificativas estão relacionadas a certos valores, que devem nortear a prática, e ao atendimento de determinados princípios do sistema de saúde: 

O acolhimento a todos os usuários do SUS atende o princípio da universalidade da atenção e qualifica e humaniza a assistência” (IEO2). 

A literatura internacional não relaciona o acolhimento como uma competência, porém, elementos do acolhimento podem ser encontrados nas competências construídas em outras realidades(3,22).

Um significado mais amplo para a noção de acolhida diz respeito à abertura dos serviços públicos para a demanda de novos e velhos pacientes ao atendimento, garantindo o acesso, assim como a capacidade de dar conta da variedade de necessidades trazidas pelos usuários (19)

As participantes especialistas justificaram que se trata de uma competência geral porque: 

É atribuição de todos os servidores, principalmente os da saúde acolher, escutar as demandas e buscar uma orientação e/ou solução à demanda recebida do usuário ou trabalhador (EC4). 

A enfermeira, além de acolher, garante a retaguarda do atendimento realizado pelas auxiliares de enfermagem, através de orientação sobre as condutas, e na utilização de protocolos que indicam os procedimentos a serem adotados diante das queixas mais comuns feitas à equipe de Acolhimento (20). As participantes deste estudo têm uma visão mais abrangente desse processo e vêem toda a equipe envolvida.

 Coordenar a equipe de acolhimento, atuar diretamente nela sempre que possível e capacitar pessoal dando retaguarda e fazendo o elo com a equipe médica na resolução dos problemas e tomada de decisão, quanto à prioridade e forma de atendimento  (EC22). 

No caso da enfermeira, a definição das condutas a serem adotadas no acolhimento é feita de acordo com a legislação própria, que regulamenta seu exercício profissional. O respaldo legal para o exercício das atividades da enfermeira encontra-se na Lei do Exercício Profissional de enfermagem, em vários artigos, sendo que cabe privativamente à enfermeira realizar a prescrição da assistência de enfermagem, bem como os cuidados de maior complexidade técnica e, como integrante da equipe de saúde, prescrever medicamentos estabelecidos em programas de saúde pública e em rotina aprovada pela instituição de saúde (21)

Acolher também foi considerada pelas especialistas uma competência necessária para o processo de trabalho na atenção básica, devido à sua característica de porta de entrada do sistema de saúde: 

 Fundamental para a afirmação da atenção básica como porta de entrada no sistema de saúde  (IEO2); 

Onde acontece o primeiro contato com o usuário e possibilita o estabelecimento do vínculo necessário para a realização das atividades em saúde coletiva  (EC15).  

Na unidade, como porta de entrada do sistema de saúde, o acolhimento modifica radicalmente o processo de trabalho. O impacto da reorganização do trabalho ocorre principalmente sobre os profissionais não médicos, que fazem à assistência e então passam a usar todo seu arsenal tecnológico, o conhecimento para a assistência, na escuta e solução de problemas de saúde, trazidos pela população usuária (21).

O acolhimento propõe inverter a lógica de organização e funcionamento do serviço de saúde, atendendo a todas as pessoas que o procuram, reorganizando o processo de trabalho, de forma que este desloque seu eixo central do médico para uma equipe multiprofissional – equipe de acolhimento -, que se encarrega da escuta do usuário, comprometendo-se a resolver seu problema de saúde e qualificando a relação trabalhador-usuário, que deve acontecer segundo parâmetros humanitários, de solidariedade e cidadania.   

3.3 Realiza consulta de enfermagem 

Ainda na área de domínio da atenção integral a saúde, ‘realiza a consulta de enfermagem’ obteve consenso nos dois grupos como competência específica. A consulta de enfermagem, que é uma atribuição da Enfermeira no PSF (14), não é citada na literatura internacional como uma competência. Nesse âmbito, encontramos competências com descrições do processo de atenção ao indivíduo, que podem ser comparadas à consulta de enfermagem (23).

          No Brasil, houve uma discussão polêmica na década de 1980 a respeito da consulta de enfermagem.  Questionava-se se a reivindicação das enfermeiras de obterem espaço nos serviços para a realização dessa atividade teria a finalidade de buscar o mesmo status atribuído ao médico ou se seria para aliviar a demanda médica.

Além disso, como atividade dirigida ao indivíduo, existe uma controvérsia internacional a respeito da sua inclusão nas atividades de saúde pública. O estudo Delphi, conduzido em 1997 com 145 experts em saúde pública de 67 países, não obteve consenso acerca da inclusão da atenção individual de pacientes, embora tenha se considerado que as funções de saúde pública usualmente descritas como sendo dirigidas a toda a população, em certas situações podem ser dirigidas a populações específicas, como migrantes e pobres (24)

A consulta de enfermagem, conforme a Lei do Exercício Profissional, é uma atividade privativa da enfermeira(20). Da mesma forma que as enfermeiras, as especialistas consideram a consulta de enfermagem uma competência especifica da enfermeira na atenção básica, relacionando os procedimentos para sua realização às fases do processo de enfermagem: 

A consulta de enfermagem é de competência da enfermeira e nela dever ser feito: histórico, diagnóstico, educação em saúde e tratamento, podendo este último ter o uso de medicamentos e/ou exames necessários e padronizados pelo protocolo de medicação e solicitação de exames para as enfermeiras protocolado pelo Ministério da Saúde, Estado, Município e/ou instituição na qual a mesma trabalhe (EC12). 

         A consulta de enfermagem, como competência da enfermeira na atenção básica, envolve a identificação e o atendimento de indivíduos em situação de vulnerabilidade e risco. Essa avaliação é responsável pelo ordenamento da sua oferta, seja no atendimento aos indivíduos em fases do ciclo vital, como também nos casos de doenças crônicas: 

Para promover qualidade de vida, planejamento familiar, prevenção de doenças e orientação física e alimentar para crianças, hipertensos, diabéticos, gestantes e mulheres em geral (TE56). 

A consulta de enfermagem, no entanto, como trabalho em ato, mobiliza saberes que não se encontram prescritos nos protocolos, nem são frutos de metodologias específicas, e tampouco estão previstos no processo de enfermagem. 

Se a enfermeira possui conhecimento e constante atualização, torna-se apta e sente-se segura para realizar sua maior competência específica, atendendo todos os usuários da rede  (EC6). 

A clínica refere-se a práticas não somente médicas, mas as de todas as profissões que lidam no dia-a-dia com diagnóstico, tratamento, reabilitação e prevenção secundária. No entanto, existe um enfoque desequilibrado para o lado biológico, esquecendo-se das dimensões subjetiva e social das pessoas. Aborda-se mais a doença do que o indivíduo, ficando em segundo plano as possibilidades de promoção da saúde, ou de prevenção e, até mesmo aquelas, de reabilitação (19).

A promoção da saúde foi considerada um recurso para a consulta de enfermagem, ao mesmo tempo em que encontra nesta, um espaço para a sua realização. 

Na atuação diária observo que a burocracia toma a maioria do tempo do enfermeiro. A consulta de enfermagem somada à promoção de saúde é importante (IEB3). 

         A competência da promoção da saúde, na literatura internacional, envolve a visão do indivíduo, família e comunidade de uma perspectiva holística, que leva em consideração os múltiplos determinantes da saúde (24). A necessidade de uma visão holística do individuo, que envolve a compreensão do contexto social na consulta de enfermagem, foi apresentada pelas enfermeiras: 

Pela percepção holística do ser humano e riqueza quanto às possibilidades de intervenção, a consulta de Enfermagem é básica em saúde coletiva. No meu trabalho, é uma ação muito procurada e valorizada pela comunidade  (TE70). 

A consulta de enfermagem, como ação de assistência direta à clientela, revela-se também sob a forma de ação educativa, com o significado de prevenção, quando as enfermeiras vêem nas ações educativas, a possibilidade de sua prática em saúde pública: 

Ministrar atenção e educação ao usuário na prevenção (TE120). 

Meio pelo qual você consegue ouvir e orientar os cuidados, de forma mais individualizada e incisiva  (TE16). 

Atividade-fim para promoção, proteção e restabelecimento da saúde  (IEQ3). 

A consulta de enfermagem como competência específica da enfermeira na atenção básica, foi justificada também pelas especialistas, como espaço de assistência de enfermagem ao indivíduo: 

A consulta de enfermagem é o procedimento que melhor representa a assistência de enfermagem individualizada  (IEO1). 

Em outros contextos, avaliar o estado de saúde e a habilidade funcional do cliente no contexto do seu ambiente e os apoios sociais disponíveis, desenvolver um plano com prioridades de cuidado, estabelecer uma relação terapêutica e integrar considerações culturais no plano de cuidados, implementar uma série de intervenções para manter, restaurar e/ou melhorar a saúde, incluindo a promoção da saúde, a prevenção da doença e estratégias clínicas diretas, facilitar a capacidade do cliente para o autocuidado e mobilizar a comunidade por recursos para o cliente são competências da enfermeira da saúde comunitária no Canadá (22).         

3.4. Presta cuidado domiciliar de enfermagem 

‘Presta cuidado domiciliar de enfermagem’ também obteve consenso como uma competência específica da enfermeira, pelas especialistas. O cuidado domiciliar, como competência da enfermeira na atenção básica, compreende uma série de procedimentos que, ao mesmo tempo em que são desempenhados, possibilitam a compreensão do contexto de vida dos usuários dos serviços de saúde: 

 Os procedimentos de maior complexidade de enfermagem para diminuir a necessidade de internação, visando a autonomização do cidadão  (EC7). 

  É necessário dominar a técnica de visita domiciliar, fazê-la sempre que o caso requerer a presença do enfermeiro e capacitar a equipe de enfermagem na técnica  (EC22). 

Como instrumento de trabalho da enfermeira na atenção básica, o cuidado domiciliar possibilita articular a atenção à saúde a essas condições e facilita o acesso aos serviços de saúde. Constitui-se em um espaço para a promoção da saúde e, no atendimento da necessidade de realização de procedimentos, interfere no tempo de internação hospitalar. é uma ação que deve ser desempenhada pela enfermeira no Programa de Saúde da Família e no Programa de Agentes Comunitários de Saúde, no acompanhamento dos agentes (14)

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Tendo em vista a contribuição da enfermagem para o trabalho em saúde pública e seu foco específico de atuação e, sendo que as enfermeiras preenchem papéis-chave em saúde pública, esperamos que as competências construídas nesta investigação contribuam para a construção de referenciais que atendam as necessidades de formação, regulação e da prática, e que viabilizem o desenvolvimento de atitudes críticas e reflexivas, como instrumentos para praticar a interdisciplinaridade na saúde e elementos potencializadores da emancipação dos trabalhadores.

Estas competências, ao tentar promover a emancipação do trabalhador e do usuário, também contribuem para a humanização do cuidado, na medida em que se constituam em elementos orientadores das relações e das práticas na atenção básica. 

Elas expressam o compromisso ético-político das enfermeiras que atuam na atenção básica não somente com os ideais de saúde que buscam, expressos nas diretrizes do SUS, mas sobretudo com uma prática engajada e comprometida com a política de saúde que o Estado propõe.

Com isso, recomendamos que as competências aqui construídas sejam tomadas como um referencial, cujo propósito seja o de gerar um amplo debate na sociedade, e, no nosso caso, na equipe de saúde e na enfermagem, sobre os ideais de saúde que se têm, os principais desafios a enfrentar, os grandes campos de atuação para alcançá-los e as responsabilidades correspondentes aos diversos atores, mais do que a elaboração de um marco normativo ou de uma lista exaustiva de atividades a cumprir desde uma lógica tecnocrática. 

REFERÊNCIAS 

1        Resolução 3 do Conselho Nacional de Educação de 7 de nov. de 2001. Institui diretrizes curriculares nacionais dos cursos de graduação em enfermagem. In: Almeida, M. Diretrizes curriculares dos cursos universitários da área da saúde. Londrina (PR): Rede Unida; 2003. p. 8-15. 

2        Council of Linkages Between Academia and Public Health Practice. Core competencies for public health professionals. Washington (DC); 2001. 

3        Association of State and Territorial Directors of Nursing. Public Health Nursing: a partner for healthy populations. Washington (DC): American Nurses Association; 2000.  

4        Department of Health and Human Services (US). The Public Health Workforce: an agenda for the 21st century. Washington (DC): USDHHS; 1997. (Full report of the Public Health Functions Project).

5        Organização Pan-Americana da Saúde. Funciones Esenciales de Salud Pública: una perspectiva desde las práticas sociales. Marco de referência para una discusión regional. Washington (DC); 1998.

6        Organização Mundial da Saúde. Competency in Nursing. Genebra; 2003. 

7        Organização Pan-Americana da Saúde. Servicios de enfermería para contribuir al logro de la equidad, el acceso, la calidad y la sostenibilidad de los servicios de salud. Plan de Medio Plazo: 2001-2003. Washington (DC); 2001. 

8        Giovinazzo RA. Modelo de aplicação da Metodologia Delphi pela Internet: Vantagens e Ressalvas. Admin On Line 2001 abr/jun; 2(2). [Online] Disponível em: http://www.fecap.br/adm_online/art22/renata.htm. Acessado em: 15 abr 2004. 

9        Duncan BB. Schmidt M. Diretrizes e estratégias da Rede IDA. Bol Inform da Rede IDA 1992; 9(7):6-7. 

10    Silva RF. Generic Competencies Required By Nurses and Doctors in a Primary Health Care Team [dissertation]. Scotland: University of Dundee; 1998.  

11    Ruiz L. De la realidad a las disciplinas: estructuración de las respuestas educacionales con base en las competências de las instituciones y de la fuerza de trabajo. Educación en salud pública: nuevas perspectivas para las Américas. Washington (DC); 2001. p. 134-61. 

12    Sousa, Francisca Georgina, Terra, Marlene, and Erdmann, Alacoque. "Health services organization according to the intersectoral perspective: a review." Online Brazilian Journal of Nursing [Online], 4.3 1 Dec 2005 Available: http://www.uff.br/objnursing/viewarticle.php?id=86. Acessado em: 20 jul. 2006 

13    Witt RR. Competências da enfermeira na atenção básica: contribuição à construção das Funções Essenciais de Saúde Pública [tese]. Ribeirão Preto (SP): Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo; 2005.  

14    Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde (BR). Manual para a organização da atenção básica. Brasília (DF); 1999.  

15     Antunes MJM. O enfermeiro e a integralidade da assistência de enfermagem na rede Básica do Sistema Único de Saúde [dissertação]. Belo Horizonte: Escola de Enfermagem, UFMG; 1996.  

16    Silva Júnior AG. Modelos tecnoassistenciais em saúde: o debate no campo da saúde coletiva. São Paulo: Hucitec; 1998. 

17    Fleury S. Estado sem cidadãos: seguridade social na América latina. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1994. 

18    Schwartz Y. Os ingredientes da competência: um exercício necessário para uma questão insolúvel. Cad CEDES 1998;19(65):101-40 

19     Campos GWS. Reforma da reforma: repensando a saúde. São Paulo: Hucitec; 1997. 

20    Franco TB. Os processos de trabalho e a mudança do modelo tecnoassistencial em saúde [dissertação]. Campinas (SP): Faculdade de Ciências Médicas, Universidade de Campinas; 1999. 

21    Lei do exercício profissional, Lei Nº 7.498. In: Conselho Regional de Enfermagem (RS). Legislação. Porto Alegre (RS); 2001. p. 13-9.  

22    Canadian Nurses Association. Community health nursing certification examination: list of competencies. Ottawa; 2004.  

23    Bettcher DW, Sapirie S, Goon EHT. Essential public health functions: results of the international Delphi study. World Health Stat Q 1998; (51):44-55. 

24    International Council of Nurses. ICN Framework of Competencies for the Generalist Nurse. Geneve; 2003.  

Apoio financeiro à pesquisa: CAPES. 

Endereço para correspondência: Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Rua São Manoel 963, CEP 90620-110 Porto Alegre RS. E-mail: witt@adufrgs.ufrgs.br

Received Sep 25th , 2006

Revised Oct 28th , 2006

Accept Nov 1st , 2006